Certas
perguntas, por mais que sejam respondidas milhões
de vezes, nunca deixarão de ser feitas. (Alguns exemplos: “Que horas
são?...” “Como é seu nome?...” “Essa estrada vai dar aonde?...”)
Faço
parte de um grupo de rede social onde as pessoas trocam informações sobre
música rock-pop-folk dos EUA, em geral, e sobre a obra de Bob Dylan, em
particular.
Esta
semana um jovem participante trouxe um susto. O mesmo susto que eu tive 50 anos atrás,
quando percebi a semelhança entre uma música de Dylan e outra música, esta
gravada por Paul Simon & Art Garfunkel.
A música
desta dupla, aliás uma lindeza de melodia, arranjo e vocal, é “Scarborough
Fair” (1966), e diz:
Are you going to Scarborough Fair?
(Parsley, sage, rosemary, and thyme.)
Remember me to one who lives there:
she once was a true love of mine.
A música
de Dylan, bem do seu iniciozinho de carreira, é “Girl of the North Country”
(1963), e sua primeira estrofe diz:
If you’re going to the North country fair
Where the winds hit heavy, on the borderline,
Remember me to one who lives there:
she once was a true love of mine.
Se a
questão importante se limitasse ao banal “quem plagiou quem”, o plagiário seria
Simon, cuja gravação é posterior. Mas não se trata disso. A canção vem de mais
longe ainda, e sua forma básica aparece no fundamental catálogo “Child
Ballads”, um levantamento de baladas tradicionais anglófonas, publicado por
Francis James Child como The English and
Scottish Popular Ballads (5 vols, 1882–98). Ouvintes de folk-rock inglês e norte-americano irão reencontrar aí centenas de versos que já cantaram mil vezes.
Fragmentos
de versos aparecem a torto e a direito nessas pesquisas, versos que são
passados de mão em mão, re-utilizados pelos poetas com a mesma liberdade e
inocência com que hoje repetimos “sem
você não sei viver” . Quem será o gênio que escreveu esse verso pela
primeira vez? Algum sumério ou fenício, talvez.
São
versos que pertencem à tradição: pertencem mais ao país do que a uma pessoa,
pertencem mais à memória coletiva do que à invenção individual. Dylan e Simon
estavam repetindo versos que tinham escutado (ou lido) de dez origens
diferentes. Não são de ninguém, são de todo mundo. O artista banal repete. O
artista de talento cria, em cima da beleza antiga, uma coisa ainda mais bela.
Foi o
que fez Paul Simon: sua gravação de “Scarborough Fair” é intercalada em
contracanto com “Canticle”, ao fundo, com versos falando da guerra. O contexto
é medieval; mas o recado sobre a guerra é claramente una alusão à Guerra do
Vietnam.
Simon
colheu a versão de “Scarborough Fair” de uma gravação do cantor britânico
Martin Carthy, que ao que parece foi o autor da melodia (a melodia original se
perdeu). Quando ele descobriu que a melodia era de Carthy, pediu desculpas e os
dois cantaram a música juntos num show em Londres. (Não sei como acertaram o
imbróglio dos direitos autorais.)
Compositores
usam canções antigas, de autoria anônima, como ponto de partida para a criação
de canções mais complexas. Chico Buarque (“Teresinha”, “Até Pensei” etc),
Sidney Miller (“Passa Passa Gavião”, “Marré de Cy”, “Menina da Agulha” etc.).
Todo mundo recorreu a cantigas de roda, a cirandas, a acalantos.
Voltando
a “Scarborough Fair”: é fora de dúvida que Dylan conhecia bem a balada inglesa
original, e de lá tirou a semente para “Girl of the North Country”. Fez isso
com muitas outras. O exemplo que me vem de memória, sem precisar consultar os
discos, é “A Hard Rain’s A-Gonna Fall”, cujo refrão ele tirou de uma das “Child Ballads”, a famosa “Lord Randall”;
Where have ye been all
the day, my own dear darling boy?
Where have ye been all the day, my own dear
comfort and joy?
I have been to my stepmother, make my bed, mummy,
do.
Make my bed,
mummy, do.
O que
faz o artista criativo? Pega esses versos alheios, colhe o grão de verdade
psicológica e de síntese poética (essa mãe que pergunta insistentemente ao
filho, estrofe após estrofe, o que ele foi fazer na casa da madrasta), e usa
essa estrutura de pergunta e resposta de maneira original e contemporânea:
Oh, where have you
been, my blue-eyed son?
And where have you been, my darling young one?
I've stumbled on the side of twelve misty mountains
I've walked and I've crawled on six crooked highways
I've stepped in the middle of seven sad forests
I've been out in front of a dozen dead oceans
I've been ten thousand miles in the mouth of a graveyard
And it's a hard, it's a hard, it's a hard, and it's a hard
It's a hard rain's a-gonna fall.
Já o tema
da “ida para a feira” é um tema medieval, onde as feiras das cidades eram o
grande acontecimento, tal como se preservou no Nordeste. Aos meus olhos, “Parsley,
sage, rosemary and thyme” é um pedido, feito pela pessoa que canta, para que o
interlocutor lhe traga algumas coisas da feira. É como se dissesse: “Coentro,
cheiro verde, salsa e cebolinha”.
Basta
lembrar de Elomar (“O Pedido”):
Já que tu vai lá pra
feira traga de lá para mim
água da fulô que
cheira, um novelo, e um carrim...
Traz um pacote de
misse, meu amigo, ah se tu visse
Aquele cego cantador,
que um dia ele me disse
Jogando um mote de
amor:
Que eu havera de viver
por esse mundo
E morrer ainda em
flor...
Basta
lembrar de Luiz Gonzaga (“Moça da Feira”, de Armando Nunes e Jeová Portela):
Se não chover, amanhã
vou passear
Comprar farinha lá na
feira do Pilar...
Esses
começos são o que eu chamo “linha de chamar verso”, um pequeno número inicial
de linhas que pertencem à tradição, que a gente ouviu mil vezes em mil vozes, e
que usa para abrir uma canção nova, na esperança de que alguma coisa nova
apareça.
Servem
como um mote. Só que um mote ao contrário, que em vez de aparecer no fim da estrofe
aparece no começo. Falei a respeito disso neste texto sobre Nei Lopes:
Pense
numa linha simples, forte, clara, como “Quando
eu vim da minha terra”. Quem não entende essa idéia? Quem não percebe o
milhão de idéias que se acotovelam e se empurram por trás dela, doidas para
serem versadas?
Pessoas
chamam variadamente de “literatura oral”, “cultura oral”, “folclore”, “poesia
popular” etc. etc. esse universo de versos recitados ou cantados, milhões
deles, dezenas de milhões, que vêm atravessando os séculos e se espalhando de
país em país, de geração em geração. É o chamado “domínio público”. É público.
É do povo. É seu, também. Mas você não é dono.
E sempre
que recorremos à inspiração usando algum elemento de uma obra alheia, a regra,
para mim, é muito simples: “Você pode
usar um pedaço de uma criação alheia, desde que a parte criada a partir dela
seja maior e melhor do que a parte alheia que foi tomada de empréstimo”.
Devemos
usar o que é de domínio público como ponto de partida, nunca como a parte mais
importante da nova obra. E idealmente devemos usar de tal maneira que o dono da
obra original pudesse ver a obra que você criou a partir da dele, e dizer:
“Puxa vida, que coisa bacana, fico orgulhoso de meu trabalho ter servido de inspiração
para produzir uma coisa tão legal”.
É difícil,
mas acontece.