(foto: Mari Lezhawa)
O problema é que existem seres humanos, virginianos em
sua maioria, que não permitem o menor erro ou imprecisão passar diante dos seus
olhos. Tem que parar o desfile de 7 de setembro inteiro, fazem com que dez mil
estudantes fiquem marcando passo à espera, enquanto um inspetor se insinua no
meio de um pelotão para ajeitar uma trunfa que o vento assanhou. Proibido
qualquer coisa fora do lugar! – eis a palavra de ordem.
É uma característica do espírito nerd essa obsessão pelo detalhe. O nerd é o resultado de uma mutação genética destinada a resolver
importantíssimos problemas da Humanidade numa era de aceleração tecnológica
onde mais e mais coisas atingem um nível inédito de complexidade, em virtude de
especificações decididas num micro-nível por força do uso de computadores.
Precisamos de mentes humanas capazes de distinguir essas nuances.
O nerd é um
filtro de exatidão. É como um browser que recusa uma senha ou uma URL de 150
dígitos se um deles estiver errado. A gente não pode convencer o browser de que
“é praticamente a mesma coisa”. O browser foi programado por um nerd e lhe dirá: “Na verdade, é teoricamente a mesma coisa, mas na
prática há a diferença de um dígito, e isto invalida o comando.”
Não duvido de que ainda veremos mesas-redondas em eventos
científicos com três ou quatro nerds comparando
diante da platéia suas versões conflitantes da dízima de “Pi” ou do algoritmo
de frequência dos números primos. O rapaz da mesa de som poderá se perguntar
qual é a serventia disso para a espécie humana, mas ele está errando o alvo. A
espécie humana surgiu para ser capaz de um dia (século vinte, vinte e um, por
aí) produzir esses indivíduos capazes de negar o Oscar a um filme porque na
cena tal aparece a sombra de um microfone.
Deus está nos detalhes, diz um velho provérbio, e o Diabo
está na percepção deles. Esses indivíduos catadores-de-lêndeas são capazes de
perceber o que é invisível a todos. Quando incomodam, não o fazem por mal. Você
mostra a um deles a foto de sua mãe vestida de noiva e ele diz: “A manga do
vestido está desfiada”. Não é culpa dele. Está em seu DNA.
Não esqueço uma discussão que vi a respeito de um filme
de faroeste. Chamamos o filme de faroeste, e foi o quanto bastou para que um
debatedor erguesse o dedo e nos lembrasse que a história era ambientada num
Estado qualquer, que já não lembro, mas que ficava na Costa Leste dos EUA.
“Sim,” disse alguém, “mas trata-se da história de
bandidos que assaltam uma diligência e se refugiam numa fazenda, sequestrando a
família do fazendeiro, até que os vaqueiros vêm em socorro do patrão e o
libertam. Fazenda, gado, vaqueiros, revólveres, tiroteios, cavalos: é um
faroeste”. “Mas, como, se a história se passa no Leste?” insistia o rapaz. Isso
foi há uns 40 anos, e provavelmente ainda estão lá, as barbas brancas
arrastando no chão sobre as teias de aranha, e não chegaram a um acordo.
Eles são sensíveis à minima incoerência. São como o canário
que os trabalhadores nas minas de carvão levam consigo para dentro do poço. O
canário é excessivamente sensível a qualquer emanação de gás, e quando um deles
cai duro é sinal de que está na hora de evacuar a mina, antes que o gás comece
a afetar os seres humanos.
Os indivíduos detalhistas são assim: eles são sensíveis a
defeitos, erros, incoerências, imperfeições, inexatidões de todo tipo, e antes
que essas coisas cheguem a um ponto de incomodar os seres humanos, eles acusam
o golpe, ficam pálidos, com sudorese, apontando a página de um livro:
“Faltou a crase, faltou a crase!”.
Por isso, quando a gente escreve ou quando fala em
público, precisa estar sempre na defensiva. Pode haver um deles na platéia. Qualquer
afirmação generalizante, tipo “como sabemos, o brasileiro gosta muito de
música”, fará erguer-se um braço no auditório e com ele o brado: “eu não
gosto!”. Para prevenir ressalvas desse tipo foram criadas expressões atenuantes
como “em geral”, “na maioria dos casos”, “em grande parte dos casos”,
“normalmente”, “cerca de “, “aproximadamente”... Servem para exorcizar esses indivíduos
prontos a brandir uma exceção toda vez que a gente enunciar impensadamente uma
regra.
E então o jeito é dizer “La Paz!...” – e ir em frente.
Muito bom.
ResponderExcluirEscrevi Autorretrato metida (ao M.B)coloquei Mullherio/NE,Dra.Tilde:Vera? Admirável mundo gasoso, arripio na espinha.Parabéns! Grata por seres o Trupizupe, alimento da alma!
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