sábado, 22 de maio de 2021

4706) Quem foi Conan Doyle (22.5.2021)



 
Quando eu tinha uns dez anos de idade, minha tia Adiza me comprou de presente (em módicas prestações, e remessas mensais) a coleção Obras de Conan Doyle, que a Editora Melhoramentos estava lançando. Eram 26 volumes, divididos em três coleções de cores diferentes: “Sherlock Holmes” (vermelha, 9 volumes), “Ficção Histórica” (azul, 8 volumes) e “Contos e Novelas Fantásticas” (verde, 9 volumes).
 
Todo mês ela pagava uma prestação, e ia comigo ao Correio, na Praça da Bandeira, receber um pacote com 2 livros; isso aconteceu durante treze meses. A primeira remessa trazia Um Estudo em Vermelho e A Companhia Branca. Preciso dizer que são até hoje dois dos meus livros preferidos?



 
Tive a coleção inteira, reli cada volume vinte vezes, e tenho ainda. Recomprei tudo nos sebos cariocas – porque pra mim as traduções recentes não têm interesse. Eeu quero o mesmo livro, a mesma capa, a mesma tradução, a mesma fonte.
 
Doyle é conhecido apenas como o criador de Sherlock Holmes, um mérito que qualquer escritor invejaria, mas de certa forma é uma injustiça para com o grande escritor que ele foi. Ninguém admira Holmes mais do que eu, que gosto até dos defeitos; mas me sinto no dever de reconhecer que a ficção histórica e a ficção científica de Doyle são ainda superiores às aventuras do maior detetive do mundo.

 
Eu aconselharia o leitor a conhecer este díptico de aventuras medievais, ambientado no século 14: The White Company (1891) e O Escudeiro Heróico (Sir Nigel) (1905-06). Os dois abordam o mesmo personagem, mas em cronologia inversa.
 
No primeiro livro, o jovem Aleine Edricson abandona o mosteiro onde era estudante e sai pela Inglaterra afora, tendo aventuras de estrada até tornar-se escudeiro do nobre Sir Nigel Loring, líder da Companhia Branca, uma espécie de milícia independente de soldados mercenários. É um Bildungsroman, um romance de formação que mostra um rapaz ingênuo, intelectual e cheio de conceitos abstratos deparando-se com a malícia, a rudeza, a violência e o bom humor da vida real.
 
No segundo livro, Doyle retroage no tempo e conta a juventude do próprio Sir Nigel, um rapaz de família nobre mas arruinada que consegue tornar-se cavaleiro e conquistar glórias no campo de batalha, durante a Guerra dos Cem Anos entre a Inglaterra e a França.

Outro personagem notável de Doyle é o Brigadeiro Gerard, Étienne Gerard, dos hussardos de Conflans. Um jovem oficial do exército de Napoleão: fanfarrão, conquistador, brigão, vaidoso, simpático, meio ingênuo... Um personagem engraçado mas complexo, um tipo de desenho psicológico que Doyle sabia executar muito bem. 

Ele “faz uma ponta” no romance Reminiscência de um Império (“Uncle Bernac”, 1897), mas suas aventuras propriamente ditas foram recolhidas em forma de contos, em dois volumes impagáveis: As Façanhas do Brigadeiro Gerard (1896) e As Aventuras de Gerard (1903). É um personagem que muitas vezes imaginei sendo interpretado no cinema por Gérard Depardieu com 30 anos de idade.



 
Além das aventuras serem divertidas e mirabolantes, Doyle consegue mostrar (isso está principalmente em Uncle Bernac) a pessoa de Napoleão, o modo como se relacionava com generais e nobres à sua volta.

Outro personagem doyleano, este bem mais famoso, é o grande Professor Challenger, que ele explorou em alguns romances de FC que estão entre o que a literatura inglesa produziu de mais interessante em sua fase vitoriana de “Scientific Romances”.


O mais famoso, e o melhor, é O Mundo Perdido (“The Lost World”, 1912), em que um grupo de exploradores ingleses vem à Amazônia e descobre seres pré-históricos ainda vivos. No livro, o Monte Roraima teria se separado do resto do terreno por um sismo qualquer, e graças a isto seres como iguanodontes, pterodáctilos e outros continuaram vivendo e reproduzindo-se. É Doyle em sua veia julioverniana, com um grupo de exploradores (Prof. Challenger, Lord John Roxton, Prof. Summerlee e o jovem jornalista Malone) atravessando a floresta, correndo perigos e discutindo sem parar.
 
O Veneno Cósmico (“The Poison Belt”, 1913) pega o mesmo grupo de personagens enfrentando uma situação apocalíptica: a Terra penetra numa região do espaço ocupada por um gás que ameaça matar envenenada a humanidade inteira. Eles conseguem se isolar, e depois percorrem a cidade de Londres deserta, coberta de cadáveres, até que... Mas não darei spoilers.
 
Challenger é um personagem explosivo, amedrontador, capaz de gestos afetuosos e de vociferações aterrorizantes contra a família, os amigos, os empregados. “Cheio de razão” (como se diz na Paraíba), não admite ser contestado nem questionado, e por isso quando se mete em alguma enrascada o leitor sente-se vingado um pouquinho. É o que ocorre em contos semi-humorísticos como “Quando o Mundo Gritou” e “A Máquina Desintegradora”, incluídos no volume O Veneno Cósmico.


Tem também
A Cidade Submarina (“The Maracot Deep”, 1929), em que um inventor meio maluco, o Dr. Maracot, cria uma batisfera que o leva ao fundo do mar, onde ele descobre uma espécie de Atlântida protegida por uma cúpula e entra em contato (e em choque) com essa civilização submarina.
 
Os contos fantásticos e de FC de Doyle são todos imaginativos, movimentados, e eram escritos para publicação nas revistas da época. Curiosamente, boa parte desses contos foi reunida aqui em duas coletâneas cujos títulos se fincaram na minha memória. Eu pensava que eram dois gêneros literários “oficiais”, de modo que na adolescência ainda passei muitos anos lendo um conto qualquer de um Fulano qualquer e classificando: “Isto aqui é um conto da-penumbra-e-do-invisível”.



Outro romances mostram Doyle em sua atividade constante, obstinada, de tornar-se uma espécie de sucessor de Sir Walter Scott em termos de romances históricos. Doyle pesquisava muito para escrever seus livros, e não foram poucas as vezes em que, lendo alguma coisa sobre a Inglaterra medieval, me deparei com episódios históricos que eu já tinha lido, tintim por tintim, em seus romances. Tinha sobre Scott a vantagem de uma prosa mais moderna, mais ágil, um olho observador enriquecido por todo um século 19 de realismo literário. Seu uso do diálogo é fluente, vívido, para romances de um século atrás. Seus tipos humanos são memoráveis.


 
A Curiosa História de Rodney Stone ("Rodney Stone", 1896) narra como o boxe surgiu na Inglaterra (o autor tem também uma coletânea chamada Contos do Ringue e de Guerra), como um canal de ascensão social para um jovem de origem humilde. Os Refugiados (“The Refugees”, 1893) funciona como dois romances num só: na primeira parte, vemos a corte francesa de Luís XIV, católica, na época em que era tramada a perseguição e exílio dos protestantes huguenotes; n segunda parte, esses huguenotes desembarcam na América do Norte e ali se envolvem em aventuras com índios, colonos, vaqueiros e caçadores.
 
Sobre o primeiro romance histórico de Doyle, A Narrativa de Miquéias Clarke (1889), escrevi aqui:
 
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/10/4631-o-soldado-e-o-fanatico-religioso.html
 
Uma excelente recolha de seus contos fantásticos, insólitos, “da penumbra e do invisível”, foi publicada recentemente pela Editora Bandeirola:


A obra de Conan Doyle demonstra que os gêneros literários são uma criação dos editores, dos livreiros e da imprensa, muito mais do que dos escritores. O meio século em que durou a carreira de Doyle (entre 1880 e 1930 aproximadamente) foi um período que a literatura da Inglaterra talvez nunca venha a igualar, em qualidade e quantidade. Doyle tinha como contemporâneos, concorrentes, e muitas vezes como amigos, autores como H. G. Wells, H. Rider Haggard, Arthur Machen, G. K. Chesterton, M. R. James, Oscar Wilde, Bram Stoker, Algernon Blackwood, Lord Dunsany, Rudyard Kipling, R. L. Stevenson...
 
Todos esses autores escreviam o que se chama hoje de romances policiais, romances de aventuras, romances de ficção científica, romances de costumes, romances de crítica social, romances de horror... Escreviam com liberdade, com ousadia, usando as fórmulas do momento mas sem se deixarem usar por elas. Tinham algo a dizer, e não uma receita a repetir. Cada um deles tinha uma voz literária própria, capaz de dobrar diante de si as convenções de qualquer gênero artificialmente criado pelos classificadores.
 
Hoje, 22 de maio, é a data do 162º. aniversário de nascimento do escritor. Aqui embaixo, coloco o link para o saite "Literatura Policial", que compartilhou esta entrevista, talvez o único registro da voz e da imagem de Doyle falando para uma câmera de cinema. Durante dez minutos, ele comenta a origem dos romances de Sherlock Holmes e do seu interesse posterior pelo Espiritismo.
 
https://literaturapolicial.com/2017/05/19/assista-ao-video-de-arthur-conan-doyle-falando-sobre-sherlock-holmes/