terça-feira, 3 de maio de 2022

4819) Primeiras Estórias: Um Moço Muito Branco (3.5.2022)




Este texto (em Primeiras Estórias, 1962) é conhecido como “o conto de ficção científica de Guimarães Rosa”. E é de fato um conto de “visita de alienígena” para ninguém botar defeito.
 
O enredo: na década de 1870, depois de uma tempestade cheia de visagens e clarões, aparece num povoado do interior de Minas um rapaz muito alvo, sem roupas, aparentando estar desmemoriado, e incapaz de falar a língua local. É amparado e recolhido por uma família, e começam as especulações sobre quem seria ele, de onde vinha, etc. Uma noite, ele pede ajuda a um negro velho das redondezas, acende uma série de fogueiras numa elevação, e faz descer do céu um aparelho luminoso, que o leva consigo para sempre.


 
Com algumas adaptações poderia ser um esboço de sinopse para um filme como o E.T. de Steven Spielberg.
 
Já escrevi mais longamente sobre este conto num dos capítulos do meu livrinho A Pulp Fiction de Guimarães Rosa (João Pessoa: Marca de Fantasia, 2008).
https://marcadefantasia.com/livros/veredas/pulpfiction/pulpfiction-a.htm
 
Esse capítulo foi traduzido para o inglês por Elizabeth M. Ginway e incluído na coletânea Latin American Science Fiction – Theory and Practice (New York: Palgrave Macmillan, 2012), editada por Elizabeth M. Ginway e J. Andrew Brown.


O conto foi publicado pela primeira vez em 29 de julho de 1961, em O Globo, onde Guimarães Rosa colaborava periodicamente. Muitos textos publicados no jornal foram aproveitados em Primeiras Estórias (1962). Outras colaborações desse período foram aproveitadas em Tutaméia (1967), que usou também material surgiu da coluna mantida por Rosa em Pulso, um jornal de médicos mantido pelo Laboratório de Sidney Ross, no Rio de Janeiro.


“Um Moço Muito Branco” é o que poderíamos chamar de “conto de disco voador”, um tema tão em voga na época, quando todo mundo estava de olho nas viagens espaciais – o primeiro voo orbital de Yuri Gagárin foi em abril de 1961. A década anterior foi talvez o auge do “filme de disco voador”, em obras como O Dia Em Que a Terra Parou (“The Day the Earth Stood Still”, 1951) ou A Invasão dos Discos Voadores (“Earth vs. Flying Saucers”, 1956).
 
Espaçonaves humanas partindo rumo à Lua ou a Marte se misturavam no imaginário popular, através da imprensa e do cinema, com espaçonaves extra-terrestres que nos estudavam à distância ou se preparavam para nos invadir.
 
A pulp fiction da época (que já havia migrado das revistinhas populares para os livros de bolso) não ficava atrás.
 

(S.O.S. Soucoupes, 1954, de B. R. Bruss, pseudônimo de René Bonnefoy)


Nessa época, lá em casa já havia a tradução brasileira do best-seller de George Adamski, Discos Voadores – a História de suas Aparições – Seu Enigma e sua Explicação (Ed. Globo, 1957), bem como o ilustradíssimo Discos Voadores (Ed. Melhoramentos, 1959) de J. Escobar Faria.





O disco voador é uma das imagens mais fortes do imaginário dos últimos cem anos, e digo isto porque ela precede em muito o famoso “primeiro avistamento” feito por Kenneth Arnold em 1947. É um fenômeno de tal dimensão que o próprio Carl G. Jung dedicou-lhe um livro inteiro, vendo ali um reflexo luminoso e elusivo de conteúdos do nosso inconsciente coletivo.
 
Quem duvidar, confira aqui mais de mil capas de revistas onde essa imagem aparece:
 
https://ufopop.org/ufopop_mags.php
 
E quanto ao conto de Rosa?
 
Num contexto desta natureza, não é de admirar que ele aderisse pelo menos uma vez ao tema, usando-o com aquele tom que lhe era próprio, uma mistura de criança séria e adulto brincalhão, erguendo alto a pipa da fantasia e puxando a linha de volta com os pés plantados no passado barroco de Minas Gerais. (O conto alude à atual cidade do Serro, antes conhecida como “Serro Frio”.)

Na noite de 11 de novembro de 1872, na comarca do Serro Frio, em Minas Gerais, deram-se fatos de pavoroso suceder, referidos nas folhas da época e exarados nas Efemérides. (p. 99)
 
Começa assim o conto, e prossegue com o aparecimento do rapaz, que traz uma comoção duradoura àquele lugarejo onde não acontece nada. A simples presença do rapaz produz reações emocionais exaltadas em muita gente, e ele se comporta como alguém amnésico e incapaz de falar o idioma local.
 
Há uma estranheza permanente em torno dele, embora ninguém demonstre hostilidade. O fato de ter descido do céu é atestado por um preto velho local, José Kakende, meio aluado, testemunha do que aconteceu na noite de sua chegada. No meio da tempestade, Kakende avistou no céu
 
uma artimanha amarelo-escura, avoante trem, chato e redondo, com redoma de vidro sobreposta, azulosa, e que, pousando, de dentro, desceram os Arcanjos, mediante rodas, labaredas e rumores. (p. 101)



E é a Kakende que o rapaz recorre no desfecho da estória, para ajudá-lo a acender fogueiras numa elevação, numa noite escura, e assim atrair uma outro geringonça que desce dos céus e leva o rapaz embora.
 
José Kakende contava somente que o ajudara a acender, de secreto, com formato, nove fogueiras; e, mais, o Kakende soubesse apenas repetir aquelas suas velhas e divagadas visões – de nuvem, chamas, ruídos, redondos, rodas, geringonça e entes.  Com a primeira luz do sol, o moço se fora, tidas asas. (p. 104)

As descrições feitas por Kakende nos lembram, além das histórias de discos voadores propriamente ditos, as visões do profeta Ezequiel na Bíblia (a partir do Capítulo 1),visões que numerosos ufólogos citam como indício de que prodígios emelhantes vêm sendo avistados desde a Antiguidade. 
 

EZEQUIEL 1

(...)
Olhei e vi uma tempestade que vinha do norte: uma nuvem imensa, com relâmpagos e faíscas, cercada por uma luz brilhante. O centro do fogo parecia metal reluzente,
e no meio do fogo havia quatro vultos que pareciam seres viventes. Na aparência tinham forma de ho­mem,
mas cada um deles tinha quatro rostos e quatro asas.
Suas pernas eram retas; seus pés eram como os de um bezerro e reluziam como bronze polido.
De­baixo de suas asas, nos quatro lados, eles tinham mãos humanas. Os quatro tinham rostos e asas,
e as suas asas encostavam umas nas outras. Quando se moviam, andavam para a frente e não se viravam. (...)
15 Enquanto eu olhava para eles, vi uma roda ao lado de cada um deles, diante dos seus quatro rostos.
16 Esta era a aparência das rodas e a sua estrutura: reluziam como o berilo; as quatro tinham aparência semelhante. Cada roda parecia estar entrosada na outra.
17 Quan­do se moviam, seguiam nas quatro direções dos quatro rostos e não se viravam enquanto iam.
18 Seus aros eram altos e impressionantes e estavam cheios de olhos ao redor.
19 Quando os seres viventes se moviam, as rodas ao seu lado se moviam; quando se elevavam do chão, as rodas também se elevavam.
20 Para onde quer que o Espírito fosse, os seres viventes iam, e as rodas os seguiam, porque o mesmo Espírito estava nelas.

 https://www.bibliaon.com/ezequiel_1/

 
Guimarães Rosa faz neste conto uma infusão de memória bíblica, tradição oral e documentação obscura, e com isso propõe uma pequena alegoria mística em que falta pouco para dizer que o moço muito branco é um anjo sem asas, como os de Wim Wenders em Asas do Desejo, tornado material e visível por um acidente-de-percurso qualquer.
 
É um conto com medula religiosa e mineira, mas contaminado pelo imaginário cósmico-espacial do momento em que foi composto. Comentei com mais detalhes este aspecto, ao falar sobre outro conto de Primeiras Estórias com influência da ficção científica e dos voos espaciais:
 
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/10/4632-primeiras-estorias-terceira-margem.html
 








 









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