Freud classificou várias formas de manifestação do
Uncanny em nossos pensamentos. O “uncanny” é o estranho, o sinistro, o
sobrenatural; aquilo que nos perturba e nos inquieta, que parece inacreditável
e ao mesmo tempo esquisitamente familiar.
No ensaio famoso Das
Unheimlich (1919) ele cita um dos seus exemplos disso:
Tomemos o estranho ligado à onipotência de pensamentos, à pronta
realização de desejos, a maléficos poderes secretos e ao retorno dos mortos. A
condição sob a qual se origina, aqui, a sensação de estranheza, é inequívoca.
Nós – ou os nossos primitivos antepassados – acreditamos um dia que essas
possibilidades eram realidades, e estávamos convictos de que realmente
aconteciam. Hoje em dia não mais acreditamos nelas, superamos esses
modos de pensamento, mas não nos sentimos muito seguros de nossas novas
crenças, e as antigas existem ainda dentro de nós, prontas para se apoderarem
de qualquer confirmação.
(Obras de Freud, Edição
Standard, Ed. Imago, vol. XVII, pág. 264, trad. Eudoro Augusto Macieira de
Souza)
A realização de desejos, na narrativa fantástica, vem
muitas vezes ligada ao tema do objeto mágico, de que a “lâmpada de Aladim” é a
imagem mais conhecida, das Mil e Uma
Noites. Tanto a narrativa oral quanto a literatura escrita estão cheias de
objetos equivalentes, que vão desde anéis mágicos até a “Pata do Macaco” de W.
W. Jacobs, desde as invocações da magia ritual até o “Duende na Garrafa” de R.
L. Stevenson.
Como esse tipo de narrativa tende a se repetir, os
autores buscam variantes mais afastadas. Uma delas é a onipotência
involuntária. Ao invés de formular com intensidade um desejo, um indivíduo
vê-se na situação de estar manipulando inadvertidamente algum tipo de poder
cósmico, que envolve às vezes o desejo de causar a morte a outras pessoas – e
quando isso de fato acontece, ele se horroriza, mas não pode fazer mais nada a
respeito.
Stephen King tem um conto, “Obituário”, em que um
escritor descobre ser capaz de matar outras pessoas meramente escrevendo os seus
obituários – que acabam se tornando textos proféticos.
No conto clássico de William F. Harvey, “August Heat”, um
homem que produz lápides para um cemitério se distrai criando uma lápide
fictícia, com o nome de um homem, uma data de nascimento e de morte (a da morte
naquele mesmo dia); e em seguida encontra um homem com aquele nome, que nasceu
naquele ano e que, portanto, está aparentemente destinado a morrer naquele dia.
Diz Freud:
Tão logo acontece realmente em nossas vidas algo que parece
confirmar as velhas e rejeitadas crenças, sentimos a sensação do estranho; é
como se estivéssemos raciocinando mais ou menos assim: “Então, afinal de
contas, é verdade que se pode matar uma pessoa com o mero desejo de sua
morte!”.
(idem)
Mais interessante do que o “mero desejo realizado” é a
descoberta repentina de um super-poder perigoso. O indivíduo, por uma razão
qualquer, vê-se capaz de fazer com que algo aconteça, inclusive a morte de uma
pessoa.
Eu Enterro os Vivos
(“I Bury the Living”, 1958), de Albert Band, é um curioso filme fantástico
que pode ser visto no YouTube (com legendas em português) sobre o administrador
de um cemitério que em certo momento se descobre possuidor de um poder
estranho. A história original do filme é um trabalho de juventude de Louis
Garfinkle, que depois seria o autor do argumento original de filmes como A Gang dos Dobermans (1972) e O Franco Atirador (1978).
Na parede de seu escritório, no próprio campo-santo, ele
tem um enorme painel com as sepulturas marcadas e numeradas em suas alamedas.
Todas têm o nome do proprietário. Os vivos estão marcados com alfinetes
brancos, os mortos com alfinetes pretos. Ele descobre que causou
involuntariamente a morte de algumas pessoas ao colocar alfinetes pretos nos
respectivos jazigos.
Richard Boone, o famoso coadjuvante barbudão que fazia
guerreiros medievais (O Senhor da Guerra)
ou pistoleiros do Oeste (Meu Ódio Será
Tua Herança) faz aqui o papel de Robert Kraft, o atormentado sujeito tocado
pelo poder do Uncanny.
O mais interessante é que se fosse um filme “B” comum o
dono desse poder começaria a praticar atentados, matando seus desafetos. No
caso de Kraft, ele percebe, horrorizado, o que está acontecendo. Conta aos
amigos. Três amigos riem na cara dele, e propõem um teste: ele colocará alfinetes
pretos nos nomes dos três, para ver o que acontece. (Não vou contar o que
acontece.)
O superpoder é mais interessante na mão de um Relutante
do que nas mãos de um Entusiasmado. O Entusiasmado irá inevitavelmente realizar
seus desejos mais óbvios, que são os enredos mais óbvios ao alcance da
imaginação curta dos roteiristas. O Relutante produz uma tensão entre sua
tentativa de lidar com algo descomunal que não compreende e não sabe manejar
direito.
Mais importante do que isto, o Relutante, na sua insistência
em provar que está errado, que “coisas como aquela são impossíveis de acontecer”,
acaba produzindo o efeito uncanny do
desejo ao contrário. Tentando mostrar que aquilo é impossível, ele faz com que
o fato se repita.
É um pouco como aquele personagem de Tom Stoppard em Rosencrantz and Guildenstern are Dead,
que começa a jogar uma moeda para o alto e a moeda começa repetidamente a dar
cara, cara, cara, cara, cara... Ele se desespera com aquela improbabilidade e,
decidido a provar que aquilo vai parar de acontecer mais cedo ou mais tarde,
faz com que continue acontecendo.
Now: Zero do Ballard se encaixa bem nessa categoria, porém não entusiasmo nem relutância, só abnegação ao destino. Bem existencial como boa parte de sua obra.
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