quarta-feira, 9 de março de 2022

4801) Os assassinatos políticos (9.3.2022)



 
(Gabriel Garcia Márquez)
 
Escrevi dias atrás sobre o assassinato do primeiro ministro da Suécia, Olof Palme, ocorrido em 1986. Até hoje não se sabe com certeza quem foi o homem que o alvejou após a última sessão de um filme, por volta das 23:30, quando ele se dirigia com a esposa para o metrô.
 
Palme estava sem a proteção de seguranças. Era um dia comum de inverno, ruas nevadas e com poucos transeuntes. Um homem o seguiu por alguns metros. Quando o casal parou numa esquina, o cara chegou mais perto e disparou um tiro de revólver em cada um. A esposa foi ferida de raspão; Palme morreu minutos depois.
 
Aqui, sobre a série:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2022/02/4797-o-assassinato-de-olof-palme-2422022.html
 
A série Assassinato de Olof Palme (Netflix) reconstitui ficcionalmente o caso, denunciando um suspeito. Um detalhe que chama a atenção desde o início é que havia poucas pessoas em volta, os depoimentos às vezes se contradiziam, e tudo parecia beneficiar o criminoso.
 
Alguém pode pensar: "O melhor momento para um crime como esse, então, é tarde da noite, rua quase deserta, pouca gente em volta..."
 
Nem sempre. Me veio logo à lembrança outro assassinato político famoso e não explicado de forma 100% satisfatória. 

Esse crime foi testemunhado de perto por Gabriel Garcia Márquez, que o reconta em suas memórias (Vivir Para Contarla, Bogotá, Editorial Norma, 2002). Infelizmente o livro de Márquez não tem subdivisão em capítulos, mas os textos que vou citar estão da página 330 em diante (não tenho em mãos a tradução brasileira).
 
A Colômbia vivia em 1948 uma campanha presidencial num momento de extrema tensão e violência política. Márquez lembra uma tourada, em Bogotá, em que o toureiro demorou tanto a liquidar o touro que a torcida desceu das arquibancadas e esquartejou vivo o animal.



(Jorge Eliécer Gaitán, 1903-1948)
 
Um dos protagonistas políticos mais importantes era Jorge Eliécer Gaitán, líder da oposição de esquerda, que fazia discursos inflamados contra os opressores, as elites, a violência do governo, etc.  No dia 9 de abril de 1948, ele saiu em grupo para almoçar num restaurante no centro de Bogotá, a pé, cercado por meia dúzia de amigos e correligionários.
 
Garcia Márquez tinha nessa época 21 anos e era estudante; estava almoçando a três quadras dali, na pensão onde morava, quando alguém entrou correndo e gritou:
 
– Agora o país se fudeu mesmo! Acabam de matar Gaitán, em frente a "El Gato Negro".


(Garcia Márquez jovem)
 
Márquez saiu voando. No local do crime, homens agachavam-se, tiravam o lenço e o encharcavam na poça de sangue, para guardar como souvenir. O agressor havia se refugiado numa farmácia, cujo dono correu as portas, mas a multidão já fazia de tudo para botá-las abaixo. E Márquez, olhando tudo, recorda:
 
Um homem alto e muito senhor de si, com traje cinza impecável, como se estivesse indo para um casamento, os incitava com gritos bem calculados. (trad. BT)
 
GGM tem olho de jornalista e descreve o momento em que o dono da farmácia, apavorado, entregou à polícia o fugitivo.
 
Tinha o cabelo revolto, uma barba de dois dias e uma palidez mortal, com os olhos sobressaltados pelo terror. Seu traje era de pano marrom, de um tipo muito usado, com listras verticais; a gola já estava rasgada pela multidão. Foi uma aparição instantânea e eterna, porque os engraxates o arrancaram das mãos dos guardas a golpes de caixotes e o derrubaram a pontapés. Nos primeiros sopapos já havia perdido um pé de sapato.


(O crime foi mais ou menos aqui, na 
esquina de Av. Jiménez com Carrera 7)
 
O criminoso foi depois identificado como Juan Roa Sierra, um indivíduo insignificante do ponto de vista político, um “pawn in their game” da estirpe de Lee Harvey Oswald. O homem de cinza, sempre próximo, começou a gritar: “Ao palácio!... Ao palácio!...”  O corpo ensanguentado do pistoleiro foi arrastado rua afora, e ficou exposto diante do Palácio Presidencial. Diz o escritor:
 
O cadáver desfigurado a golpes ia deixando pedaços de roupa e do corpo nas pedras do calçamento. (...) Ali deixaram o que sobrou do cadáver, sem outra roupa senão os farrapos da cueca, o sapato esquerdo e duas gravatas inexplicáveis ao pescoço.
 
Para mim, são esses pequenos detalhes absurdos que conferem verossimilhança a um relato.  Conheço o estilo de Garcia Márquez o bastante, e creio que, para ele, inventar um detalhe assim seria um clichê banal, mas vê-lo no mundo real e registrá-lo é pura literatura de não ficção. (A segunda gravata é ligeiramente plausível, se imaginarmos que um dos linchadores achou mais prático tirar a própria gravata e usá-la para arrastar o corpo do linchado pelo pescoço.)

E ele relata:
 
Permaneci no lugar do crime uns dez minutos mais, surpreendido pela rapidez com que as versões das testemunhas iam mudando de forma e de conteúdo  até perder qualquer semelhança com a realidade.
 
Márquez faz um relato cheio de citações. Pessoas presenciaram o instante em que um correligionário do grupo de Gaitán, Plínio Mendoza Neira, o tomou pelo braço, quando caminhavam de volta do restaurante, para fazer-lhe um pedido, e viu quando o candidato ergueu o braço diante do rosto, num reflexo instintivo de defesa, antes de receber os três tiros na cabeça que o abateram.
 
E o escritor conclui:
 
Cinquenta anos depois, permanece nítida na minha memória a imagem do homem que parecia instigar o populacho em frente à farmácia, e não vi referências a ele em nenhum dos incontáveis testemunhos que li sobre aquele dia. Eu o vi muito de perto, elegantemente vestido, uma pele de alabastro e um controle milimétrico de cada gesto que executava. Tanto me chamou a atenção que fiquei de olho nele até que o recolheram num automóvel novinho em folha, com a mesma rapidez com que estava sendo levado embora o corpo do assassino; e desde então parece que ele foi apagado da memória histórica. Inclusive da minha, até muitos anos depois, em meus tempos de jornalista, quando me assaltou de súbito a noção de que aquele homem havia dado um jeito para que matassem um falso assassino, a fim de proteger o verdadeiro.
 
No crime de Olof Palme, a polícia sueca montou maquetes com bonequinhos, reconstituindo os passos da meia dúzia de pessoas que estavam naquele pedaço de quarteirão quase deserto. Nem isso lhe valeu. Já na morte de Gaitán, a polícia da Colômbia chegou ao local do crime segundos depois, mas o tumulto era tal que até hoje ninguém conseguiu deslindar as pistas. E o fato de que o possível criminoso foi linchado sem demora serve como uma espécie de “vire a página”, em muitos casos assim.
 
Além do mais, se é de fato um crime planejado por uma equipe, e não o gesto impulsivo de um maluco, não faltarão bodes expiatórios, indivíduos suspeitos que terão sido mandados para o local pelos “chefes” sem saber exatamente o que se espera deles, testemunhas com história pronta que rapidamente oferecerão seu despiste às autoridades.
 
Fico imaginando o quanto essa lembrança do “Homem de Cinza” deve ter incomodado Garcia Márquez durante a vida inteira. Por ironia, ele teria sido o único a ver o instigador direto do crime e a desconfiar dele, e nem o fato de ter se tornado um dos escritores mais famosos do mundo fez com que alguém um dia lhe desse ouvidos.
 
 







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