sexta-feira, 15 de outubro de 2021

4754) O poeta que não conhece o mar (15.10.2021)



Preparando uma palestra sobre Jorge Luís Borges, fui bater numa das ótimas coletâneas de diálogos que ele manteve com Osvaldo Ferrari (Sobre os Sonhos e outros diálogos, São Paulo, Ed. Hedra, 2009; são três volumes, sendo os outros dois intitulados Sobre a Amizade... e Sobre a Filosofia...).
 
Falei sobre essa série aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2010/06/2184-conversacoes-de-borges-932010.html
 
Na página 77 desse livro, os interlocutores estão falando sobre o mar na literatura.
 
OF – O mar.
 
JLB – O mar, sim, que está presente na literatura portuguesa e ausente na literatura espanhola. Por exemplo, o Quixote é um livro...
 
OF – De planície.
 
JLB – Sim, por outro lado os portugueses, os escandinavos, os franceses – por que não? – depois de Hugo, sentem o mar. E Baudelaire também sentiu e, evidentemente, o autor de O barco bêbado, Rimbaud, sentiu o mar, que nunca havia visto. Mas talvez não seja necessário ver o mar: Coleridge escreveu sua Balada do velho marinheiro sem ter visto o mar, e quando o viu sentiu-se defraudado.
 
Ora, alguns dias atrás eu publiquei aqui no blog um depoimento bem humorado de Ursula LeGuin, onde ela afirmava não conhecer nada sobre barcos, nunca ter navegado, e mesmo assim ter escrito viagens marítimas extremamente vívidas em seus livros da série “Earthsea” (“Terramar”), principalmente no terceiro volume, A Praia Mais Distante (“The Farthest Shore”). 

Ou seja: LeGuin reafirma que boas leituras e boa imaginação são o bastante para que um escritor possa falar sobre uma atividade complexa que nunca experimentou.
 
No caso de Rimbaud e de Coleridge, fiquei com a pulga atrás da orelha. Acreditei em Borges quando ele disse que Rimbaud nunca havia visto o mar (viu depois de abandonar a poesia, quando cruzou algumas vezes o Mediterrâneo, fazendo o trajeto Marselha/África). De onde teria tirado as imagens e a inspiração para o poema em que o Barco conta, na primeira pessoa, suas aventuras e suas visões delirantes pelos oceanos afora?
 
Borges não citaria em vão esses dois poetas. Em “Pierre Menard, autor do Quixote” (em Ficções, 1944), ele faz Menard comparar justamente esses dois poemas com o livro que assume como projeto:
 
Não posso imaginar [diz Menard] o universo sem a interjeição de Edgar Allan Poe: “Ah, bear in mind this garden was enchanted!” ou sem o “Bateau Ivre” ou o “Ancient Mariner”; sei-me contudo capaz de imaginá-lo sem o “Quixote”.




Fui me socorrer de um dos meus livrinhos preferidos, Le Bateu Ivre – Análise e Interpretação de Augusto Meyer (Rio: Livraria São José, 1955, 96 págs.).
 
Nele, o poeta traduz e analisa “O barco bêbado”, indica suas fontes de inspiração, examina suas inovações vocabulares, cita precursores e influências... Enfim, é um livrinho que me acompanha desde os vinte anos.
 
Rimbaud nasceu em outubro de 1854, e escreveu “Le Bateau Ivre” aos dezesseis anos, influenciado pela leitura dos romances marítimos de Julio Verne. Augusto Meyer rastreia outras influências, como a do Magasin Pittoresque, cuja coleção o poeta provavelmente consultou quando ficou hospedado na casa do seu professor e amigo Georges Izambard.
 
Para conhecer melhor a vida do poeta, há no YouTube um excelente documentário de duas horas, dirigido por Richard Dindo, com legendas em português, com atores e atrizes recitando trechos das cartas e depoimentos dos parentes e amigos de Rimbaud, além dos próprios versos dele:

https://www.youtube.com/watch?v=8X4-9pepY_A&t=360s
 
À página 20 de seu livro, Augusto Meyer comenta:
 
O tema aparente de Le Bateau Ivre é o maior lugar-comum deste mundo, é o “infecundo, o amargo mar”; tema retórico-poético, sem dúvida, para um adolescente que nunca arredara pé da terra firme e até então, setembro de 1871, conhecia quando muito o mar de Homero e Virgílio, de Hugo e Baudelaire; navegara também decerto nas coleções de viagens e aventuras, em Fenimore Cooper e no Robinson Français.
 
Não chega a ser uma prova conclusiva, mas tudo indica de fato que Rimbaud, ao produzir seu poema, nunca tinha ido muito além de sua cidadezinha natal de Charleville (que é mostrada de maneira vívida no documentário citado acima).
 
E quanto a Coleridge?
 
Samuel Taylor Coleridge, um dos grandes poetas românticos ingleses, nasceu em outubro de 1772 e escreveu The Rime of the Ancient Mariner, um dos seus poemas mais visionários, entre 1797 e 1798. A primeira publicação dele foi em 1798, como parte do volume das Lyrical Ballads


É a história das desventuras por que passou um marinheiro com seu barco, atravessando cenários aterrorizantes e fantasmagóricos pelo mar afora. Já escrevi a respeito desse poema e de sua excelente edição brasileira, pela Ateliê Editorial, com tradução de Alípio Correia de Franca Neto, aqui:
 
https://mundofantasmo.blogspot.com/2009/02/0831-balada-do-velho-marinheiro.html
 
Coleridge teria, portanto, cerca de 25-26 anos quando compôs este poema, um dos seus textos mais famosos. Que experiência de mar teria ele, então?
 
A “Balada do Velho Marinheiro” é, bem na linha dos românticos ingleses de então, uma obra de imaginação, em que as visões íntimas do poeta se sobrepõem às coisas que ele vê com os próprios olhos.
 
Sim, mas Coleridge já tinha feito uma viagem marítima, ou não? Afinal, ele nasceu e passou a infância da região de Devon, no sudoeste da Inglaterra, não muito distante do litoral. Havia muito mais chances de que ele conhecesse o mar do que no caso de Rimbaud.
 
Ao que parece ele o conhecia como eu conheço: de olhar a uma prudente distância. Acabei recorrendo a um livro cheio de informações preciosas e comentários oportunos sobre Coleridge e sua poesia: The Road to Xanadu – A Study in the Ways of the Imagination, de John Livingston Lowes (Londres: Picador, 1978 – edição original, 1927).


À página 61, Lowes comenta (trad. BT):
 
Há duas coisas que não devemos perder de vista à medida que avançamos. Foi somente seis meses após ter escrito “A Balada do Velho Marinheiro” que Coleridge, pela primeira vez, embarcou num navio para uma viagem marítima, e mesmo assim apenas para percorrer o trajeto entre Yarmouth e Cuxhaven. Ele está descrevendo [no poema] coisas que poderia conhecer apenas através de livros ou de histórias contadas sobre o mar. Ele nunca tinha visto nada daquilo. [ênfase no original] Este é o primeiro fato que devemos ter em mente. O segundo é que ele tinha visto aquilo tudo. [idem] E neste paradoxo encontra-se a pista para mais de um dos nossos enigmas.
 
A literatura imaginativa repousa nessa dualidade, nessa capacidade de ver o que não foi visto, de ver com a imaginação e não com os olhos, de ser capaz de construir mentalmente uma sucessão aparentemente inesgotável de imagens complexas que são produto apenas da imaginação, e não têm correspondente no mundo real.
 
Os poetas românticos ingleses (Coleridge, Wordsworth, Byron, Shelley) cultivavam essa capacidade de visualizar o inexistente, que não é diferente do que é feito por Ursula LeGuin ou J. R. R. Tolkien ou George R. R. Martin ou qualquer escritor de fantasia contemporânea.
 
Coleridge era, a julgar por suas cartas e seus diálogos, um indivíduo de memória visual extremamente aguda, e podemos dizer também que de extrema imaginação visual. O volume onde o poema do “Marinheiro” apareceu, Lyrical Ballads, é o mesmo onde o poeta usou pela primeira vez a expressão, hoje corrente, de “voluntária suspensão da descrença” (“willing suspension of disbelief”), como uma atitude necessária a quem lê uma obra de literatura imaginativa.
 
O fato de Rimbaud ou Coleridge escreverem sobre viagens marítimas sem ter tomado parte nelas não é mais surpreendente do que o fato de Gastão Cruls ter escrito A Amazônia Misteriosa (1925) antes de conhecer a floresta, ou de Ray Bradbury conceber suas Crônicas Marcianas (1950) sem ter pisado no planeta Marte.
 
 
 
 




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