As verdades da literatura (da arte em geral) são verdades
subjetivas, de dentro para fora. Um ótimo livro pode ser inspirado por uma
idéia, e outro ótimo livro pode ser inspirado pela idéia oposta. Isto vale até
para extremos como o de religiões, ideologias, políticas, etc. Mas o mais comum
é vermos temperamentos diferentes produzindo obras diferentes.
Steven Erikson é um autor canadense, arqueólogo de
formação, autor da bem-sucedida série de fantasia do “Malazan Book of the
Fallen”, no estilo de Game of Thrones.
Numa entrevista à revista Locus (# 484, maio de 2001) ele faz uma comparação interessante de
sua obra com a obra da também canadense Margaret Atwood, autora de The Handmaid’s Tale. Erikson se queixa
de que existe, entre autores canadenses, uma mentalidade de vítimas do
ambiente; heróis canadenses, cedo ou tarde, sucumbem ao ambiente e morrem.
É uma luta incessante que envolve um meio ambiente muito inóspito e a
persistência humana; uma luta onde o ambiente invariavelmente triunfa. E todo
mundo adotou este aspecto de vitimização como nossa identidade cultural. (trad.
BT)
Erikson faz uma comparação entre duas atitudes possíveis:
De acordo com a tese de Atwood, se eu mostro um indivíduo solitário
parado no centro de uma planície, esse indivíduo irá se sentir pequeno e
insignificante. Mas quando eu escrevo algo assim, esse indivíduo percebe
que ele, ou ela, é a coisa mais alta que existe de horizonte a horizonte. Com
isso eu assumo uma atitude completamente diferente, que muitas vezes é uma
reação deliberada a todo o espírito predominante no meio acadêmico e literário
do Canadá.
Em discussões desse tipo brota muitas vezes a pergunta:
“E qual dos dois está certo?” Minha
resposta geralmente é “Não existe resposta certa e resposta errada
a esse tipo de pergunta. Cada autor reage de forma pessoal aos estímulos da
sociedade e da cultura e do momento histórico. Cada um tem sua resposta, sua
reação, sua verdade.”
Querer reduzir a “identidade nacional” canadense às
atitudes pessoais de Atwood e de Erikson é algo sem sentido. Mesmo que não
estivéssemos falando de algo tão complexo, mesmo que fosse apenas uma questão
tipo “Qual a sua atitude pessoal
diante do mundo?”, ainda assim as respostas são insuficientes. Erikson escreveu
uma série de fantasia com 10 romances, provavelmente uma massa de texto maior
que Game of Thrones, com centenas de
personagens. Ninguém escreve algo dessa dimensão sem possuir um repertório
proporcional de idéias, emoções, conceitos, respostas diante da vida, que
possam ser transmitidas aos personagens.
Todo autor “é” seus heróis, mas esses heróis não bastam
para representá-lo. Ele é também seus vilões, e seus figurantes medíocres, e
suas vítimas trágicas, e seus “alívios cômicos”.
Este é o perigo de quando estudamos superficialmente uma
literatura qualquer (ou qualquer conjunto de obras artísticas). Muita gente
dirá que a literatura de Machado de Assis é cheia de sutilezas, de ceticismo,
de ironia. Isso resume Machado? De jeito nenhum. Guimarães Rosa inventava
palavras novas, distorcia a sintaxe, misturava regionalismos com arcaísmos.
Isso resume sua obra? De jeito nenhum.
Um dos problemas de quem é professor, ou de quem escreve
textos para o público em gral, dando informações iniciais sobre um tema, é a
necessidade de usar esses resumos, essas formulazinhas, essas micro-definições
que nem de longe correspondem à complexidade de um autor. Mas quando estamos
fazendo balanços gerais (“O conto brasileiro na segunda metade do século
20”...) é inevitável fazer esse tipo de redução. Pegamos um autor de obra
extensa e variada, e o definimos em duas ou três linhas de texto, que serão
lidas, decoradas e repetidas por algumas pessoas até o fim da vida, crentes de
que aquilo é “a verdade”.
A obra de Nelson Rodrigues exibe conhecimento psicológico, visão
pessimista do ser humano, uso do sexo e do palavrão, autenticidade nos diálogos
e nas descrições de ambientes, principalmente da classe média carioca.
Isso aí é verdade? Eu penso que sim, enxergo tudo isso na
obra de Nelson. Saber isso equivale a conhecer a obra de Nelson? De jeito
nenhum!
Mas se nós, que somos profissionais da escrita, não temos
tempo de ler as obras mais importantes de todos os autores importantes, o que dizer do
leitor comum, cuja vida útil é ocupada com mil outras tarefas e compromissos?
Se eu, que leio 5 a 6 horas por dia, não consigo ficar em dia com tudo, quanto
mais a pessoa que lê 5 ou 6 horas por semana, ou menos que isso.
Daí que essas formulazinhas de vez em quando precisam ser
viradas pelo avesso.
Kafka era pessimista? Talvez, mas também havia humor no
que ele escrevia – consta que ele lia capítulos de O Processo para a família e todos morriam de rir.
Augusto dos Anjos era o poeta da morte? Talvez, mas
muitos dos seus poemas são celebrações cósmicas da Vida, vista como uma série
infinita de metamorfoses e processos evolutivos.
Cecília Meireles era uma poetisa subjetiva e emocional,
cantando a natureza, os devaneios? Talvez, mas escreveu também um dos maiores
poemas políticos de nossa literatura, o Romanceiro
da Inconfidência.
E assim por diante. Não deveríamos nos limitar nem mesmo
às avaliações que os autores fazem de si mesmos; nem sempre, ou quase nunca, o
que um autor vê em sua própria obra é o que vai encontrar resposta nos
leitores.
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