Eu estava de passagem por Campina Grande muitos anos atrás, não sei exatamente quantos. Eu estava na casa dos 50 anos. Era uma época ótima, de muito trabalho, muitas viagens, e muita farra também.
Tinha saído com uma turma de amigos, era sábado e a gente estava bebendo e conversando desde a tarde. A certa hora da noite, entramos no carro e alguém disse:
– Olha, vocês eu não sei, mas eu estou com fome. Pago um milhão de reais por uma galinha guisada com macaxeira.
O que estava ao volante anunciou:
– Pois pode ir preenchendo o cheque, porque vamos direto pra Tia Noêmia.
Era uma casa em José Pinheiro, o popular Zepa, bairro dos raposeiros, os torcedores do Campinense; mais populoso do que muitas cidades paraibanas. Chegamos lá, era uma casa discreta, com uma latada na lateral, meia dúzia de mesas.
Sentamos, fizemos os pedidos, brindamos na primeira rodada de cerveja, e quando limpei a espuma do lábio olhei em redor e numa mesa próxima avistei João Melo bebendo sozinho. Pedi licença à turma, levantei e parei junto da mesa dele.
– Fala, caba safado.
Ele ergueu olhos carrancudos, mas que se arregalaram ao me reconhecer. Ficou de pé, demos um abraço, ele me pediu para sentar. Engatamos na conversa, nas lembranças.
Tínhamos estudado juntos no Estadual da Prata, nos anos finais do ginásio. Tempo bom. João era um aluno irrequieto e inteligente. De vez em quando era botado pra fora de classe, porque conversava incontrolavelmente. Algumas vezes fugimos juntos, eu, ele e mais alguns, pra cortar caminho pela Duque de Caxias e ir ver o treino coletivo no campo do Treze. Para se ter uma idéia, João Melo era raposeiro, ia só pela aventura e pela farra.
– Mas Braulio... Lembra quando teve o golpe de 64? A gente tudo amontoado no pátio lá de cima, olhando os PM bloqueando a saída dos portões do colégio... E a gente cantando: “Acorda Maria Bonita, levanta pra fazer café...”
– “Que o dia já vem raiando, e os polidoro já tão de pé...”
Risadas. “Polidoro” era como se chamava soldado da PM naquele tempo. Lembramos de Prof. Almeida, que ensinava Ciências e trazia a aula na ponta da língua, como quem recita uma peça de teatro; Dona Wanda, mãe dos gêmeos, que ensinava Geografia e tinha uma voz de artista de cinema; Celso, que era gay e botava moral, na aula dele ai de quem desse um pio; Josusmá Viana, outro que ensinava Português, risonho, bem humorado...
– Mas Braulio, e tu perdesse um ano, não foi? Rapaz, nunca acreditei.
– Eu vagabundava muito. No fim do ano, quem me lascou foi Matemática e Desenho.
– Teu pai te deu uma surra?
– João, era melhor que tivesse dado... Eu levei a notícia pra ele, ele escutou, fez assim com a cabeça e não disse nada. Nunca mais tocamos nesse assunto. Mas daí pra frente eu tirei umas notas boas, acabei compensando.
– Ah, rapaz, meus parabéns! Eu soube que você publicou um livro. Um livro! Vi no jornal, faz anos isso.
Àquela altura, eu já tinha publicado meia dúzia. O orgulho dele era visível. Um livro! Perguntei sobre o trabalho. Ele trabalhava de supervisor numa fábrica. Casado, claro, quatro filhos entre dezoito e cinco anos. Morava no Zepa, ali pertinho.
Lembrei que muitas vezes a gente voltava do colégio e ia comprar livros de bolso na lojinha das Edições de Ouro, ao lado do Capitólio. Eu ficava horas escolhendo, comprava algum policial de Irving Le Roy ou um livro de terror. João Melo tinha a minha idade, mas levava leitura a sério. Eu lembrava ele comprando, com expressão concentrada, livros como Amor de Perdição de Camilo Castelo Branco ou A Besta Humana de Émile Zola.
– Tu ainda lê muito, João? Vou te mandar meu livro.
– Ah, rapaz, quem me dera... Faz anos que eu não leio um livro. Nem lembro mais qual foi.
Começou a descrever a rotina dele, sem lamentações, sem coitadismo. Era “o tirinête da existência”, como ele disse com bom humor. Acordando com o dia ainda escuro, um transporte para o centro da cidade, outro para Bodocongó, e mais uma caminhada de alguns quilômetros até o lugar da fábrica, se não quisesse ficar esperando uma kombi que fazia uma ida-e-volta. O salário contado. A mulher cuidando da casa e volta e meia costurando, volta e meia aprontando salgadinhos, a filha mais velha que já dava aula em algum lugar... Chegava em casa nove da noite, era só banho, janta, conversa e sono de novo.
– E no fim de semana?
– Levar os menores pra passear. Quando tou rico é um cinema, quando tou pobre é correr no parquinho. E de vez em quando uma cerveja com os amigos. Hoje marquei aqui com um vizinho, que até agora não apareceu. Eu pensei: “Vou tomar só uma, pra não passar em branco.” E aí olha quem aparece. O fí de Seu Nilo. Teu pai como vai?
– Faleceu há pouco tempo. Vamos tomar uma em lembrança dele.
Tomamos. Começamos a falar de livro. Naquele tempo, a gente falava muito de livros e mesmo sendo da mesma idade João me dava conselhos, indicava “títulos fundamentais”, segundo dizia.
– João, eu só li Capitães de Areia por tua causa.
– Não me lembro desse.
– Jorge Amado, rapaz!
– Sim, Jorge Amado eu sei quem é. Não lembro se li nada dele.
Bem, eram uns trinta e cinco anos de intervalo. As coisas vão ficando na bruma. João tinha imaginado que as coisas iam ser diferentes, mas quando o pai morreu ele teve que parar de estudar, com o segundo grau completo e só. A mãe doente. A inflação. As crises. Os empregos que nunca rendiam grande coisa. Vieram mulher e filhos, aumentando as despesas. Trabalho, trabalho, trabalho.
– Eu não tenho cabeça, velho. A hora que eu tenho pra ficar em casa é só pra ver televisão. Quando preciso ajudar meus filhos com dever de casa é um sacrifício, porque o juízo não entra em foco, sabe como é? Dá uma trava. “Pai, o que é triângulo equilátero?...” E eu não lembro mais nem o que é triângulo.
Era alguns meses mais novo do que eu; agora, parecia anos mais velho. Nas aulas de Josusmá, havia um exercício horroroso de levantar e ir na frente do quadro-negro fazer um discurso de improviso; eu detestava isso, ficava vermelho, gaguejava. João Melo tirava essas coisas de letra. Parecia uma versão de Rui Barbosa feita por Oscarito.
Lembrei trechos de um desses discursos dele, que a turma ficou repetindo: “Bravos concidadãos... A Pátria precisa de vós! A Pátria precisa de voz! (gesticulando na garganta, com expressão trágica) A Pátria está muda! A Pátria está surda! A Pátria está mouca! A Pátria está oca!...” E a gente rolava de rir, batendo palma.
– Nem me lembrava disso – disse ele. – Como é que tu lembra, rapaz? Isso é uma memória da porra.
– A gente ficou anos repetindo isso. Eu, tu, Lagoa Seca, Zé Renato, Nicó... Lembra de Nicó? Ele depois virou dono de um curso de inglês em João Pessoa.
Um vento soprou por cima da vida de João Melo. Um vento espinhara, o bafo quente do sertão, que cresta tudo, que tudo torra e esfarela. Ele não podia saber, mas aqueles anos despreocupados, com livros de bolso, cinema no sábado, futebol no domingo, tinham sido o ponto alto da leitura na vida dele. Dali em diante foi só descida, descida para a cratera-fornalha dos empregos, das dívidas, dos compromissos... A família compensando, com suas alegriazinhas e seu aconchego, o moedor-de-carne em que se transforma a vida de quem trabalha assim. De quem corre como se tivesse uma corda amarrada na cintura e a outra ponta amarrada num trem que não para nunca.
João Melo jamais vai ler estas linhas. Não é para ele que eu escrevo meus livros. Meus livros são lidos por quem se acomoda numa poltrona, no silêncio de uma sala, põe uma música baixinho, abre um vinho, uma cerveja... Ou talvez por quem me lê em pé no metrô, máscara no rosto, livro aberto à frente da cara, olhos concentrados... Ou por quem lê de noite, sentado na cama, luminária puxada para pertinho, uma esposa ou marido ressonando junto...
Ler é um luxo, um privilégio? Ou é uma batalha? Não duvido que muita gente, tão surrada pela vida quanto João Melo, ainda consiga varar um Jorge Amado de ponta a ponta, um Paulo Coelho que seja. São vitórias. Ler exige esforço, e por isso exige esforço de pessoas exaustas.
O moedor-de-carne não deixa muitos minutos livres
para investir em leitura. Mesmo quando os boletos estão pagos e tem comida na
geladeira, mesmo quando as pessoas estão risonhas e aparentemente tranquilas,
aí vem a música, vem a televisão, vem o cinema (“quando tou rico”)... Tem novela, tem filme na telinha, tem tanta
coisa pra se compartilhar, a família no sofá, nas poltronas, conversando,
ouvindo, acompanhando os programas, trocando uma idéia... Tudo conspira para que
um homem com a barba quase branca acabe desistindo de se isolar num quarto pra
ler Capitães de Areia.
Dona Wanda é minha avó! Seus textos são massa!
ResponderExcluirBraulio, tu sabe q sou fã.
ResponderExcluirMas tem uns que.
Tipo esse.
Oi Renata. Ficou "coitadismo", foi?
ResponderExcluirExcelente! Uma crônica com os dois pés no real.
ResponderExcluirQue texto bonito. E que reflexão importante.
ResponderExcluirBravo!fiquei emocionada... mas a lojinha das edições de ouro ficava ao lado dos correios ou estou enganada?
ResponderExcluirQue texto maravilhoso!
ResponderExcluirEmocionante!
Um texto necessário em tempos difíceis...
ResponderExcluirAdorei!
ResponderExcluirBráulio, este texto deixou-me com um nó na garganta.
ResponderExcluirQue maravilha de crônica! Encantado! Parabéns!!
ResponderExcluirUm texto que deixa um embrulho no estômago e na garganta...
ResponderExcluirDifícil. Tenho lembrado de meus tempos de colégio, que já eram de mais privilégio do que da maioria da população brasileira. Primeiro, por estar estudando. Segundo, por não precisar trabalhar enquanto estudava. E é um momento mágico mesmo, de viver estudando, fazendo os desvios necessários... E agora, no lugar de esticarmos esse momento escolar para mais pessoas, para que ele seja marcante e fundamental, o moedor-de-carne domina e diz que estudar deve ser algo pra poucos mesmo. O que resta é ser moído.
Adorei o texto! São muitas ocupações e distrações nestes tempos. Para uma mulher de múltiplas funções, ler é mesmo um luxo!
ResponderExcluiré exatamente assim...ler exige esforço de pessoas exaustas! parabéns pelo texto mestre!
ResponderExcluirMuito bom!
ResponderExcluirMaravilhoso!
ResponderExcluirAdorei! Mas, meu caro, fui visitar o restante do blog e, ao chegar ao final, onde o número de visitantes é um pequeno quadrado, clicar ali me levou a um site pornô. Imagino que não seja essa a intenção do blog, por isso, meu aviso por aqui, ok? Beijos!
ResponderExcluirAnônimo, obrigado pelo toque. Não sabia disso, e vou cuidar. Um abraço.
ResponderExcluirBah, li como se visse um curta-metragem. Memorável.
ResponderExcluirQue pancada violenta tu deste, me fez lembrar de um velho conhecido da minha adolescência que também era bem atilado, mas...o resto, é, tudo que ele virou foi um mísero resto.
ResponderExcluirExcelente crônica, Braulio! Nos convida a sentar, tomar um copinho de cerveja e comungar destas lidas e lutas. Abraço, conterrâneo!
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