terça-feira, 27 de julho de 2021

4728) Uma música com várias letras (27.7.2021)



Sou assinante há muitos anos, desde que entrei na Internet (um quarto de século, mais ou menos), da lista de mensagens A Word A Day, que nos envia exatamente isto: Uma Palavra Por Dia. Todos os dias (exceto sábados e domingos) recebo um email enviado pelo competentíssimo Anu Garg (um norte-americano nascido na Índia) e sua equipe, com um verbete de dicionário.

Uma palavra, sua natureza gramatical, seu significado, sua origem, seu(s) emprego(s) na linguagem corrente, um ou dois exemplos tirados da imprensa e da literatura.

A gente assina mandando um email para:

https://wordsmith.org/awad/subscribe.html

Pra quem estuda inglês (quem traduz, etc.) é uma mão na roda. Todo dia uma pequena surpresa.

A pequena surpresa de hoje foi a palavra contrafactum, que eu nunca tinha visto. Copio abaixo o teor da mensagem:

contrafactum 

Pronunciation:

(KON-truh-fak-tuhm) https://wordsmith.org/words/images/sound-icon.png

 

MEANING:

noun: A composition that makes use of an existing piece of music with different lyrics.

 

ETYMOLOGY:

From Latin contrafacere (to counterfeit), from contra- (against) + facere (to make or do). Earliest documented use: 1940.

 

NOTES:

A contrafactum aka contrafact is, literally speaking, counterfeiting. It’s what you get when an existing tune is used with a new set of words. A well-known example is The Star-Spangled Banner, the national anthem of the US, which is sung to the music of “The Anacreontic Song” popularly known as a drinking song. Other examples of contrafacta are when secular music is used for religious purposes and vice versa.

 

USAGE:

“At other times, the relationship between contrafacta seems far-fetched. Why should ‘Peter’s Denial’ have the same music as Judas’s reproach of Jesus for befriending Mary Magdalene?”
Joseph P. Swain; The Broadway Musical; Scarecrow Press; 2002.

 

Como se vê, é um verbete sempre curto, objetivo, direto ao ponto, muitas vezes complementado por links úteis.

A palavra “contrafactum” me levou ao meu Dicionário Houaiss, que não a registra. E a uma breve pesquisa, porque esse assunto sempre me interessou.

A paródia musical (pegar uma canção séria e botar uma letra engraçada, na mesma melodia) é um exemplo popular de contrafactum. O brasileiro é o rei da paródia. Tenho uma turma de amigos cuja diversão era cantar a melodia de Rock Around the Clock de Bill Haley & Seus Cometas com a letra de Osório Duque Estrada para o “Hino Nacional Brasileiro”. Se aconchambrar um pouquinho, cabe.

Eu não considero que uma versão para outra língua constitua um “contrafactum”. Seja parecida com o original, ou muito diferente dele, a “versão” é necessária muitas vezes para ser gravada em outro país, é algo tão natural quanto traduzir um livro do inglês para o português. O “contrafactum” seria o equivalente a traduzir um livro do português para o português.

Existe o caso de um mesmo compositor colocar letras diferentes numa mesma melodia. Lembro o caso de Chico Buarque, com O Que Será, canção incluída na trilha sonora do filme Dona Flor e Seus Dois Maridos de Bruno Barreto, gravada com três letras ligeiramente diferentes pelo próprio Chico, por Milton Nascimento (no álbum Geraes) e por Simone.

As baladas populares da Europa nos séculos 18 e 19 eram frequentemente escritas para serem cantadas com uma melodia de conhecimento público. Folheando os arquivos da época (ou vendo as fotos em livros) a gente se depara constantemente com o aviso, logo abaixo do título do poema: “To the tune of XXX” (“Para ser cantada com a melodia de XXX”), sendo XXX alguma melodia popular daquele tempo, conhecida por todo mundo.

Os comentários de Anu Garg, acima, falam que muitas vezes a música profana recebia letras religiosas, e vice-versa. Fala-se que o escritor Rudyard Kipling, que além de romancista e contista era ótimo poeta, costumava cuidar do seu jardim (seu passatempo favorito) cantarolando em voz baixa hinos protestantes. É possível que muitos dos seus poemas, que são impecavelmente metrificados, tenham sido compostos desta forma, “letrando” a melodia de um hino qualquer, o que facilita a memorização.

Um exercício interessante para a composição de canções populares seria um letrista entregar a mesma letra para cinco ou dez compositores diferentes, e cada um deles a musicaria de acordo com seu próprio estilo e inspiração. Depois, os resultados seriam agrupados num álbum.

Do mesmo modo, um compositor entregaria a mesma melodia para cinco ou dez poetas, que colocariam letras diferentes na música, cada um deles sem ver o que os outros estavam fazendo. (O projeto só teria sentido, claro, se todo mundo estivesse sabendo do que se tratava, mas sentindo-se livre para seguir a própria inspiração.) 

O objetivo de um projeto assim não seria fazer a comparação e a competição entre os resultados, mas ilustrar as incontáveis sugestões e possibilidades de combinação entre versos e melodias.

Não sei se muita gente já percebeu, mas as canções de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira Asa Branca e Assum Preto são totalmente simétricas, apesar de bem diferentes (Asa Branca é em tom maior, a outra em tom menor). Já cantei muitas vezes, em mesa de bar, uma delas com a letra da outra, e todo mundo cantou junto, sem perceber a mudança.

 

 


4 comentários:

  1. Havia aqui em hellcife um bloco de carnaval chamado Quanta Ladeira no qual todas as músicas cantadas eram paródias de músicas conhecidas... Com letras bem alteradas e para maiores.
    Até o hino do bloco... quanta ladeira, Olinda quanta ladeira... já era uma paródia.

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    1. Hahah Izaias, o próprio Braulio Tavares, que assina o artigo, é o compositor de uma porrada dessas paródias e todo ano tava lá no palco do quanta cantando

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  2. Interessante. Paródia musical contrafactum que me faz rir bastante é daquele comediante músico mineiro Marcus Vinile colocando o primeiro verso de "Menino da Porteira" em várias melodias diferentes.

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  3. Tem a história de 'João e Maria', que Chico conta que depois de botar a letra descobriu que já havia uma de anos antes hahah e me lembro de 'Nascente', que a versão que ficou conhecida com o clube da esquina é uma segunda letra que o próprio Murilo Antunes pediu a Flávio Venturini, autor da melodia, pra refazer inteira pouco antes da gravação

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