Tive a coleção inteira, reli cada volume vinte vezes, e
tenho ainda. Recomprei tudo nos sebos cariocas – porque pra mim as traduções
recentes não têm interesse. Eeu quero o mesmo livro, a mesma capa, a mesma
tradução, a mesma fonte.
Doyle é conhecido apenas como o criador de Sherlock
Holmes, um mérito que qualquer escritor invejaria, mas de certa forma é uma
injustiça para com o grande escritor que ele foi. Ninguém admira Holmes mais do
que eu, que gosto até dos defeitos; mas me sinto no dever de reconhecer que a
ficção histórica e a ficção científica de Doyle são ainda superiores às
aventuras do maior detetive do mundo.
Eu aconselharia o leitor a conhecer este díptico de
aventuras medievais, ambientado no século 14: The White Company (1891) e O Escudeiro Heróico (Sir
Nigel) (1905-06). Os dois abordam o mesmo personagem, mas em cronologia
inversa.
No primeiro livro, o jovem Aleine Edricson abandona o
mosteiro onde era estudante e sai pela Inglaterra afora, tendo aventuras de
estrada até tornar-se escudeiro do nobre Sir Nigel Loring, líder da Companhia
Branca, uma espécie de milícia independente de soldados mercenários. É um Bildungsroman, um romance de formação
que mostra um rapaz ingênuo, intelectual e cheio de conceitos abstratos deparando-se
com a malícia, a rudeza, a violência e o bom humor da vida real.
No segundo livro, Doyle retroage no tempo e conta a
juventude do próprio Sir Nigel, um rapaz de família nobre mas arruinada que
consegue tornar-se cavaleiro e conquistar glórias no campo de batalha, durante
a Guerra dos Cem Anos entre a Inglaterra e a França.
Outro personagem notável de Doyle é o Brigadeiro Gerard, Étienne Gerard, dos hussardos de Conflans. Um jovem oficial do exército de Napoleão: fanfarrão, conquistador, brigão, vaidoso, simpático, meio ingênuo... Um personagem engraçado mas complexo, um tipo de desenho psicológico que Doyle sabia executar muito bem.
Ele “faz uma ponta” no romance Reminiscência de um Império (“Uncle Bernac”, 1897), mas suas aventuras propriamente ditas foram recolhidas em forma de contos, em dois volumes impagáveis: As Façanhas do Brigadeiro Gerard (1896) e As Aventuras de Gerard (1903). É um personagem que muitas vezes imaginei sendo interpretado no cinema por Gérard Depardieu com 30 anos de idade.
Outro personagem doyleano, este bem mais famoso, é o
grande Professor Challenger, que ele explorou em alguns romances de FC que
estão entre o que a literatura inglesa produziu de mais interessante em sua
fase vitoriana de “Scientific Romances”.
O mais famoso, e o melhor, é O Mundo Perdido (“The Lost World”, 1912), em que um grupo de exploradores
ingleses vem à Amazônia e descobre seres pré-históricos ainda vivos. No livro, o
Monte Roraima teria se separado do resto do terreno por um sismo qualquer, e
graças a isto seres como iguanodontes, pterodáctilos e outros continuaram
vivendo e reproduzindo-se. É Doyle em sua veia julioverniana, com um grupo de
exploradores (Prof. Challenger, Lord John Roxton, Prof. Summerlee e o jovem
jornalista Malone) atravessando a floresta, correndo perigos e discutindo sem
parar.
O Veneno Cósmico
(“The Poison Belt”, 1913) pega o mesmo grupo de personagens enfrentando uma situação
apocalíptica: a Terra penetra numa região do espaço ocupada por um gás que
ameaça matar envenenada a humanidade inteira. Eles conseguem se isolar, e
depois percorrem a cidade de Londres deserta, coberta de cadáveres, até que...
Mas não darei spoilers.
Challenger é um personagem explosivo, amedrontador, capaz
de gestos afetuosos e de vociferações aterrorizantes contra a família, os
amigos, os empregados. “Cheio de razão” (como se diz na Paraíba), não admite
ser contestado nem questionado, e por isso quando se mete em alguma enrascada o
leitor sente-se vingado um pouquinho. É o que ocorre em contos semi-humorísticos
como “Quando o Mundo Gritou” e “A Máquina Desintegradora”, incluídos no volume O Veneno Cósmico.
Outro romances mostram Doyle em sua atividade constante,
obstinada, de tornar-se uma espécie de sucessor de Sir Walter Scott em termos
de romances históricos. Doyle pesquisava muito para escrever seus livros, e não
foram poucas as vezes em que, lendo alguma coisa sobre a Inglaterra medieval,
me deparei com episódios históricos que eu já tinha lido, tintim por tintim, em
seus romances. Tinha sobre Scott a vantagem de uma prosa mais moderna, mais
ágil, um olho observador enriquecido por todo um século 19 de realismo
literário. Seu uso do diálogo é fluente, vívido, para romances de um século
atrás. Seus tipos humanos são memoráveis.
A Curiosa História
de Rodney Stone ("Rodney Stone", 1896) narra como o boxe surgiu na Inglaterra (o autor tem também
uma coletânea chamada Contos do Ringue e
de Guerra), como um canal de ascensão social para um jovem de origem
humilde. Os Refugiados (“The Refugees”, 1893)
funciona como dois romances num só: na primeira parte, vemos a corte francesa
de Luís XIV, católica, na época em que era tramada a perseguição e exílio dos
protestantes huguenotes; n segunda parte, esses huguenotes desembarcam na
América do Norte e ali se envolvem em aventuras com índios, colonos, vaqueiros
e caçadores.
Sobre o primeiro romance histórico de Doyle, A Narrativa de Miquéias Clarke (1889), escrevi
aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/10/4631-o-soldado-e-o-fanatico-religioso.html
Uma excelente recolha de seus contos fantásticos,
insólitos, “da penumbra e do invisível”, foi publicada recentemente pela
Editora Bandeirola:
Excelente , Braulio!!!
ResponderExcluirCurioso. Fisionomicamente, Doyle lembra o ator Nigel Bruce, que interpretou o Doutor Watson em vários filmes.
ResponderExcluirCapas lindas! Se lembrar: alguma explanação feita (link?) sobre: O Decameron/Bocaccio(?) Encontrar MF minha 'praia'+ Artesanias.Salve BT!
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