Escrever ficção baseada em pessoas reais é uma coisa perigosa,
principalmente se as pessoas ainda estiverem vivas. Quanto mais remoto o morto
famoso, mais fácil usá-lo num romance: aí estão centenas de filmes fazendo
fanfic com a vida alheia, desde Napoleão até Billy the Kid, desde Leonardo da
Vinci até Sigmund Freud.
Numa entrevista à revista Locus (# 492, janeiro 2002), Kim Stanley Robinson comenta esse tipo
de saia-justa literária:
Não é aconselhável criticar pessoas reais do passado, quando você lhes
atribui palavras que afinal são suas. Isto se mistura ao problema ético de todo
biógrafo, um problema que eu mesmo não gostaria de encarar. Howard Waldrop, por
exemplo, demonstra uma afeição verdadeira pelos “personagens reais” que
retrata, e isso pode contornar o problema, mas se você está criticando esses “personagens
reais” eles não passam de alvos que você cria para poder derrubar.
Joyce Carol Oates encarou esse desafio em sua coletânea
de contos Wild Nights! - Stories About the Last Days of Poe, Dickinson, Twain, James and Hemingway (Harper
Collins, 2008). Em cinco histórias, ela ficcionaliza os últimos dias de vida de
cinco personalidades literárias dos EUA (com pequenas variantes – cada conto
tem uma proposta própria). Algum leitor-fã poderá se sentir ofendido.
Vejamos desde logo o conto “Grandpa Clemens &
Angelfish, 1906”. Ao que parece, o grande Mark Twain tinha um certo fascínio
estético pelas garotinhas pré-púberes e adolescentes, entre dez e dezesseis
anos. Ele criou um clube chamado “Angel Fish and Aquarium Club”, com garotas a
quem ele dava presentes e tratava como suas “netinhas”. Pois bem, é o que basta
para Joyce Carol Oates compor um conto devastador onde o escritor torna-se
amigo e afetuoso correspondente de uma garota e depois a abandona, quando ela
atinge “a idade desinteressante”. Seus últimos momentos de vida são um pesadelo
em que ele é perseguido por garotinhas que o espancam, rindo às gargalhadas.
Igualmente cruel (e igualmente inspirado em fatos reais)
é o conto “The Master at St. Bartholomew’s”. O mestre é Henry James, o rei do
subentendido e do understatement, o
prestidigitador de sentimentos não-expressos, desejos inefáveis e tragédias
mudas. Em plena Primeira Guerra Mundial, num chá elegante com senhoras da
sociedade londrina, ele impulsivamente se oferece como voluntário para ajudar
na recuperação de soldados ingleses feridos.
Começa aí uma descida aos infernos que horroriza e
fascina James, um homem tímido, tido como homossexual reprimido durante a vida
inteira, e que talvez tenha morrido virgem. Ao penetrar nas enfermarias
repletas e caóticas do hospital St. Bartholomew’s, ele se vê diante da tragédia
do corpo, da miséria do corpo, dos salões sufocantes com cheiro de mijo, de
peido, de bosta, de carne gangrenada, de cotos de membros decepados. É o mundo de
todas as coisas desagradáveis (sujeira corporal, penicos cheios, vômito) que
nunca tinham encontrado espaço na sua ficção, uma ficção voltada para salões
elegantes, chás-das-cinco, “garden parties”. E, ao que parece, ali naquele
inferno nauseabundo o mestre encontra um sucedâneo do amor.
Diante disto tudo, fico sem saber como classificar “Papa
at Ketchum, 1961”, em que a escritora acompanha o monólogo interior de Ernest
Hemingway na decadência física, emocional e mental dos dias que precederam seu
suicídio em 2 de julho de 1961. A reta final do autor de O Velho e o Mar foi algo triste. Vi em algum lugar uma de suas
últimas entrevistas filmadas: ele precisava ler num papel as próprias
respostas. Ferimentos de guerra, acidentes, diabetes, bebida, depressão, tudo
contribuiu para que ele vivesse um processo ladeira-abaixo em seus derradeiros
anos.
Joyce C. Oates descreve esses dias como o pesadelo de um
machão que fez da força e da valentia a viga central da própria vida, e se vê
agora reduzido a um velhote gagá, apoiando-se numa bengala e bebendo escondido.
É um retrato cruel (mais uma vez), mas provavelmente autêntico, inclusive no
modo como ele repete para si mesmo de que modo irá carregar a espingarda de
dois canos, sentar na cadeira, apoiar a coronha no tapete (porque no chão liso
ela pode deslizar), apertar o gatilho com o dedão do pé descalço...
Não é uma leitura leve. E por mais que o protagonista
seja pouco simpático, a gente acaba admirando a mera obstinação de um homem que
foi ferido na guerra, teve problemas graves de saúde a vida inteira, na velhice
foi submetido a pesadas terapias de eletrochoque, tomava remédios tarja-preta,
bebia constantemente, mas teimava e resistia. Até que...
Hemingway não foi o único da família a se suicidar: seu
pai Clarence, sua irmã Úrsula, seu irmão Leicester e sua neta Margaux morreram
da mesma forma.
Estes três contos podem ser considerados como narrativas
bastante realistas, admitindo-se a liberdade ficcional de fantasiar
pensamentos, devaneios, pesadelos, etc.
O mesmo não acontece com o conto que abre o volume: “Poe Posthumous, or
The Light-House”. É um conto despudoradamente fantástico. A premissa é de que
Poe, no mês de outubro de 1849 em que morreu, teria ao invés disso encontrado
uma espécie de mecenas que assumiu suas dívidas e despesas, e em troca disso o
enviou para tomar conta, sozinho, de um farol localizado a duzentas milhas da
costa do Chile.
Joyce C. Oates revela que a idéia para este conto lhe
veio de um fragmento de poucas páginas, deixado inédito pelo próprio Poe, “The
Light-House” – fragmento este que também foi usado recentemente como ponto de
partida para o filme O Farol (2019)
de Robert Eggers, com Willem Dafoe e Robert Pattinson.
Aqui, um link para o texto original de Poe:
https://eapoe.org/works/tales/lightha.htm
Oates parte desta idéia inicial de Poe, de um homem
encarregado de cuidar sozinho de um farol, e desenvolve uma narrativa meio
gótica, porque o farol em si é uma estrutura “de origem desconhecida”, que
remonta a “antes da chegada dos conquistadores espanhóis”, e cuja escadaria
apresenta um número diferente de degraus, cada vez que ele faz a contagem. E é
uma história também meio lovecraftiana, porque as tempestades frequentes
naquela latitude começam a trazer para as “piscinas” rasas formadas na rocha
seres com aparência feminina, ao mesmo tempo repulsivas e atraentes, as
“ciclófagas”. E mais não digo.
Se o conto sobre Poe já tem uma aura de ficção
científica, o texto de Oates sobre Emily Dickinson, “EDickinsonRepliLuxe”, nos
conduz para um futuro próximo onde é possível comprar ciborgues domésticos,
feitos à imagem e semelhança de vultos famosos, celebridades da História.
O sr. e a sra. Krim são um casal mais ou menos afluente,
marido endinheirado e esposa com ambições culturais (ela se considera poeta). Os
dois adquirem uma ciber-réplica de Emily Dickinson e é ao mesmo tempo engraçado
e patético acompanhar o nervosismo da dona da casa, que passa o dia espreitando
sorrateiramente “Emily” em suas andanças pela casa. O ciborgue, aliás, tem a
aparência externa da pessoa original, menos a estatura, que não ultrapassa um
metro e meio.
Isto dá à “Emily” algo de boneca, mas ela tem iniciativa,
apesar de ser introspectiva e tímida. Prepara e serve o chá, cuida das próprias
roupas... e enquanto isto a sra. Krim vive na sua cola, ansiosa para presenciar
o momento em que a grande poeta irá produzir um poema novo, um poema que não tinha sido escrito ainda, e esse
poema terá sido escrito na casa da sra. Krim! É a glória.
Joyce Carol Oates (nascida em 1938) é uma escritora
respeitada nos EUA, mas raramente é citada nos textos sobre literatura
fantástica e FC. Há um bom verbete sobre
ela na “Science Fiction Encyclopedia” (https://sf-encyclopedia.com/entry/oates_joyce_carol) Pela avaliação de John Clute nesse texto, as
duas décadas deste século têm mostrado uma inclinação cada vez maior da autora pelas
narrativas fantásticas.
Ela já ganhou por três vezes o principal prêmio da
literatura de horror, o Bram Stoker Award, com Zombie (1996), The Corn
Maiden and Other Nightmares (2011) e Black
Dahlia and White Rose: Stories (2012), além do World Fantasy Award por Fossil Figures (2011).
O livro que comentei aqui, Wild Nights!, foi publicado no Brasil sob o título Descanse em Paz, com tradução de Elisa
Nazarian. Ao que parece, saíram edições pela Texto Editores e pela LeYa.
Há um artigo sobre o uso de personalidades históricas para fins ficcionais, mas especialmente sobre o uso extensivo de Henry James para este fim (incluindo o St. Bartholomew), no saite da Universitá degli studi Milano:
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