quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

4774) O fantástico brasileiro e a visão do Paraíso (15.12.2021)



É uma pergunta recorrente, que volta e meia me fazem: "Por que a literatura brasileira explora tão pouco o Fantástico, prende-se tanto ao modo realista de narrar?"
 
Eu mesmo me pergunto isso há décadas. Um livro que recentemente comecei a folhear em busca de pistas é o ensaio Visão do Paraíso – Os Motivos Edênicos no Descobrimento e Colonização do Brasil (Rio: Livraria José Olympio Editora, 1959, 1ª. edição) de Sérgio Buarque de Holanda, o “pai de Chico”.
 
Sérgio Buarque não fala propriamente sobre literatura, mas sobre mentalidade coletiva, sobre o espírito do século. É o espírito de que os portugueses estavam possuídos durante aquele período crucial, quando os navegadores ibéricos descobriram a América, descobriram o caminho para as Índias, e fizeram a viagem de circunavegação.
 
Foram três façanhas movidas pela inspiração científico-geográfica e pelo impulso colonizador-mercantil. Tiveram consequências decisivas na nossa visão do mundo, do planeta. Agora ia ser preciso rever tudo, recalcular tudo, redesenhar tudo.
 
O autor abre o capítulo inicial fazendo a constatação:
 
O gosto da maravilha e do mistério, quase inseparável da literatura de viagens na era dos grandes descobrimentos marítimos, ocupa espaço singularmente reduzido nos escritos quinhentistas dos portugueses sobre o Novo Mundo. (pág. 3)
 
Ele reconhece nos portugueses da época um temperamento pragmático que, se por um lado os ajuda na resolução de problemas concretos, por outro os limita na capacidade fabulatória:
 
O que, ao primeiro relance, pode passar por uma característica “moderna” daqueles escritores e viajantes lusitanos – sua adesão ao real e ao imediato, sua capacidade, às vezes, de meticulosa observação, dirigida, quando muito, por algum interesse pragmático – não se relacionaria, ao contrário, com um tipo de mentalidade já arcaizante para sua época, e ainda submisso a padrões longamente ultrapassados pelas tendências que anima o pensamento dos humanistas e, em verdade, de todo o Renascimento? (pág. 3)
 


Sérgio Buarque principia sugerindo que realismo e particularismo seriam mais próprios da mentalidade medieval; e que o Renascimento foi também um resgate da fantasia, da capacidade de imaginar o inusitado, o surpreendente.
 
Desbravadores, exploradores, os portugueses entravam no mundo novo desconfiados, de cenho franzido, dispostos a não se deixar iludir:
 
Muito mais do que as especulações ou os desvairados sonhos, é a experiência imediata o que tende a reger a noção do mundo desses escritores e marinheiros, e é quase como se as coisas só existissem verdadeiramente a partir dela. (...) A obsessão de irrealidades é, com efeito, a que menos parece mover aqueles homens, em sua constante demanda de terras ignotas. (...) Podem admitir o maravilhoso, e admitiam-no até de bom grado, mas só enquanto se achasse além da órbita do seu saber empírico.  (pág. 8)

 

 
Riquezas espantosas, criaturas de pesadelo, monstros marinhos ou terrestres, tudo isto fez parte do folclore das navegações de todos os povos. 

Um bom catálogo do “monstruário” que passava de país em país, de século em século, de cultura em cultura, aparece em Esquecidos por Deus – Monstros no Mundo Europeu e Ibero-Americano (séculos XVI-XVIII) de Mary Del Priore (Companhia das Letras, 2000).  SBH vê a empresa portuguesa, de certa forma, como um combate da razão contra as trevas:
 
A exploração pelos portugueses da costa ocidental africana e, depois, dos distantes mares e terras do Oriente, poderia assimilar-se, de certo modo, a uma vasta empresa exorcística. Dos demônios e fantasmas que, através de milênios, tinham povoado aqueles mundos remotos, sua passagem irá deixar, se tanto, alguma vaga ou fugaz lembrança, em que as invenções mais delirantes só aparecem depois de filtradas pelas malhas de um comedido bom senso.  (pág. 15)
 
SBH admite, sem dúvida, o lado positivo dessa atitude geral, que de certo modo empurra para trás, em muitos aspectos, as sombras do irracionalismo, e ajuda a inaugurar “novos caminhos ao pensamento científico”.
 
Ele cita Joaquim de Carvalho, em seus Estudos sobre a Cultura Portuguesa do século XVI (1949):
 
“As idéias geográficas acerca da África começaram a ruir subitamente com a passagem do Equador, e com este rasgo audaz os nossos pilotos articulam, ao mesmo tempo, os primeiros desmentido à ciência oficial e aos prejuízos comumente admitidos. A inabitabilidade da zona tórrida, certas idéias sobre as dimensões da Terra, o ‘sítio do orbe’, as imaginadas proporções das massas líquida e sólida do nosso planeta, os horríveis monstros antropológicos e zoológicos, as lendas de ilhas fantásticas e de terrores inibitórios – tudo isso que obscurecia o entendimento e entorpecia a ação foi destruído pelos nossos pilotos com o soberano vigor dos fatos indisputáveis.”  (pág. 15-16)
 
Como se vê, é um movimento complexo de superposição de mentalidades, conflito de teorias, mas tudo isto num momento em que as conquistas da observação e experimentação direta acabaram se afirmando mais importantes e cruciais do que os voos imaginativos.
 
O mundo descoberto revela-se novo em tudo, surpreendente em sua flora e fauna, inexplicável nos usos e costumes dos nativos. De certo modo, tem-se a impressão de que nenhuma fantasia desregrada poderia superar em estranheza as descobertas feitas ano após ano, década após década.




SBH comenta, já no capítulo 6:
 
Ao lado disso, não é menos certo que todo o mundo lendário nascido nas conquistas castelhanas e que suscita eldorados, amazonas, serras de prata, lagoas mágicas, fontes de juventa, tende antes a adelgaçar-se, descolorir-se ou ofuscar-se desde que se penetra na América lusitana. (pág. 148)
 
Acontece aqui uma clivagem, uma separação brusca e nítida, em mais um aspecto que vem se somar a tantos outros, entre a América hispânica e a América lusitana (nós). Diferenças de espírito, de cultura, de visão do mundo. Os portugueses seriam, então, menos propensos do que os espanhóis ao cultivo fantasioso desses prodígios. Aqueles, por sua vez, teriam quem sabe preservado uma fidelidade maior a esse espírito:
 
De ilhas encantadas, fontes mágicas, terras de luzente metal, de homens e monstros discrepantes da ordem natural, de criações aprazíveis ou temerosas, com que os novelistas incessantemente deleitavam um público sequioso de gestos guerreiros e fantásticos sortilégios, rapidamente se foram povoando as conquistas de Castela. (pág. 149)
 
SBH lembra que o conceito de Renascimento é muito amplo, e que em cada nação e cultura faz surgir formas de pensar peculiares à História de cada uma, o que resulta num “estranho conluio de elementos tradicionais e expressões novas”.
 
Fica em aberto a questão da pouca evidência de literaturas fantásticas nos países da América espanhola. Pelos registros que temos, o fantástico latino-americano é um fenômeno do século 19, paralelo à ficção científica européia que nós costumamos, um tanto arbitrariamente, mas com lógica, traçar desde o Frankenstein (1818) de Mary Shelley até as Viagens Extraordinárias (segunda metade do século) de Jules Verne e os romances científicos britânicos das suas últimas décadas.



O estudo de Rachel Haywood-Ferreira, The Emergence of Latin American Science Fiction (Wesleyan University Press, 2011) inclui uma cronologia relativa a Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Guatemala, México, Peru e Uruguai.
 
A única obra anterior a 1800 é mexicana: “Siziglas y cuadraturas lunares ajustadas al meridiano de Mérida de Yucatán por um anctítona o habitador de la luna, y dirigidas al bachiller don Ambrosio de Echeverria, entonador de kyries funerales en la parroquia del Jesús de dicha ciudad, y al presente profesor de logarítmica en el pueblo de Mama de la península de Yucatán, para el año del Señor de 1775”, de autoria do Fray Manuel Antonio de Rivas (1775).
 
Tudo indica que se trata de uma viagem fantástica (o argumento fala numa viagem à Lua), um tipo de história bem contemporâneo dos escritos de Voltaire, Jonathan Swift ou Cyrano de Bergerac.
 
Existe um abismo gigantesco entre os relatos dos viajantes e marinheiros dos séculos 15-16 e a prosa de ficção brasileira dos séculos 19-20, mas não deve ser exagerado ver entre os dois alguma continuidade de espírito.
 
A narrativa brasileira, a prosa romanesca com certa extensão, só veio a se desenvolver plenamente em meados do século 19, e chega a dar um certo orgulho perceber que quando nosso romance deu seus primeiros vagidos (como gostam de dizer os historiadores), seja com Teixeira e Sousa (O Filho do Pescador, 1843), seja com Joaquim Manuel de Macedo (A Moreninha, 1844), não demoraria muito até o próprio Macedo conceber O Fim do Mundo (1857) e Joaquim Felício dos Santos as suas Páginas da História do Brasil, Escritas no Ano 2000 (1868-1872).
 
A mentalidade que explorou o Brasil Colônia revela traços variados que inevitavelmente se projetaram no futuro, e é preciso reconhecer que estes nossos primeiros esforços na prosa de ficção se deram no Brasil Império. Num contexto que, mesmo procurando a todo custo afirmar-se brasileiro, estava totalmente impregnado do espírito português e dos veios literários portugueses. Desse (segundo SBH) “conservantismo intrínseco, e tanto mais genuíno quanto não é, em geral, deliberado”.







 







Um comentário:

  1. Li o “Visão do paraíso” quando jovem e depois (como é de lei) reli umas tantas vezes. Hoje discordo, declino um pouco da ótica de SBH como você o chama. Se por um lado posso estar de acordo com o ponto de vista da visão pragmática portuguesa das descobertas, por outro desconfio da clivagem entre esta visão e a visão da mesma espanha descobridora de outras terras. Duvido que o mundo ibérico tenha gerado duas visões de mundo tão antípodas. Por outra, o que sinto quanto à produção de literatura fantástica no Brasil é uma certa desconfiança, um certo cinismo, que aí sim pode ser aparentado àquela, digamos, postura pragmática dos lusitanos. Neste sentido, lembro de uma Graphic Novel, em português com o título “Os mundos da magia”, no qual John Constantine lembra a seu pupilo Thimothy Hunter que os ingleses não se davam bem com os super-heróis, “aquela gente com uniformes colantes”, “cueca por cima da calça”. Ele argumentava que a Inglaterra era um país pequeno e dava a entender que somente um gigante como os Estados Unidos poderiam levar a sério este tipo de coisa. Talvez se dê o mesmo com o Brasil. Observo que a nossa atual produção de ficção científica/ fantasia padece desta mesma tensão. Os autores parecem pouco a vontade com a nossa falta de elfos e fadas (o Saci e a Yara não contam: um é negro e a outra é indígena), com a inadequação de naves espaciais com favelas. Até mesmo quanto a seus personagens surge a dificuldade para encontrar nomes adequados: que nome dar à princesa elfa, por exemplo? Que nome dar ao capitão da nave? Gislaine? Barbosa? Lembro de um autor que publicou um livro pela saudosa GRD, de Gumercindo Dorea, “Só sei que não vou por aí”, que batizou a seu cientista de Matias Boscovitch. Na ocasião eu pensei: bem, é uma solução de compromisso. O nome é esquisito e ambíguo o bastante para pertencer também a um personagem de ficção estadunidense. Me pergunto se ele ousaria um Antônio Bezerra, um Jádson; sei lá, um Dantas aí da vida. E é isso.

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