Preparando uma palestra sobre Jorge Luís Borges, fui bater numa das ótimas coletâneas de diálogos que ele manteve com Osvaldo Ferrari (Sobre os Sonhos e outros diálogos, São Paulo, Ed. Hedra, 2009; são três volumes, sendo os outros dois intitulados Sobre a Amizade... e Sobre a Filosofia...).
https://mundofantasmo.blogspot.com/2010/06/2184-conversacoes-de-borges-932010.html
OF – O mar.JLB – O mar, sim, que está presente na literatura portuguesa e ausente na literatura espanhola. Por exemplo, o Quixote é um livro...OF – De planície.JLB – Sim, por outro lado os portugueses, os escandinavos, os franceses – por que não? – depois de Hugo, sentem o mar. E Baudelaire também sentiu e, evidentemente, o autor de O barco bêbado, Rimbaud, sentiu o mar, que nunca havia visto. Mas talvez não seja necessário ver o mar: Coleridge escreveu sua Balada do velho marinheiro sem ter visto o mar, e quando o viu sentiu-se defraudado.
Ou seja: LeGuin reafirma que boas
leituras e boa imaginação são o bastante para que um escritor possa falar sobre
uma atividade complexa que nunca experimentou.
No caso de Rimbaud e de Coleridge, fiquei com a pulga
atrás da orelha. Acreditei em Borges quando ele disse que Rimbaud nunca havia
visto o mar (viu depois de abandonar a poesia, quando cruzou algumas vezes o
Mediterrâneo, fazendo o trajeto Marselha/África). De onde teria tirado as
imagens e a inspiração para o poema em que o Barco conta, na primeira pessoa,
suas aventuras e suas visões delirantes pelos oceanos afora?
Borges não citaria em vão esses dois poetas. Em “Pierre
Menard, autor do Quixote” (em Ficções,
1944), ele faz Menard comparar justamente esses dois poemas com o livro que
assume como projeto:
Não posso imaginar [diz Menard] o universo sem a interjeição de Edgar Allan Poe: “Ah, bear in mind this garden was enchanted!” ou sem o “Bateau Ivre” ou o “Ancient Mariner”; sei-me contudo capaz de imaginá-lo sem o “Quixote”.
O tema aparente de Le Bateau Ivre é o maior lugar-comum deste mundo, é o “infecundo, o amargo mar”; tema retórico-poético, sem dúvida, para um adolescente que nunca arredara pé da terra firme e até então, setembro de 1871, conhecia quando muito o mar de Homero e Virgílio, de Hugo e Baudelaire; navegara também decerto nas coleções de viagens e aventuras, em Fenimore Cooper e no Robinson Français.
É a história das desventuras por que passou um marinheiro
com seu barco, atravessando cenários aterrorizantes e fantasmagóricos pelo mar
afora. Já escrevi a respeito desse poema e de sua excelente edição brasileira,
pela Ateliê Editorial, com tradução de Alípio Correia de Franca Neto, aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2009/02/0831-balada-do-velho-marinheiro.html
Coleridge teria, portanto, cerca de 25-26 anos quando
compôs este poema, um dos seus textos mais famosos. Que experiência de mar
teria ele, então?
A “Balada do Velho Marinheiro” é, bem na linha dos
românticos ingleses de então, uma obra de imaginação, em que as visões íntimas
do poeta se sobrepõem às coisas que ele vê com os próprios olhos.
Sim, mas Coleridge já tinha feito uma viagem marítima, ou
não? Afinal, ele nasceu e passou a infância da região de Devon, no sudoeste da
Inglaterra, não muito distante do litoral. Havia muito mais chances de que ele
conhecesse o mar do que no caso de Rimbaud.
Ao que parece ele o conhecia como eu conheço: de olhar a uma prudente distância. Acabei recorrendo a um livro cheio de
informações preciosas e comentários oportunos sobre Coleridge e sua poesia: The Road to Xanadu – A Study in the Ways of
the Imagination, de John Livingston Lowes (Londres: Picador, 1978 – edição
original, 1927).
À página 61, Lowes comenta (trad. BT):
Há duas coisas que não devemos perder de vista à medida que avançamos. Foi somente seis meses após ter escrito “A Balada do Velho Marinheiro” que Coleridge, pela primeira vez, embarcou num navio para uma viagem marítima, e mesmo assim apenas para percorrer o trajeto entre Yarmouth e Cuxhaven. Ele está descrevendo [no poema] coisas que poderia conhecer apenas através de livros ou de histórias contadas sobre o mar. Ele nunca tinha visto nada daquilo. [ênfase no original] Este é o primeiro fato que devemos ter em mente. O segundo é que ele tinha visto aquilo tudo. [idem] E neste paradoxo encontra-se a pista para mais de um dos nossos enigmas.