4697) As distopias do mundo real (25.4.2021)
Como se tem falado sobre literatura Utópica e Distópica! Dez
anos atrás, você só via a palavra “Distopia” em websaites de ficção científica.
Hoje circula por todo canto. Não dou seis meses para aparecer nas letras de
algum álbum de dupla sertaneja. “Veeeem...
Vem trazer o sol para clarear meu dia...
Vem me tirar desta distopia... em que você me deixou!”
Tudo é possível, porque é o espírito do tempo, é o
momento presente do mundo, envolto (além dos problemas permanentes, e cada vez
maiores) com uma Pandemia e tentativas localizadas de quarentenas, lockdowns,
etc.
Na literatura há ficções sobre Utopias que parecem brotar
em lugares remotos, espontaneamente, “de dentro para fora”, sem interferência
de outras civilizações e em alguns casos sem interferência sequer de um
programa organizado de governo. Seriam utopias espontâneas, como a sociedade
dos índios – contratos sociais que foram se fixando por si mesmos, sujeitos a
interferências, adaptando-se...
Em outros casos, temos as Utopias De Cima Para Baixo,
aquele velho esquema de um grupo que toma o poder e decide estabelecer ali a
civilização ideal da paz e harmonia, mesmo que para si tenha que recorrer ao
extermínio dos dissidentes. É aquela contradição entre boas intenções teóricas e
métodos práticos truculentos, tão bem expressa pelo Augusto Matraga, de
Guimarães Rosa, em sua fase de beato: “Pro
Céu eu vou, nem que seja a porrete!...”
Muitas utopias literárias são impostas a porrete, daí o
comentário tão frequente de que a utopia de uns é sempre a distopia de outros.
As discussões recentes sobre este assunto têm se concentrado
em três obras principais: Admirável Mundo
Novo de Aldous Huxley, 1984 de
George Orwell e Laranja Mecânica de
Anthony Burgess. São três livros de autores respeitados pela crítica literária
e pelo Establishment intelectual e acadêmico do seu país de origem – os três
eram ingleses, embora Orwell tivesse nascido na Índia.
Este é um forte elemento em comum, porque todos três
exprimem modos peculiarmente britânicos de refletir sobre governos fortes,
guerra, sociedade rigidamente estratificada em classes sociais, demagogia
política, embrutecimento das classes trabalhadoras, estrangulamento das
possibilidades de futuro dos mais jovens. Há nos três livros muita coisa de
universal, mas são um conjunto de reflexões tipicamente britânicas sobre o
perfil que deverá ter a derrapagem final da Humanidade.
Não são as únicas receitas. É claro. Por exemplo, tanto
Huxley quanto Orwell sofreram uma forte influência do russo Yevgeny Zamiátin,
com Nós (1921), já publicado no
Brasil (como A Muralha Verde, pela
GRD; como Nós, pela Aleph). Como o autor é meio obscuro, sua influência
passa um pouco despercebida, mas eu diria que ele marcou toda essa geração de
autores ingleses.
As distopias são “cenários de gargalo”, ordens
sócio-políticas em que todas as possibilidades de ação e de realização humana
veem-se bloqueadas em várias direções e canalizadas rumo a atividades que
interessam a um governo forte, bem armado e com domínio da tecnologia,
inclusive a tecnologia conceitual (manipulação ideológica das massas, etc.). O
que nelas existe de caos são as emoções turbulentas, autodestrutivas e
rancorosas da população – um pouco menos no livro de Huxley, onde um paraíso de
drogas legalizadas a mantém numa agitação auto-erótica permanente.
As possibilidades, como sempre, são infinitas. O francês
Georges Perec tem um curioso romance-memória, W ou A Memória da Infância (1975; Companhia das Letras, 1995). Uma
das linhas narrativas do livro descreve a ilha de W, no Atlântico Sul, onde
vigora uma sociedade baseada no autoritarismo, nos esportes atléticos, na
competição incessante, na busca de índices numéricos, na violência física, na
traição moral.
É como se numa oficina de ficção científica um professor
dissesse a um aluno: “A sua tarefa vai ser imaginar um mundo organizado em
torno de uma Olimpíada nazista permanente”.
O livro de Perec, apesar da superfície realista, é um
pesadelo irreal, que só nos atinge de forma indireta. Muito mais real é uma
narrativa onde somos capazes de reconhecer algo de nossa vida cotidiana.
Frederik Pohl e C. M. Kornbluth escreveram The
Space Merchants (1952), já traduzido no Brasil como Os Mercadores do Espaço, onde imaginam uma América do Norte
faminta, desempregada e desvalida, mas como quem está no Poder são os
publicitários, todas as pessoas imaginam que são felizes e que a vida é somente
aquilo mesmo.
A própria ilha de Utopia, de Thomas More, é uma distopia, uma nação militaresca, repleta de interditos.
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