terça-feira, 30 de novembro de 2021

4769) "The Beatles - Get Back" - parte 1 (30.11.2021)



Em janeiro de 1969 aconteceu a gravação do chamado “Projeto Get Back”, dos Beatles, agora transformado em série de TV por Peter Jackson (exibida pelo Disney Channel). O novo diretor, acertadamente, organizou o material numa implacável ordem cronológica, o que acaba criando um efeito de suspense dentro de um documentário – pelo uso da contagem regressiva rumo ao evento final.
 
Os Beatles (somos informados nos letreiros iniciais) têm menos de um mês para terminar de compor 14 canções, ensaiá-las, fazer um show, gravar um disco e um especial de TV. Na gravação que vemos agora, Ringo Starr e John Lennon estão com 28 anos, Paul McCartney com 27, e George Harrison está às vésperas de completar 26 anos, no mês de fevereiro seguinte.
 
Para mim, não importa que eles sejam milionários, poderosos, “celebridades” (no repulsivo jargão de hoje em dia). São quatro rapazes. Talentosos, calejados, que àquela altura da vida já tinham mais tempo de palco e de estúdio do que qualquer músico de sua geração. Trabalhavam contra o relógio e contra o calendário, pressionados por interesses comerciais gigantescos que sempre fugiram ao seu controle. A biografia Shout! de Philip Norman me parece a que melhor registra o descalabro econômico que foi o sucesso dos Beatles, onde muita gente acabou ganhando mais dinheiro do que eles, na mera assinatura de alguns contratos.
 
Havia a pressão dos prazos, da necessidade de grana (“Quanto mais rico você é, de mais grana você precisa” – reza o Primeiro Mandamento do Capitalismo), da bagunça na vida pessoal de cada um (drogas, polícia, casamentos, separações, namoros, endeusamento da mídia, perseguição da mídia).



("I'm Only Sleeping")
 
E o bem documentado Bill Harris, na The Ultimate Beatles Encyclopedia (1992), lembra que os estúdios de Twickenham, onde eles começaram a gravar em 2 de janeiro, tinham sido alugados para o horário diurno. Os Beatles, famosamente notívagos, tinham que começar a ensaiar diariamente às 8 da manhã. Num estúdio gélido, amplo como um hangar, em pleno “aconchego” de um inverno inglês. Como se diz hoje em dia: “Ninguém merece.”
 
Ali, eles tinham que passar o ensaio inteiro envergando seus custosos e cafonas casacos de pele, bocejando, tiritando, bafejando nos dedos enregelados, e tentando recuperar – quem sabe? – um pouco da animação que tinham quando tocavam seis horas por noite nos clubes de Hamburgo, anonimamente, menos de dez anos antes. (E haja bagunça e gritaria, para desenferrujar os dedos, para esquentar o sangue.)
 
Em todo caso... trabalho é trabalho. E o que há de fascinante em séries como esta é acompanhar o processo de criação de músicas. Algumas entraram no disco oficial Let It Be, é claro. Muitas ficaram pelo meio do caminho e nunca foram gravadas pra valer. Outras acabaram brotando algum tempo depois nos discos individuais de um ou de outro, como “All Things Must Pass” de Harrison ou “Gimme Some Truth” de Lennon.
 
Esse processo de ir compondo, arranjando e gravando uma canção de rock, pedaço por pedaço, já havia sido documentado no filme de Jean-Luc Godard com os Rolling Stones, que aparece em duas versões diferentes com os títulos de One Plus One e Sympathy For The Devil. (Para quem se interessar, tem em streaming no saite “Belas Artes À La Carte”).
 
Tem gente que pensa que uma canção é como um ovo, algo que a galinha já bota pronto. Na verdade ela se parece com um ovo de mármore, algo que tem de ser esculpido com todo cuidado até ganhar aquela forma, tão perfeita que parece espontânea.


("A Day in the Life")
 
Ainda hoje vejo pessoas se referindo às composições dos Beatles em termos como “foi uma letra de John Lennon musicada por Paul McCartney...” Não é assim. Em geral, um dos dois fazia a primeira parte, completa, e o outro fazia a segunda.

E eles usavam o método aproximativo: repetir os trechos mil vezes e ir trocando palavras, notas, acordes, tornando a canção mais tensa, mais forte, mais vibrante, mais expressiva. Um processo que era basicamente de John & Paul, mas no qual os outros eventualmente davam palpites.
 
Esse processo, mostrado em Get Back, já era descrito por Hunter Davies na biografia autorizada do grupo (1968), onde o biógrafo descreve fases da composição de “With a Little Help From My Friends”, “A Day in the Life” e outras..
 
Qualquer dupla ou trio de compositores que se junta para compor “na hora” passa por um processo semelhante. É algo distinto da composição solitária, de quando a gente está botando música numa letra alheia, ou letra numa música. A composição “na hora” envolve um processo de um milhão de idas e vindas, pausas, conversas noutro assunto, voltas, novas tentativas, novas anotações, sugestão de novos caminhos, experimentação, constatação de que aquilo não levou a nada, retorno para o formato anterior...
 
Precisa gostar muito de música para fazer isso. E fazer isso diante de 20 ou 30 pessoas estranhas (câmeras, fotógrafos, eletricistas, técnicos de som, aspones) exige uma energia e uma paciência notáveis.
 
A maioria das pessoas que trabalha com música gosta de música e se diverte fazendo música, mesmo nesses momentos de incerteza, de frustração, de sensação de “eu sou um incompetente, um idiota, e todo mundo está vendo”. A toda hora tem uma piada, um gracejo, uma brincadeira de “vamos tocar aquela antiga que todo mundo curte”. Isso faz com que muita gente não considere isso um trabalho. “Ora essa... Os caras param quando querem, contam piadas, tomam cafezinho, estão rindo o tempo todo... Que trabalho é esse?!”
 
O conceito religioso-capitalista de que “trabalho é missão, não pode ser prazer” não admite esse sistema.


("While My Guitar Gently Weeps")
 
Muita gente deverá se chocar com a quantidade enorme de brincadeiras, paródias, imitações, empostações de voz e molecagens que os Beatles fazem. Ora, o ambiente estava tenso. A banda estava a ponto de romper ali mesmo. Era questão de tempo. Lennon e Paul recorrem a todo tipo de palhaçada para desanuviar a irritação de todos. (Oito da manhã no inverno? Ninguém merece.)
 
E há outra coisa. Quando você está ensaiando uma música semi-pronta que vai ser gravada, quanto mais variações, distorções, exageros se colocar, melhor. Só se chega à forma final da música vindo de 100 direções diferentes. Subir o tom, baixar o tom, acelerar, ralentar o ritmo, gritar, fazer barulho... Não, a música final não vai ser assim. Mas a forma dela vai sendo percebida, conquistada, domesticada, em cada uma dessas caricaturas.
 
Alguém já disse, referindo-se a futebol, que torcedor de verdade não é o que vai ao jogo, é o que vai ao treino. Ir ao treino pode ser indício de algum fanatismo, mas para um certo tipo de torcedor é uma experiência educativa. Jogo pode ser espetáculo; mas o treino é trabalho puro. O mesmo vale para o ensaio musical. Uma coisa é estar no palco diante de 100 mil pessoas, recebendo ovações. Outra coisa é repetir um take 20 ou 30 vezes até tudo acontecer como foi combinado. 
 
Get Back (vi até agora apenas a Parte 1) consegue a útil proeza de nos fazer sentir esse processo num esticamento de tensão, à medida que o calendário aparece na tela, e mais um dia de trabalho é dado por findo, aproximando o grupo cada vez mais do fim do prazo. E do fim da própria banda.
 
Muito bem encaixada a canção de Harrison, “Isn’t It a Pity?” para fechar o primeiro episódio.

 

Aqui, a parte 2:

https://mundofantasmo.blogspot.com/2021/12/4771-beatles-get-back-parte-2-6122021.html 

E a parte 3 (final):

https://mundofantasmo.blogspot.com/2021/12/4773-beatles-get-back-parte-3-12122021.html