Sou assinante há muitos anos, desde que entrei na Internet (um quarto de século, mais ou menos), da lista de mensagens A Word A Day, que nos envia exatamente isto: Uma Palavra Por Dia. Todos os dias (exceto sábados e domingos) recebo um email enviado pelo competentíssimo Anu Garg (um norte-americano nascido na Índia) e sua equipe, com um verbete de dicionário.
Uma palavra, sua natureza gramatical, seu significado, sua origem, seu(s) emprego(s) na linguagem corrente, um ou dois exemplos tirados da imprensa e da literatura.
A gente assina mandando um email para:
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Pra quem estuda inglês (quem traduz, etc.) é uma mão na roda. Todo dia uma pequena surpresa.
A pequena surpresa de hoje foi a palavra contrafactum, que eu nunca tinha visto. Copio abaixo o teor da mensagem:
contrafactum
Pronunciation:
MEANING:
noun: A composition that makes use of an
existing piece of music with different lyrics.
ETYMOLOGY:
From Latin contrafacere (to counterfeit),
from contra- (against) + facere (to make or do). Earliest documented use: 1940.
NOTES:
A contrafactum aka contrafact is, literally
speaking, counterfeiting. It’s what you get when an existing tune is used with
a new set of words. A well-known example is The Star-Spangled Banner, the
national anthem of the US, which is sung to the music of “The Anacreontic Song”
popularly known as a drinking song.
Other examples of contrafacta are when secular music is used for religious
purposes and vice versa.
USAGE:
“At other times, the relationship between
contrafacta seems far-fetched. Why should ‘Peter’s Denial’ have the same music
as Judas’s reproach of Jesus for befriending Mary Magdalene?”
Joseph P. Swain; The Broadway Musical; Scarecrow Press; 2002.
Como se vê, é um verbete sempre curto, objetivo, direto
ao ponto, muitas vezes complementado por links úteis.
A palavra “contrafactum” me levou ao meu Dicionário Houaiss, que não a registra. E a uma breve pesquisa, porque esse assunto sempre me interessou.
A paródia musical (pegar uma canção séria e botar uma letra engraçada, na mesma melodia) é um exemplo popular de contrafactum. O brasileiro é o rei da paródia. Tenho uma turma de amigos cuja diversão era cantar a melodia de Rock Around the Clock de Bill Haley & Seus Cometas com a letra de Osório Duque Estrada para o “Hino Nacional Brasileiro”. Se aconchambrar um pouquinho, cabe.
Eu não considero que uma versão para outra língua constitua um “contrafactum”. Seja parecida com o original, ou muito diferente dele, a “versão” é necessária muitas vezes para ser gravada em outro país, é algo tão natural quanto traduzir um livro do inglês para o português. O “contrafactum” seria o equivalente a traduzir um livro do português para o português.
Existe o caso de um mesmo compositor colocar letras diferentes numa mesma melodia. Lembro o caso de Chico Buarque, com O Que Será, canção incluída na trilha sonora do filme Dona Flor e Seus Dois Maridos de Bruno Barreto, gravada com três letras ligeiramente diferentes pelo próprio Chico, por Milton Nascimento (no álbum Geraes) e por Simone.
As baladas populares da Europa nos séculos 18 e 19 eram frequentemente escritas para serem cantadas com uma melodia de conhecimento público. Folheando os arquivos da época (ou vendo as fotos em livros) a gente se depara constantemente com o aviso, logo abaixo do título do poema: “To the tune of XXX” (“Para ser cantada com a melodia de XXX”), sendo XXX alguma melodia popular daquele tempo, conhecida por todo mundo.
Os comentários de Anu Garg, acima, falam que muitas vezes a música profana recebia letras religiosas, e vice-versa. Fala-se que o escritor Rudyard Kipling, que além de romancista e contista era ótimo poeta, costumava cuidar do seu jardim (seu passatempo favorito) cantarolando em voz baixa hinos protestantes. É possível que muitos dos seus poemas, que são impecavelmente metrificados, tenham sido compostos desta forma, “letrando” a melodia de um hino qualquer, o que facilita a memorização.
Um exercício interessante para a composição de canções populares seria um letrista entregar a mesma letra para cinco ou dez compositores diferentes, e cada um deles a musicaria de acordo com seu próprio estilo e inspiração. Depois, os resultados seriam agrupados num álbum.
Do mesmo modo, um compositor entregaria a mesma melodia para cinco ou dez poetas, que colocariam letras diferentes na música, cada um deles sem ver o que os outros estavam fazendo. (O projeto só teria sentido, claro, se todo mundo estivesse sabendo do que se tratava, mas sentindo-se livre para seguir a própria inspiração.)
O objetivo de um projeto assim não seria fazer a comparação e a competição entre os resultados, mas ilustrar as incontáveis sugestões e possibilidades de combinação entre versos e melodias.
Não sei se muita gente já percebeu, mas as canções de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira Asa Branca e Assum Preto são totalmente simétricas, apesar de bem diferentes (Asa Branca é em tom maior, a outra em tom menor). Já cantei muitas vezes, em mesa de bar, uma delas com a letra da outra, e todo mundo cantou junto, sem perceber a mudança.
Havia aqui em hellcife um bloco de carnaval chamado Quanta Ladeira no qual todas as músicas cantadas eram paródias de músicas conhecidas... Com letras bem alteradas e para maiores.
ResponderExcluirAté o hino do bloco... quanta ladeira, Olinda quanta ladeira... já era uma paródia.
Hahah Izaias, o próprio Braulio Tavares, que assina o artigo, é o compositor de uma porrada dessas paródias e todo ano tava lá no palco do quanta cantando
ExcluirInteressante. Paródia musical contrafactum que me faz rir bastante é daquele comediante músico mineiro Marcus Vinile colocando o primeiro verso de "Menino da Porteira" em várias melodias diferentes.
ResponderExcluirTem a história de 'João e Maria', que Chico conta que depois de botar a letra descobriu que já havia uma de anos antes hahah e me lembro de 'Nascente', que a versão que ficou conhecida com o clube da esquina é uma segunda letra que o próprio Murilo Antunes pediu a Flávio Venturini, autor da melodia, pra refazer inteira pouco antes da gravação
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