4822) "Não sou especialista, mas..." (12.5.2022)
A gente está vivendo um momento curioso na História da
Opinião.
De um lado, todo mundo quer emitir uma opinião sobre qualquer
assunto. Desde o preço do café até o filme do Batman, desde a guerra da Europa
até a corrida espacial. E vai logo dizendo:
– Não sou especialista nisso, mas...
Ela pede desculpas por, não sendo especialista, ter a
ousadia de emitir uma opinião sobre aquilo. Mas, por quê? Será que só especialistas podem
comentar sobre um assunto? Será que para comentar sobre a invasão da Ucrânia eu
tenho que ser especialista em guerra, ou em geopolítica da Europa Oriental?...
Para comentar um prato culinário, é preciso ser chef? Para dar palpite sobre um romance
recém-publicado é preciso ter Mestrado em Literatura da PUC ou na USP?
Eu tenho um certo número de assuntos em que dou palpites,
teorizo, defendo idéias, questiono opiniões. Sou especialista em qualquer um
deles? De jeito nenhum. E não sou justamente porque há dúzias de assuntos que
me interessam. Como poderia me especializar em dúzias de assuntos?
Meus interesses flutuam. Às vezes eu passo anos sem ler
um romance policial sequer, sem ouvir baião, sem ver um “filme cabeça”. Depois,
tenho uma recaída braba. Por que? Não sei. São interesses pessoais, emotivos. Minha
vida intelectual é afetiva. A faceta profissional é mera consequência.
Meu conhecimento é cheio de lacunas, de falhas
estruturais, de coisas lidas às pressas na juventude e não revisitadas
depois... Tenho consciência disso. Por isso já me vi constrangido mil vezes
quando fui apresentado “E agora, vamos ouvir o especialista em Cantoria de
Viola, Braulio Tavares...” Se eu pego o microfone e confesso que não o sou, as
pessoas vão comentar: “Gente, como ele é modesto...” e outros vão dizer: “Que
sujeito hipócrita.”
Nem uma coisa nem outra. Meu conhecimento é
alternadamente empírico e teórico. Eu vejo algo interessante, passo vinte anos
lendo aqui e acolá, até que um dia meto os pés e penso: “Peraí. Esse negócio é
muito mais sério do que eu pensava. Preciso estudar esse troço pra valer.” Aí
passo alguns anos estudando, depois volto à “fruição sem compromisso”, lendo só
como leitor, sem categorizar, sem questionar... Vinte anos depois, estudo de
novo... E la nave va.
O que me faz aceitar convites para dar palestras ou
cursos, inclusive recebendo cachê, é o fato de que eu convivo com esses assuntos
há muitos anos. Mas convivo pensando.
Mesmo não tendo descoberto nenhum teorema-de-pitágoras que possa classificar
como de minha autoria, não me importo. Se algum ouvinte estiver interessado no
tema, eu posso indicar alguns caminhos-das-pedras. E sou (imagino ser) um bom
popularizador de idéias complexas. E não sou nem um pouco modesto; pelo
contrário.
Meu objetivo é ser capaz de explicar um assunto a quem
entende dele menos do que eu, e ser capaz de fazer perguntas pertinentes a quem
entende mais.
Minha mentalidade é aquilo que na discussões acadêmicas se
classifica às vezes como “mentalidade jornalística”: capaz de falar superficialmente
sobre 257 assuntos, sem poder se aprofundar em nenhum. Acho isso ótimo. A
sociedade precisa de pessoas assim. Desde que elas saibam que são assim, e para que servem.
O problema (acho) é quando a pessoa diz:
– Não sou especialista nesse assunto, mas vocês todos
estão errados e quem sabe o que está acontecendo sou eu.
Hoje, depois das profundas mudanças estruturais nas nossas
linhas de comunicação coletiva (internet, redes sociais, smartphones, aplicativos
de grupos, etc.) estamos oscilando entre dois polos.
De um lado, o Império dos Especialistas, uma
tecnoburocracia regida, a golpes de bibliografia e sarcasmo, por acumuladores
de títulos e de portfólios. Ali, um cidadão comum hesita antes de abrir a boca
e dar um mero palpite, pelo receio de ser humilhado em público, além de
esmagado por toneladas de currículo.
Do outro lado, a Babel dos Opiniosos, uma arena cheia de pessoas de microfone em punho, todas falando ao mesmo tempo, e
cada uma delas imbuída não apenas do direito democrático de ter opinião sobre o
que quer que seja, mas também do dever de bradar essa opinião cem vezes por
dia, e não admitir que alguém a conteste.
Não sou especialista no assunto, mas acho que vc está certo. ;)
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