Waldemar José Solha, que se assina britanicamente W. J.
Solha, está botando na praça mais um livro de poesia, desde vez pela Editora
Arribaçã, de Cajazeiras. O livro tem um título intrigante: 1/6 de Laranjas Mecânicas, Bananas de Dinamite. Existe na
literatura uma nobre tradição de títulos longos e complicados, que já vem de
longe, e passa por nomes ilustres como o de David Foster Wallace e seu Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio Que
Longe de Tudo.
Solha vem construindo esse seu ciclo de poemas-prosas
desde Trigal com Corvos (Palimage,
2006), que comentei aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2009/03/0920-trigal-com-corvos-2622006.html
A este se sucederam: Marco do Mundo (João
Pessoa: Ideia, 2012), Esse é o Homem (João Pessoa: Ideia,
2013), e Vida Aberta (Guaratinguetá: Penalux, 2019).
Esta pentalogia (por enquanto!) de poemas de Solha, em
verso livre, vai se construindo como um tronco de árvore que à medida que se
alonga de subdivide em galhos grossos que por sua vez vão de prolongando e se
ramificando em galhos mais finos. A substância é a mesma mas em cada um deles
(em cada galho, em cada livro; em cada ramo, em cada verso) adquire novas
formas e se embebe de outra matéria. A árvore é uma só. O autor é um só, multifurcando-se
em idéias que não param de jorrar, de uma mente que trabalha 24 horas por dia.
(Não pensem que Solha “apaga” quando dorme.)
A busca poética do autor, que já comentei neste blog, se
faz através de um tipo de verso curioso, extenso, quase prosa.
Verso que eu costumo chamar “o verso Whitman”, porque foi
nos poemas de Walt Whitman (e de seus seguidores como Álvaro “Fernando Pessoa”
de Campos, Allen Ginsberg...) que conheci este tipo de verso-quase-prosa. Linhas extensas que avançam na direção da
margem direita da página, esbarram nela. Às vezes retornam ao começo da margem
esquerda, às vezes começam a se quebrar e se acumular em linhas que vão se
superpondo no lado direito, até concluírem o que têm a dizer.
Sobre a dúvida terrível das aparências,
sobre a incerteza que há em tudo, de que estejamos nos iludindo,
de que talvez nossa confiança, nossa esperança, não sejam mais, afinal,
do que meras especulações,
de que talvez a identidade no além-túmulo seja apenas uma linda fábula,
e talvez as coisas que eu percebo, os animais, as plantas, os homens,
as colinas, as águas que cintilam e que escorrem,
os céus noturnos e diurnos, as cores, as densidades, as formas, talvez
tudo isto seja somente (como sem dúvida o são) meras aparições, e a coisa real
ainda está para ser conhecida.
(Walt Whitman, “Of the Terrible Doubt of
Appearances”, em Folhas de Relva,
trad. BT)
Ou na poesia beat de Allen Ginsberg:
Eu vi as melhores cabeças da minha geração
destruídas pela loucura,
eu os vi famintos, histéricos, nus,
arrastando-se pelas ruas do bairro negro ao amanhecer,
à procura de uma dose brutal,
hipsters de cabeça angelical, ardendo de
desejo pela antiga conexão divina com o dínamo estrelado da maquinaria da
noite,
pobres, esfarrapados, com os olhos fundos,
viajando sentados, de cigarro aceso, na escuridão sobrenatural de quartos sem
aquecimento, flutuando sobre os tetos da cidade e contemplando o jazz...
(“Uivo”, parte I,
trad. BT)
Ginsberg dizia que seus versos não se contavam por número
de sílabas, mas pela capacidade pulmonar. Um verso durava a quantidade de
palavras que ele conseguisse recitar a plenos pulmões antes de precisar tomar
fôlego novamente.
Em Solha, esses versos quilométricos se alternam – por
questões puramente rítmicas e de conteúdo, a meu ver – com versos curtíssimos,
de uma linha só, criando estrofes como:
Falha das mitologias (da grega e hebraica à tupi-guarani), a de nos
terem dito... coisas dignas de Dali:
que Deus teria feito o homem do barro,
como o oleiro faz o jarro
...e a vida,
em nós, teria sido inserida – por uma das generosidades divinas –
através de um sopro nas... narinas
ou a nós teria sido dado o fogo dos deuses, roubado,
...algo,
sempre,
à parte,
quando – noutra via – vemos que – por infinitos fatores – da geosfera
(passada uma eternidade) se criou uma biosfera, de que surgiu a ...noosfera,
e o fenômeno humano – que se alimenta do que vem do Sol ... e do chão –
é a própria Terra
a produzir... Ciência,
...a turbulência – incluindo guerra e tudo mais em que a humanidade
“erra” – e Arte.
(1/6 de Laranjas..., págs. 26-27)
Acho que não é mero acaso a semelhança de tema e de métrica
entre poemas assim. São poetas que tentam abarcar de uma só vez o mundo
inteiro, ou uma época inteira, ou a totalidade de uma experiência humana neste
breve piscar de olhos que é a vida – uma treva, um vislumbre, e a treva
novamente.
O mundo é uma
chuva constante de imagens e de idéias que o poeta registra sem parar. Tem um
verso de Dante, que Ítalo Calvino cita em seu Seis Propostas Para o Próximo Milênio, ao discutir seu conceito de
“Visibilidade”: “Chove dentro da alta fantasia” (“Poi piovve dentro a l’alta
fantasia”, Purgatório, XVII, 25).
Calvino explica
que “a imaginação é um lugar dentro do qual chove”, quer dizer, chovem imagens,
chovem temas, assuntos, histórias, personagens, enredos, situações, idéias,
associações de idéias... Chove assim, na mente dos poetas.
(Solha, no filme O Som ao Redor)
Como quando
Solha relembra suas viagens de trem:
(...) ou,
fora da vida urbana,
na Estrada de Ferro
Sorocabana,
entre os troncos e frestas em
fila, em florestas de eucaliptos,
o sol – entre ecos de apitos –
a correr ao fundo,
a vinte e quatro fotogramas,
fasciculados
por
segundo.
(pág. 14)
É o cinema da vida, metralhando os olhos ansiosos do
jovem que se educa na marra, na fome insaciável de ficar-sabendo, nas
enciclopédias em fascículos, nas sessões de cinema-poeira, nos discos de 78
rotações... Na própria vida de rapaz de classe-média-trabalhadora na distante
Sorocaba, a quem um dia o concurso do Banco do Brasil oferece a possibilidade
de se transferir para Pombal, no sertão da Paraíba, pra lá do fim do mundo, um
lugar onde (parafraseando o que o poeta diz à página 16) “o chão alcança o horizonte e dá a volta por cima”.
Carlos Drummond dizia, memoravelmente, que “a Vida,
quando vai aos livros, é para voltar mais Vida ainda”. O mergulho eloquente e
entusiástico de Solha nos livros, nos álbuns de gravuras, nos filmes, nas
telas, é um testemunho de que essas coisas de Arte não nos afastam da
realidade, a não ser quando é este o propósito de quem as usa. A Literatura nos
devolve às coisas cruas e cruéis do mundo, como quando o poeta questiona os
próprios Evangelhos:
(...) ao que pergunto,
sem delírio:
o que ...são ...as três horas ...desse martírio ...fecundo – pois pra
“Salvar o Mundo” - ...ante as... vinte e seis... mil, viu?,
em que o câncer – corrosivo – atormentou e matou minha mãe,
...sem qualquer ...objetivo?
(pág. 53)
Qual o objetivo disto tudo? Por que tanta beleza, ao lado
de tanto sofrimento inútil? Por que tantas vidas notáveis e produtivas, em meio
a tantos milhões de vidas que aparentemente nada trouxeram para si e para
ninguém? Por que tantos sistemas religiosos, políticos, estéticos, filosóficos,
tentando explicar ou direcionar esse tsunami
de corpos de carne e osso, bilhões deles, nascendo, agitando-se,
entrematando-se, reproduzindo-se, desmoronando para adubar a terra, e no meio
disso ainda tendo a capacidade de produzir tanta beleza---
(...) como foi o da transparência dos tecidos,
...esculpida ...em pedra,
com arte e...
perspicácia,
na Vitória de
Samotrácia.
(pág. 23)
Não sabemos. E tomara que ninguém jamais descubra, para
que possamos continuar perguntando.
A consciência individual é este milagre de cada um de
nós: uma coisica minúscula, seletiva, “destamanhinho”, um pentelhésimo de
micróbio: mas é tudo que temos e tudo que somos, porque nenhum ser humano até
hoje conseguiu sair de dentro de si mesmo.
A consciência coletiva é um segundo milagre, que nos
permite entender algo que alguém escreveu a dez mil quilômetros ou há quatro
mil anos. O milagre que nos permite não apenas ler o que o mundo nos diz mas
também escrever sobre ele. Vivemos mergulhados numa ignorância protetora, não
sabemos 99% dos processos que agora mesmo estão fervilhando atarefados dentro
do nosso corpo (circulação, respiração, digestão, guerra do sistema imunológico
contra os exércitos insones de vírus que tentam nos fazer naufragar).
(...) ou
se alguém,
de volta pra casa,
uma hora depois de sair,
sentisse,
de repente,
estar... mil e setecentos quilômetros à frente,
por causa da rotação da Terra...
(pág. 69)
Não, não sabemos. Vivemos num casulo de individualidade
que nos escuda contra “o céu que nos protege”, que nos abriga contra “o som ao
redor”, que nos mantém abençoadamente ignorantes de tudo que não somos capazes
de abarcar, de conter, de comportar.
Por isto são importantes estes registros das coisas
irrelevantes da vida concreta, de toda coisinha (como dizia Augusto dos Anjos)
“tísica, tênue, mínima, raquítica”, porque quem quiser que sonhe com a
permanência, mas para elas a sua glória é passar.
(...) o que o faz ...maior que aquele da foto em que se vê Nova Iorque
e seu mundo ao fundo,
entre o rastro,
n’água,
de um barco – no primeiro plano – que acaba de passar,
e o de vapor,
que ele deixou
no ar.
(pág. 79)
Se nossa vocação fosse a permanência e a imortalidade, a
morte seria a derrota, o fracasso; mas sabemos que não é assim. A nossa vocação
é a passagem. É o fluxo, é o desfile. A Arte fica, e só fica porque nós
passamos. O que salva nossas alegorias é que não somos um Bloco Do Eu Sozinho,
somos uma “mocidade independente” que não desfila para “a injustiça dos prêmios”,
mas para não deixar o samba morrer.
É sempre um belo momento meu, esse, em que vejo sua mente extraordinária dando uma rasante num livro meu.
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