domingo, 24 de outubro de 2021

4757) A Fundação de Isaac Asimov - 1 (24.10.2021)




Uma nova série de ficção científica está indo ao ar, em episódios semanais: Foundation (Apple TV). A criação é de David S. Goyer, responsável principal pelo projeto, com mais uma equipe de roteiristas e diretores. Os capítulos iniciais têm como base a série de histórias que o jovem Isaac Asimov publicou com vinte e poucos anos, inspirado em suas leituras da Declínio e Queda do Império Romano (1776-1789), de Edward Gibbon.
 
Li os romances originais de Asimov com menos de trinta anos, na tradução da Editora Hemus. Uma década depois, traduzi uma “prequel” para a Editora Record, Prelúdio da Fundação (1988).
 
Aqui, há uma descrição básica de como nove histórias curtas acabaram se transformando nos três volumes da chamada “Trilogia da Fundação”:
 
http://www.pannis.com/SFDG/TheFoundationTrilogy/theFoundationStories.html
 
É um épico gigantesco sobre a Via Láctea, povoada por nossa humanidade, num império com milhares de planetas habitados. Um jovem cientista, Hari Seldon, começou a desenvolver uma ciência que ele chamou de “Psico-História”, que avalia os comportamentos coletivos dos seres humanos e de suas sociedades. Ele prevê a queda do império, devido às suas contradições internas, e um intervalo de barbárie que tem chances de durar trinta mil anos; mas Seldon defende a criação de uma “Fundação” com o objetivo de diminuir essa “era das trevas” para mil anos apenas.
 
Asimov não era um grande estilista literário. Seu conhecimento de psicologia, embora muitas vezes seja perceptivo, não é páreo para o de outros autores. Nem falo dos clássicos do romance mainstream. Basta comparar Asimov com contemporâneos seus na FC, como Theodore Sturgeon ou Fritz Leiber. É uma pena, mas ele compensa isso com um conhecimento científico sólido, muita imaginação, vivacidade narrativa. E afinal de contas, criou a psicologia robótica, o que já é uma contribuição.
 
E no que se refere a Fundação... É como dizia um amigo meu, fã asimoviano de carteirinha: “Só peço aos que o criticam que me mostrem o que foi que eles próprios escreveram aos 22 anos.” 


(A galáxia da Fundação, em 
desenho de Isaac Asimov ]
 
Não vou discutir aqui nem os livros de Asimov (que não releio há mais de 30 anos) nem a fidelidade da adaptação. Quero comentar alguns aspectos dos primeiros episódios.
 
Em primeiro lugar, tem rolado uma discussão ferrenha sobre a questão identitária e de representatividade étnica, de gênero, etc.  Eu até entendo, porque um personagem que me era muito familiar, o andróide Eto Demerzel, me assustou ao aparecer agora como uma mulher. Vários personagens masculinos aparecem como mulheres; e vários personagens que todo mundo visualizou como homens brancos aparecem agora como homens negros.
 
Asimov era um judeu russo-novaiorquino, tinha uma certa mistura genética e cultural no seu background; mas o editor dessas histórias era John W. Campbell, para quem todo personagem de história de FC deveria ser anglo-saxão.


(John Campbell, desenho de Frank Kelly Freas)
 
Campbell, para quem a série “Fundação” foi escrita, foi um importante formatador temático e ideológico da FC norte-americana das décadas de 1930 e 1940. Como diz Frederik Pohl, outro jovem autor encorajado e publicado por Campbell: “Ele ficava sempre meio constrangido ao lidar com pessoas que não tinham tido o bom senso de nascerem homens, brancos e protestantes.” (The Way the Future Was, cap. 5)
 
É ainda Pohl, quem explica:
 
Não creio que em toda sua vida ele tenha se recusado a qualquer obrigação ou cortesia por motivos de raça ou de religião. Mas ele não sabia se seus leitores (que ele presumia serem rapazes brancos, anglo-saxões e protestantes) seriam tão tolerantes quanto ele. Assim, ele sugeria aos escritores judeus que escondessem esse defeito. Quando eu vendi a ele, como agente, a primeira história de Milt Rothman, John pôs as cartas na mesa. “Os melhores nomes,” declarou, “são escoceses ou ingleses. Isso vale para os personagens, e também para a assinatura dos autores. Não tem nada a ver com preconceito. É que eles soam melhor.” (Idem, trad. BT)
 
O depoimento de Pohl mostra bem a corda-bamba de pressões culturais no ambiente onde a FC norte-americana se desenvolveu: alguns quilômetros quadrados em Manhattan, na década de 1930, onde ficavam as redações das centenas de milhares de pulp magazines que toda semana adornavam as bancas de revistas do país inteiro.
 
Asimov era judeu por ascendência, mas sempre se afirmou ateu e cientista. Só usou pseudônimo quando escreveu livros juvenis (“Paul French”). Mas uma característica do seu estilo, muito presente em Foundation é a criação de nomes não-étnicos, não-nacionais. Os nomes dos personagens desse ciclo têm sonoridades vagamente familiares, mas propositalmente distorcidas: Hari Seldon, Eto Demerzel, Gaal Dornick, Salvor Hardin, Dors Venabili, Chetter Hummin...
 
São nomes que sugerem ter sofrido mutações ao longo do tempo (estamos a milhares de anos no futuro), mas que por isso mesmo perdem o vínculo nacionalista sugerido por Campbell. (Se Asimov quisesse homenagear seu editor, poderia talvez ter criado um personagem chamado “Jun Kembol”.)
 
Essa impessoalidade dos nomes próprio se casa bem com o modo como Asimov concebia seus personagens, e neste sentido a série da Apple não violenta seu estilo. Na literatura de Asimov, um personagem é como uma incógnita algébrica. Está ali para assumir valores e encaminhar funções. Na grande maioria dos casos, tanto faz se o personagem tem origem ocidental ou oriental, branca ou negra, se é macho, fêmea ou robô – e afinal, que significado terão estes conceitos daqui a 50 mil anos (época em que acontecem estas histórias)?
 
(continua em breve)
 

 
 






Um comentário:

  1. Você tem razão. Asimov, como outros autores da época, se movia em uma corda bamba. Dependia da aquiescência dos editores para publicar e assim colocar o pão na mesa, por assim dizer. Ele próprio comentou o fato em prefácios a muitas de suas coletâneas. A propósito, chegou a comentar que quando de uma dessas coletâneas a ser publicada em alemão sugeriu que se renomeassem às personagens com nomes solidamente germânicos, o que fui recusado pelos editores por conta de que personagens de ficção científica ficavam melhor com nome e prenome anglo-saxões. Pois é, na época ainda não era bem-vindo um capitão "Barbosa", no comando de nave estelar.

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