quarta-feira, 6 de outubro de 2021

4751) O Conto de Circulação (6.10.2021)




O leitor cândido pensa que os gêneros literários são criados pela universidades e pelas revistas de literatura. Ele imagina uma espécie de Fantasia Normativa, na qual os críticos, depois de redigir os estatutos do que um gênero deve ser, distribuem cópias entre os escritores, para que estes passem a produzir as respectivas obras.
 
Não é bem assim. Os gêneros literários surgem como surgiram os mitos da Antiguidade. Pessoas criam histórias cuja impressão é tão grande que desencadeia uma série de imitações, variantes, distorções, versões corrompidas, prolongamentos, expansões da história original.
 
Nenhuma criação se dá a partir do zero. “Nothing comes from nothing”, já dizia uma canção da Noviça Rebelde. Mesmo a primeira narrativa, a narrativa fundadora de um gênero, está cravejada de elementos que já existiam, só não tinham sido agrupados daquela forma, com aquelas funções.
 
Um gênero é como uma roupa que a gente compra feita na loja de departamentos, e depois leva ao alfaiate para ajustá-la às nossas medidas, ao tintureiro para que lhe aplica a cor que nos agrada.
 
Toda esta lenga-lenga é para reafirmar (pela centésima vez) a minha opinião de que um gênero literário é um recorte de certas características que os autores e o público percebem, e que vão se cristalizando à força de imitações, repetições, variantes, adaptações, etc.
 
John Clute, editor da Encyclopedia of Science Fiction, divulgou recentemente um novo verbete da Enciclopédia: o “Conto de Circulação” (“Tale of Circulation”). Ele o define assim (tradução minha):
 
Contos que reconstituem a circulação de um objeto desde a sua fabricação ou sua descoberta original, através de diferentes proprietários, em diferentes circunstâncias. (Nesses contos) produz-se em geral uma visão cumulativa da vida em regiões distintas do mundo, muitas vezes servindo como um mecanismo de Sátira; um tal tipo de conto normalmente se foca nos personagens e ambientes revelados pela narrativa, e não no objeto em trânsito. (...) Contos infantis, por outro lado, são mais propensos a se focar no objeto em si – tipicamente um pássaro ou um boneco – como protagonista, e a incorporar elementos das implicações picarescas do sub-gênero conhecido como Viagem Fantástica.
 

Curiosamente, quando comecei a ler esse verbete o primeiro exemplo que me veio à mente foi um filçme que não tem nada a ver com o fantástico, de que é também citado por Clute: O Rolls-Royce Amarelo (1964), de Anthony Asquith, com Shirley MacLaine.
 
É um filme em episódios em que o tal Rolls-Royce passa pela mão de vários donos, e em torno de cada um deles se constrói uma historinha divertida.
 
O verbete de John Clute menciona uma porção de exemplos na literatura em inglês, e pode ser visto aqui:
 
http://www.sf-encyclopedia.com/entry/tale_of_circulation
 
Na literatura fantástica, temos um tipo de “conto de circulação” que envolve o “objeto maldito”, muitas vezes um livro necronômico ou orbis-tertius, cuja passagem de mão em mão vai desestruturando a mente dos seus possuidores e, por tabela, o mundo à sua volta. Acho que qualquer leitor de literatura de horror pode evocar suas histórias preferidas sobre uma jóia, um espelho, uma pintura – objetos aparentemente anódinos mas que carregam consigo uma maldição, que trazem a desgraça aos seus possuidores.
 
O que caracterizaria essas histórias como “contos de circulação” seria o uso dessa estrutura de justaposição de episódios cronologicamente sucessivos, que é típica da Novela literária, mais do que do Romance.
 
Há muitos Contos de Circulação (incluindo romances, claro) na literatura brasileira? Creio que para caracterizar o gênero o objeto em questão deveria passar pelas mãos de pelo menos três proprietários, para caracterização essa idéia do “passar de mão em mão”. Um objeto que foi meramente presenteado por “A” a “B” não estaria propriamente indicando um percurso.
 
Lembro das “Idéias de Canário” de Machado de Assis (Páginas Recolhidas, 1899), em que um esperto canário falante passa de dono em dono e tem sua visão-do-mundo transformada de acordo com cada novo ambiente onde se instala.
 







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