Perto da meia-noite de 28 de fevereiro de 1986, o
primeiro-ministro da Suécia, Olof Palme, foi atacado a tiros numa rua de
Estocolmo, quando saía do cinema com a esposa. Era inverno, havia pouca gente
na rua, alguns transeuntes pararam e tentaram socorrê-lo. A esposa de Palme
estava ferida com um tiro de raspão nas costas. Os dois foram levados para o
hospital, onde Palme morreu pouco depois.
Matar um primeiro-ministro no meio da rua parece uma
coisa arriscada, mas o fato é que até hoje o culpado pelo assassinato de Palme
não foi oficialmente descoberto, embora a polícia fizesse algumas prisões (logo
tornadas sem efeito) e explorasse várias linhas de investigação, que nunca
deram em nada.
Uma dessas linhas é a que foi encampada pela série em exibição na Netflix, Assassinato do
Primeiro Ministro (“The Unlikely Murderer”, 2021), dirigido por Wilhelm
Behrman e Niklas Rockström. São cinco episódios baseados no livro do jornalista
sueco Thomas Pettersson, que tem uma teoria bastante nítida (embora
questionável) sobre quem é o assassino de Palme.
(Robert Gustaffson, como Stig Engstrom)
A série propõe a hipótese de que o criminoso é o homem
que durante todo o inquérito foi chamado “o Homem da Skandia”, nome da empresa
onde trabalhava. Stig Engstrom estava no local do crime, e foi uma das
primeiras pessoas a prestar socorro ao primeiro-ministro. Diz ele que tentou
perseguir o assassino e chamar a polícia, e que por esse motivo foi avistado,
correndo, por algumas testemunhas, que o teriam confundido com o criminoso. Um
dos principais “nós cegos” da investigação reside juntamente na dificuldade em
deslindar o depoimento de Engstrom dos depoimentos alheios.
A série mostra o crime acontecendo logo nos minutos
iniciais, e assume o risco de afirmar, sem sombra de dúvida, que Stig Engstrom
matou o ministro. Essa teoria é minuciosamente apresentada e argumentada ao
longo dos cinco capítulos desta série “fechada”. A polícia sueca, em 2020,
afirmou oficialmente que Engstrom era o suspeito mais provável. O problema é
que ele morreu em 2000, numa morte que pode ter sido acidente ou suicídio.
Filmar crimes reais não-resolvidos é diferente de filmar
crimes reais que tiveram desfecho. Mais do que nunca temos a consciência de que
o que vemos na tela é uma mistura de reconstituição de fatos ocorridos e
visualização de fatos que ninguém pode provar que aconteceram.
Por que a polícia não solveu o crime?
(Mikael
Persbrandt, como o chefe de investigação Hans Holmer)
Principalmente pela desorganização e falta de “cancha” da
polícia sueca para solver um caso onde as pressões políticas e populares (da
mídia, inclusive) eram enormes. Jogo de interesses, narcisismo, briga pelo
poder, policiais sabotando-se mutuamente em busca de holofotes e promoção
pessoal.
Podemos chamar de “política policial” ao jogo de poder
entre os encarregados das investigações criminais, e isso
muitas vezes está ausente na literatura policial clássica. Mesmo em romances do
chamado “police procedural”, os investigadores
são muitas vezes mostrados como um corpo homogêneo, onde as dissensões são
apenas quanto à interpretação das pistas, etc., mas sem nenhuma motivação
visível em termos de luta pelo poder dentro da própria estrutura policial.
Não é o que se vê na série, que mostra a polícia como um
ninho de cobras, num retrato crítico só inferior ao modo como retrata “o Homem
da Skandia”, um indivíduo patético, mesquinho, em busca de posições de poder,
ressentido com tudo e com todos, o que o levou (diz a série) a descarregar num
adversário político as frustrações de uma vida inteira. Nem a polícia o levou a
sério. Somente Pettersson, um repórter que pegou o bonde andando anos depois.
A literatura policial, desde o seu começo, usa muito o Jornalista em contraposição ao Detetive, oficial ou particular. Um clássico
de 1907, O Mistério do Quarto Amarelo,
de Gaston Leroux, mostra o repórter Rouletabille metendo o bedelho na
investigação de um crime, onde acaba por achar a solução.
Um policial da Scotland Yard ou um detetive particular da
Califórnia investigam crimes, respectivamente, por ordem dos seus superiores ou
por incumbência de um cliente. O jornalista representa um tipo diferente de
empreitada. Seu objetivo não é punir o criminoso, é revelar sua identidade,
noticiar “o que de fato aconteceu”. O fato de não ser um funcionário público
faz com que ele trabalhe com menos recursos (equipes, laboratório, poder de
prisão, etc.), mas por outro lado lhe dá mais agilidade. Pettersson (pelo menos
o Pettersson mostrado na série que ele próprio roteirizou) consegue atravessar
o emaranhado de pistas falsas e detalhes irrelevantes e chegar à “solução” do
crime.
A série é muito bem escrita e dirigida, e o ator que faz
o papel do “Homem da Skandia” é excelente em sua criação do típico “Tiozão do Pavê”:
titubeante, vítima de bullying-adulto pelos colegas, implicante, arrogante,
viciado em pequenas mentiras, ansioso por notoriedade. Existe uma tensão
visível entre ele e a esposa (interpretada por Eva Melander), num daqueles
casamentos bergmanianos feitos de meias palavras e perguntas não respondidas.
Com o passar dos dias e dos anos ela vai cada vez mais se convencendo de que
alguma coisa não está batendo bem no comportamento do marido, cujas fraquezas
ela conhece melhor do que ninguém.
O assassinato de Olof Palme é um tem que sempre me interessou - e que ainda vai render páginas e páginas e filmes - principalmente pela aparente falta de resolução e pelo fato de um primeiro-ministro em um país seguro ser assassinado, quase sem motivo, ao voltar caminhando do cinema.
ResponderExcluir