(André Breton, por
Victor Brauner, 1934)
Uma neve fina e constante cobre as calçadas, e se
deposita sobre os bancos de praça no canteiro central do bulevar. Os galhos nus
das árvores parecem raios em negativo, congelados no instante em que se
projetavam rumo ao céu. Há poucos arbustos da pracinha, encolhidos, tiritantes,
como vultos escuros e indistintos, e só então percebo que tudo à minha volta é
preto e branco: as fachadas, os lampiões, alguns trechos de grama visíveis
junto aos gradis. O próprio Moulin Rouge, que avisto à distância, ergue uma
torre cilíndrica de cor cinza-grafite, de encontro ao céu branco e sem luz. Suas
pás imóveis parecem também congeladas.
Mais alguns passos e estou diante do Cabaré do Céu e do
Inferno. Paro junto ao poste do lampião. Penso que aquela gigantesca carantonha
à minha direita, com sua boca hiante e os olhos arregalados (gesso pintado?
papel machê?) teria cores vívidas, em seu tempo; aqui e agora tem um contraste
brutal de xilogravura, e parece ter sido pintada com a pegajosa tinta negra dos
mimeógrafos. Toco a campainha. A concierge
me introduz sem me dar muita atenção, acostumada à presença de tipos estranhos.
Subo as escadas. Um resto de latejo adolescente me obriga
a pensar que por aqueles degraus já subiu Apollinaire, já subiu Desnos, já
subiram Éluard, Max Ernst, Péret. Por esta escadaria terá subido um Luís Buñuel
ainda jovem, atlético, truculento?... Nestes degraus já pisaram os pés de
Raymond Queneau?...
Toco a campainha no quarto andar, a porta se abre, a
senhora grisalha e de olhos graves ouve meu nome, assente, convida-me a entrar.
Há um corredorzinho estreito e sou conduzido a uma sala espaçosa e atulhada.
Sento, olho em redor. O primeiro pensamento é: “O cabaré do andar térreo é uma simples antecâmara disto aqui”.
A coleção de Arte. Nas paredes, no mantel da lareira, nas
bancadas, nos aparadores, nos nichos, nas prateleiras, contempla-me uma galeria
de duendes de cornos retorcidos, plantas carnívoras pintadas de batom, colares
de olhos de vidro, guerreiros em ébano incrustados de balas de fuzil, buquês de
espuma cadavérica, seios de odalisca virgem, absinto sólido esculpido em cacho
de uvas, senadores cinocéfalos, fogueira de lâminas tetânicas, tigresas obesas
expelindo letras em itálico, moedas triangulares de madeira com um prego
cravado no centro, arlequins sem dentes agitando chicotes, baú transbordando de
sereias xifópagas...
Ele entra devagar. É o ancião que vi nos obituários, e se
aproxima vagaroso, meticuloso, com olhos que procuram, mãos trêmulas que
experimentam os objetos antes de manuseá-los. Traja camisa e calças de flanela,
em diferentes tons de azul, e um casaco de seda em cores vivas, que lhe desce
até os joelhos. Aperta minhas mãos com gentileza, perscrutando meu rosto; tenho
certeza de que não percebeu meus próprios trajes. Pede-me desculpas pela demora
(que foi nenhuma), pergunta se quero algo: “Du thé?... Du vin?...”
Ora que diabo, estou a trabalho mas estou em Paris, estou
diante do homem que escreveu Os Campos
Magnéticos. “Duvã !...”
BT – Monsieur
Breton, estão se completando cem anos da explosão surrealista, ou da revolução
surrealista, ou da revelação surrealista... Algum desses termos o satisfaz,
levando em conta tudo que aconteceu?
AB – São palavras apenas,
palavras que não eletrocutam mais ninguém. Toda nossa busca foi pelas palavras
energizantes, as que inflamam e destroem, as palavras radioativas, tanto as que
abrem a gruta de Sésamo quanto as que fazem a terra fender-se e engolir o
arauto antes que ele chegue à última sílaba. Fomos esses arautos. Nossos versos
eram granadas ativadas pelos olhos de quem sabia lê-los. E todos nós sucumbimos,
não é verdade? Mergulhamos as mãos na lava borbulhante do inconsciente para esculpi-la,
para dar-lhe formas de náiades, para fazer a lava arquejar de gozo. E
descobrimos que a lava não se dobrava aos nossos desejos. Talvez tenhamos
somente esculpido réplicas de nossas próprias mãos. (sorri, ergue a mão direita à luz que vem da janela) Mãos são
aranhas que tecem livros.O senhor já esteve na guerra? Uma guerra não ensina
coisa alguma, eis a nossa desgraça. Saímos da guerra e da vida sabendo tão
pouco como quando entramos.
O vinho é servido; brindamos.
BT – A experiência
da Primeira Guerra marcou sua geração. O surrealismo foi uma reação contra esse
horror?...
AB – Não! Jamais! O surrealismo, no que para ele sonhávamos,
seria sempre ação, nunca reação. Nunca uma resposta; nunca uma consequência. Queríamos,
como tantos outros poetas, desvirginar o labirinto do velho e metafísico mistério.
O dédalo sem saída das palavras formulaicas, que mascaram a realidade, produz
um véu de tule que nos permite divisar silhuetas e tomá-las pelas coisas-em-si.
Nosso gesto foi um gesto de ação; de agressão, se quiser, mas sempre um gesto
de enfrentar a realidade. Precipitamo-nos sobre ela com a ousadia com que um
suicida se precipita contra o pavimento. A guerra serviu para nos mostrar que a
vida não tinha limites. Acreditávamos (me refiro aos homens, a nossa espécie
como um todo) acreditávamos na paz, na natureza; mas se aquele horror era
possível, então tudo que houvesse entre esses dois extremos tinha que ser
levado em conta. Inclusive o crime sem motivo, a blasfêmia sem perdão, o
irracional sem beleza, o martírio sem explicações, a depravação sem prazer, a
loucura sem libertação... Os descarrilamentos do espírito. A guerra me
apresentou à loucura, em Nantes, onde fui enfermeiro. E aqueles homens que
babavam e balbuciavam sílabas sem sentido, queixas fantasiosas, que
improvisavam palavras híbridas para vomitar o indizível... aqueles homens
estavam sintonizados com o tempo em que viviam. Nós, os lúcidos, fomos os
perdedores daquele conflito. O surrealismo foi a convulsão de um corpo que precisava
descobrir se estava vivo ainda.
BT – Fala-se que o
Surrealismo nasceu de uma visão pessimista do mundo, mas depois adotou o mais
improvável dos otimismos, que foi o comunismo marxista. O senhor certamente vê
essa questão num nível maior de complexidade.
AB – É preciso ter em mente
que a cidade onde circulávamos era uma galeria de monstruosidades, de
deformações em cera e arame, de batráquios galvanizados candidatando-se a
cargos eletivos, de contrabandistas de estrume eleitos para as academias. Não
há como descrever, para um sobrevivente dos séculos, a espantosa fermentação
nauseabunda de ideologias bastardas em que se refocilava a Paris daquele tempo,
a Paris dos andaimes sanguinolentos, das cadeiras de tribunal forradas de couro
cabeludo, dos cartórios onde as penas dos necromantes eram molhadas em
tinteiros de pus, das repartições públicas onde era preciso mastigar os pés de
uma múmia para ter o direito de praticar felação num fuzil. Esse era o mundo
normal que os Surrealistas escandalizaram, e que depois os comunistas ameaçaram
dinamitar, e que os editorialistas de L’Humanité
proclamaram morto um século após seu apodrecimento. Sim, nosso impulso era o de
espezinhar os arquiduques, e de dirigir mangueiras de incêndio contra esses Panteões
feitos de açúcar.
BT – Em suma, era
muito mais um movimento de negação do que uma nova proposta de organização
social...
AB – Mas meu caro senhor, como
concebe uma “nova proposta de organização social”? O entendimento que nos
inquietava, que nos bouleversava, era o entendimento de que a sociedade é ao
mesmo tempo um desabrochar e um desmoronar sobre si mesma, um gêiser pagão, um
jato dágua que se ergue vertical e depois desaba de volta em circunvoluções
semelhantes ao deste cérebro onde nada existe em linha reta, onde dois mais
dois não perfazem quatro porque se trata de duas calçadas e duas moscas... Mas
ainda assim é notável o esforço da humanidade em tentar produzir ritos, formalidades
que deem a impressão de mundo normal. A civilização é a tentativa de reger as
chamas de um incêndio. Minha ironia final é constatar que a lógica, a cultura, a
ordem social, são as proposições mais absurdas, mais bizarras, mais insanas – mais Surrealistas, portanto – a que
a Humanidade jamais se dedicou. Oh, sim, a última palavra é uma gargalhada. A História
é escrita pelos vencedores, mas a última piada é sempre dos vencidos.
BT – Não sei se foi
o seu caso. Talvez a última fala tenha sido de Salvador Dali, não? No mundo de
hoje, a palavra surrealismo leva mais gente a pensar nele do que no senhor. Ou
em Aragon, Péret, Desnos, Éluard...
AB – Ah, Dali, aquele manequim
anguloso funcionando à bateria... Sim, sei muito bem a celebridade em que se
tornou, ele e seu realejo de prodígios pré-fabricados... Suas bisnagas
palpitantes de esperma, seus tigres feitos de tapete, seus espectros de veludo
e fumaça... Dali (como outros, aliás) é a melhor comprovação da tese
surrealista de que a libertação do espírito e o contato com o plasma ardente da
poesia estão ao alcance de qualquer um. Quando dizíamos que a poesia deve ser
feita por todos, é porque incluíamos nessa lista os canalhas, os traidores, os
mercenários, os pavões cravejados de medalhas comemorativas, os gigolôs da
fortuna alheia, os estripadores, os estupradores, os enfermeiros que injetam
soporíferos na língua dos pacientes... Se o Surrealismo prevalecer um dia, meu
caro senhor, todos esses indivíduos serão capazes de produzir poesia de alta
qualidade, porque o Espírito (que é algo muito distinto da “alma” dos cristãos),
se manifesta em todas as mentes humanas. Esse é o deslumbramento e a tragédia
da condição humana: que as piores pessoas que temos sejam também capazes de
produzir o que temos de mais elevado, porque – esta é uma das palavras de ordem
do Surrealismo – em qualquer ser humano insignificante é possível fazer
desencadear os poderes originais do Espírito.
BT – Que, como o
senhor mesmo acabou de dizer, nada tem a ver com a existência de almas humanas
imortais ou de um Além sobrenatural.
AB – Oh, não certamente. Não
precisamos de outro mundo. Este mundo aqui já tem uma quantidade suficiente de
ameaças, de recompensas, de prazeres, de deslumbramentos, de tragédias... O
mundo é um oceano desmedido. Se mal raspamos a sua superfície, se mal tocamos a
espuma de suas ondas, por que deixaríamos de mergulhar nele para tentar
imaginar outro mundo, outro mar? Não, nosso mar é o mar do inconsciente humano
compartilhado, temos que afundar nele de olhos escancarados para sua escuridão,
temos que nos amarrar a bolas de ferro, às bolas e correntes da poesia
convulsiva, do estranho, do bizarro, do inesperado. Temos que afundar no Real,
quando mais não seja porque todas as pessoas que desprezamos e que nos
desprezam nos dizem para fazer o contrário.
BT – Monsieur
Breton, sempre tive uma curiosidade a respeito de Paris, é algo que se refere
aos 365 apartamentos que estão interligados por passagens secretas... Essa
descoberta se deve, na verdade, ao seu amigo Louis Aragon?
AB – Aragon era um visionário
com senso de humor. Nossos caminhos divergiram, infelizmente, mas nossos
corações, por assim dizer, continuam a flutuar próximos, neste oceano da
impermanência. Aragon sugeriu essa idéia a Jules Romains, que a incluiu num
romance. Verdade? Invenção? Eu não sei. Na época, era intensa a minha repulsa
pela literatura, pela prosa de situações banais do cotidiano, pelas marquesas
que saíam às cinco horas... Parecia-me uma arte inferior, comparável à do
desenho de cartões de namorados ou decoração de bolos. Meus amigos viam uma
perturbadora beleza nessa idéia de um fio de corredores secretos estendendo-se
através de Paris – ou de qualquer outra cidade, à sua imaginação – por onde é
possível caminhar sem ser visto, fugir sem ser apanhado, espionar sem ser
pressentido, deslocar-se no espaço sem sofrer rastreamento...
BT – Eu pagaria por
esse direito uma polpuda mensalidade, Monsieur Breton, mas a esta altura parece
que tudo se circunscreve aos domínios do feuilleton, da pulp fiction...
AB – Ah, meu caro senhor, não
menospreze o poder revelador, o poder encantatório das cerimônias profanas da
ficção popular, da cultura das calçadas. É ali que vemos o desabrochar
orgulhoso do Espírito coletivo, que, não se engane, não desce do Céu sobre nós
para nos trazer lições de moral, mas emerge do asfalto, dos paralelepípedos,
dos tijolos, da alvenaria, para nos trazer lições de sobrevida e
transcendência. Pense em Rimbaud e seu fascínio pelo teatro de mamulengos,
pense na brutalidade plebéia de Lautréamont, pense em Jarry e sua tradução da
ciência para o idioma da sarjeta... Todos estes poetas acharam, cada um ao seu
modo, um canal de comunicação permanente com essa correnteza obscura, maníaca, com
o estado de furor, com o acaso objetivo, com as imagens convulsivas e
fulgurantes, as truculências simbólicas.
Eu estava de olhos baixos, avaliando meio distraído os
dragões laqueados do tampo da mesa. Ergo o rosto para encará-lo. Ele é agora o
jovem altivo, leonino, imponente, que atraía olhares e provocava frêmitos à sua
passagem. Em poucos minutos remoçou quarenta anos. É como se eu tivesse vindo
até ali para trazer-lhe algo de que necessitava. Um olhar, uma reativação que talvez
lhe proporcione mais cem anos de sobrevida. Quem pode saber?
Antes de nos despedirmos, ele me leva até a janela. Lá
embaixo, vemos o mundo alvinegro, as calçadas, os pedestres, vemos aquele filme
granulado e trêmulo do passado; e uma cidade de caligaris, uma cidade de zumbis,
de pequenos burgueses em seus bigodões e seus capotes, que podem morrer
carbonizados à simples visão de uma camisa amarela, uma bandeira vermelha, um
par de sapatos azuis.
Breton faz um gesto largo abarcando aquela avenida
inteira, aquele século.
AB – Eles nos odeiam, caro
senhor, mas não há propósito em odiá-los. Sabem que um mundo onde possamos
viver é um mundo que os ameaça. Não é a nossa vontade que determina isto, é a
natureza da coisas. Até hoje o mundo foi deles. Changer la vie! – foi o brado de Rimbaud. E o faremos. Temos quanto
tempo pela frente? Uns diriam mil anos; outros diriam: a eternidade.
BT – Uma última
provocação. Seu amigo Luís Buñuel reconheceu certa vez que, visto em
retrospecto, o Surrealismo fracassou no essencial e triunfou no que era
supérfluo e secundário. O que me diz?...
AB (pondo a mão no meu ombro,
num gesto paternal) – Ah, Luís?... Luís é um garanhão coroado de papoulas.
Despeço-me e volto à calçada, ao mundo colorido de moças com
cabelos roxos e piercings, de buttons
fosforecentes, de bancas de revistas apregoando super-heróis e pilotos de
Fórmula 1, de outdoors, de blusões de
couro marrom, de óculos espelhados, de
cabelinho verde espetado em gel, de boné revirado, de cavanhaque insolente. Em
cada um deles, caminhando na direção do portal art-nouveau da estação do metrô, imagino rever aqueles olhos de um
fogo feito de ferro, um ferro feito de céu.
(Nota necessária: esta série de "Entrevistas Transcendentais" é composta por textos imaginários. Eu não entrevistei essas pessoas.)
Augusto dos Anjos:
Julio Cortázar:
Philip K. Dick:
Agatha Christie: