Queixam-se muitos escritores, os jovens principalmente,
de que trabalham no escuro, como completos desconhecidos. Ninguém lhes dá
atenção, ou lhes dedica respeito, enquanto eles elaboram, sabe-se lá com que
sacrifício, o livro com que pretendem um dia estrear nas letras.
Entendo isso, mas entendo também o anonimato como uma
bênção. Ninguém os elogia, mas ninguém também os esculhamba em público. Ninguém
lhes pede contas de sua vida pessoal. Ah, a imprensa não noticia suas viagens, seus
aniversários, as noites em que recebem amigos para jantar? Aproveitem.
Pobre escritor que desembarca sozinho no aeroporto,
arrastando a mala de rodinhas, e não há uma multidão pedindo autógrafos e
selfies? Em verdade vos digo que quem anseia por essas coisas e se dedica à
literatura está batendo à porta errada num prédio que não vai ser construído.
O anonimato pode ser uma bênção. Se não o anonimato
total, mas o fato de que muitas vezes o escritor trabalha no centro de um
mundinho de algumas dezenas de pessoas que o consideram O Gênio Da Raça, mas são
só algumas dezenas. Parentes, amigos, colegas, alunos... Ele escreve, as
pessoas leem, os anos se passam e todo mundo diz que ele merece o Prêmio Nobel.
Isso é bom. Dá-lhe ânimo para continuar escrevendo.
Não foi outro, por exemplo, o destino de Jorge Luís
Borges entre os 35 e os 50 anos, época em que produziu, podemos admitir, suas
obras fundamentais, as que deram um abalo no conceito de literatura na segunda
metade do século: História Universal da
Infâmia (1935), História da
Eternidade (1936), Ficções
(1944), O Aleph (1949).
Dizer que foram escritas no anonimato é talvez um
exagero. Borges era conhecido em Buenos Aires e Montevidéu, mas era o ídolo de
uns happy few, uns poucos felizardos
que acompanhavam suas publicações e suas palestras. Nada disso, porém, se
compara à explosão que ele experimentou a partir dos 60 anos, quando dividiu o
Prix International com o irlandês Samuel Beckett. Traduções em penca,
reedições, viagens pelo mundo todo. As intermináveis, insuportáveis,
incontornáveis entrevistas.
Escritores deveriam ser poupados de duas tragédias: a
penúria e a fama.
José Veríssimo, em sua equilibrada e judiciosa História da Literatura Brasileira (1916),
observa alguns casos curiosos entre nossos autores:
Na literatura brasileira dá-se freqüentemente o caso estranho de
iniciarem-se os escritores com as suas melhores obras e estacionarem nelas, se
delas não retrogradam. O fato passou-se com Alencar com o Guarani,
com Macedo com a Moreninha, com Taunay com a Inocência,
com Raul Pompéia com o Ateneu, com o Sr. Bilac com as suas
primeiras Poesias, e se está acaso passando com o Sr. Graça Aranha
com o seu Canaã.
Até onde vai meu conhecimento é um julgamento merecedor
de exame. O próprio Veríssimo, comentando a obra de Alencar, não deixa de
observar que o temperamento deste, seu excesso de zelos, sua disposição para a
polêmica, seu envolvimento com a política, foram alguns fatores que tiveram
influência direta na sua obra, principalmente na segunda fase desta, a partir
de 1870, em que se assinava “Sênio”, e que para Veríssimo é claramente inferior
à primeira fase.
(José de Alencar
]
Artista nervoso e nimiamente suscetível, um sensitivo, alma de
impressionabilidade doentia, não soube Alencar sofrer com isenção e
superioridade o malogro das suas ambições políticas, mais quando vinha
acompanhado da negação dos seus talentos literários e da sua obra, em
arremetidas açuladas pelos mesmos com quem o seu temperamento irritadiço, quiçá
vaidade de intelectual que se não dissimulava bastante, o tinham politicamente
incompatibilizado.
Para muitos autores o excesso de exposição pesa na mão,
na hora de escrever. O excesso de expectativas positivas, por exemplo. Estou
cansado de ver a imprensa literária publicando matérias no tom de “O mundo inteiro aguarda com enorme
expectativa a nova obra magistral de Umberto Eco. Os originais foram entregues
na semana passada à editora Einaudi, e um frenético leilão já está em curso
pelos direitos de tradução em dezenove idiomas.”
Tem quem escreva com um barulho desse? Precisa ter nervos
de jogador de basquete na hora do lance-livre.
Alguns se dão bem com isso. Outros não.
No cinema, acho que foi François Truffaut quem se referiu
à “maldição do segundo filme”, porque o jovem diretor derrama tudo que sabe e
tudo que pode em seu primeiro trabalho pra valer, vê como este é recebido com
admiração e entusiasmo, o que gera uma tremenda expectativa para seu filme
seguinte – que ele não sabe o que vai ser, porque gastou toda a munição que
tinha na obra-prima com que estreou.
Com ele aconteceu mais ou menos isso, porque estreou com
o “universalmente aclamado” Os
Incompreendidos (1959), “o filme que inventou a Nouvelle Vague”, e ninguém lembra mais do filme que fez no ano
seguinte, um policial noir baseado em
David Goodis, Atirem no Pianista.
Truffaut conseguiu – como tantos – fazer filmes numerosos e superiores ao seu
primeiro, mas porque era um cinemeiro, vivia do e para o cinema, tinha muito talento,
queimou tudo quanto tinha para queimar, morreu com 52 anos.
Talvez o menor impacto que teve a obra de Eric Rohmer o
tenha ajudado a ser ele mesmo e produzir dezenas de filmes simples, discretos,
feitos sem alarde e assistidos com silenciosa simpatia por um público pequeno
mas até hoje fiel.
(Eric Rohmer)
Na literatura, que é um ofício mais solitário, vejo
muitos casos em que um primeiro romance, mesmo com as limitações naturais de
uma obra de estréia, reflete a pessoa e o mundo do seu autor. Quando há um
grande sucesso, acontece às vezes que quem escreve os livros seguintes não é o
mais o autor que escreveu o primeiro, e sim o autor que ele imagina ser depois
de ter lido tudo que se escreveu sobre ele.
Como tudo na vida, esse excesso de auto-consciência pode
ajudar e pode atrapalhar. Nem todo mundo administra o sucesso com mão firme.
Para os mais extrovertidos, o anonimato é um peso insuportável e a fama é o voo
libertador. E quem pode dizer que estão errados? Outros, no entanto, trocariam
boa parte da badalação pública pelo direito de escrever sem prestar contas a
ninguém, sem ter por cima do ombro um grupo de críticos prontos a sentar-lhe a
chibata ou a chamá-lo de gênio por dá cá aquela palha.
O escritor é um bicho solitário que escreve, só isso. Qualquer expectativa além da necessidade de escrever não faz sentido. Falo do verdadeiro escritor, e não do caçador de fama. Aos jovens que sofrem com o anonimato (coisa compreensível nessa sociedade doente movida por grana e aparências), uma dica: além de escrever, saia da zona de conforto. Envelheça, ame, sofra, erre, trabalhe duro em coisas sem qualquer relação com a literatura, mire bem no olho da morte e do esquecimento, que é o destino de todos nós. Roa o osso da vida até não sobrar nada. Até perceber que a fama é uma quimera inútil. Aí sim, sua escrita vai brotar com força.
ResponderExcluirAnônimo, vi uma palestra de meu amigo Rubens Figueiredo, onde lhe perguntaram se ser professor e tradutor (como é o caso dele) ajuda a literatura. Ele disse que a profissão-paralela ideal para um escritor seria algo como taxista, enfermeiro, técnico da Net, etc.: algo que o obrigasse a sair de dentro do seu gabinete cheio de livros e de citações, e o forçasse a passar o dia relacionando-se com numerosas pessoas desconhecidas, de diferentes idades, classes sociais, visões do mundo, etc., e num contato destinado a resolverem juntos um problema de ordem prática.
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