O que é “bom senso na tradução”? Não acontece apenas na interpretação do texto estrangeiro, no esforço para entender o que o autor disse. Pode ser – por exemplo – o bom senso de não querer traduzir em excesso, com exatidão perfeita, porque não é disso que se trata.
Estou lendo um conto de Brian Stableford, “The House of Mourning”. Logo no começo, o conto mostra um diálogo entre duas mulheres adultas numa situação de confronto, duas irmãs, Anna e Isabel. E ele diz:
Isabel had always been scared of Anna, even though she was two years older, two inches taller, and two stones heavier.
“Anos” não oferece problema, mas temos em seguida “inches” (polegadas, ou seja, 2,54 centímetros cada) e “stones” (medida inglesa de peso, equivalente a 6,35 quilos).
O tradutor pertencente ao grupo que Nelson Rodrigues, meio cruelmente, chamava de “os idiotas da objetividade”, traduziria assim:
Isabel sempre tivera um certo medo de Anna, mesmo sendo dois anos mais velha, 5,08 centímetros mais alta e 12,7 quilos mais pesada.
Ninguém precisa disso, não é verdade? Essas cifras são meramente aproximativas, e tenho certeza de que se Brian Stableford tivesse tido a idéia de medir as duas moças veria que esses números não correspondem à verdade diegética dos fatos. Para o tradutor literário, mais importante do que conferir as migalhas numéricas é seguir a simetria e a cadência da frase original, mais ou menos assim:
Isabel sempre tivera um certo medo de Anna, mesmo sendo dois anos mais velha, dois centímetros mais alta e com doze quilos a mais.
Muitas vezes o texto em inglês nos fornece distância em milhas, que a maioria das editoras aconselha a traduzir por “quilômetros” e recalcular. Nem sempre é um cálculo preciso. Existem milhas terrestres e milhas náuticas, existem medidas diferentes de “milha” em diferentes países. De um modo geral, eu calculo que uma milha quer dizer 1.600 metros, ou 1,6 km, e ponho o equivalente em português.
Sempre? Não, nem sempre. Uma coisa é você estar traduzindo um romance de guerra, digamos, sobre a retirada de um batalhão, e um oficial dizer para o outro: “Temos que prosseguir, faltam pouco mais de 6 milhas para chegarmos num lugar seguro.” Se vou adaptar para quilômetros, preciso ter a consciência de que numa situação assim cada metro é importante. E digo: “Temos que prosseguir, faltam pouco menos de dez quilômetros”. No contexto da história, é preciso ficar pertinho da medida original. Para dar idéia clara da situação.
Às vezes estou traduzindo um daqueles romances policiais de “quarto fechado”, que frequentemente dependem de engenhocas mecânicas, muito delicadas, complexas, para que o crime seja cometido. Digamos que o detetive observa: “Well, Watson, I see that this windowsill is only one-and-a-half-inch wide.” Em detalhes assim, cada milímetro é importante para a verossimilhança do que virá mais adiante, então digo: “Bem, Watson, vejo que o caixilho desta janela tem apenas 3,8 centímetros de largura”.
Se um personagem ferido estava conseguindo se arrastar “inch by inch”, basta-me dizer que ele estava avançando “centímetro a centímetro”.
Se um ladrão comete um roubo e as pessoas só se dão conta quando ele está a uma milha de distância, basta-me dizer que era um quilômetro de distância. Não é uma medida exata. É só mesmo para dizer que o cara estava bem longe.
Traduzir “certo” muitas vezes não é o bastante. É preciso traduzir da maneira mais adequada, para que o leitor receba a informação do modo mais conveniente.
Juro que nem percebi de imediato. Mas rabisquei na lateral da lauda: Não seria “O Processo”? Demos muita risada disso, e para mim ficou um exemplo perfeito, porque “the trial” admite as duas traduções, mas o romance de Kafka é conhecido entre nós apenas por uma delas. Não adianta colocar a outra e dizer que “está tecnicamente correto”. O próprio conceito de “tecnicamente correto” precisa ser mais exigente do que isto.
Alguns anos atrás comecei a traduzir para o selo Alfaguara (hoje parte da Companhia das Letras) a obra de Raymond Chandler. Minhas traduções eram revisadas e discutidas pelo editor, Marcelo Ferroni, que não apenas corrigia meus erros e cochilos, como dividia comigo a tarefa sempre espinhosa de achar um título para a obra. (Na tradição do mundo editorial, como no mundo jornalístico, é o editor quem dá o título do livro ou da matéria, não o tradutor ou o redator da notícia.)
Alguns títulos chandlerianos não deram muito trabalho, pois acho que The Long Goodbye tem mesmo que ser O Longo Adeus, e The Big Sleep já se consagrou como O Sono Eterno – não vimos necessidade de mexer em nada disso. (Embora Boris Vian tenha traduzido este último como Le Grand Sommeil, e essas “jurisprudências” sempre são levadas em conta.)
Surgiu um pequeno impasse com Farewell, My Lovely. As edições brasileiras anteriores tinham optado por Adeus, Minha Adorada, na versão de Newton Goldman para a Brasiliense, e na de Marina Leão Teixeira Viriato de Medeiros para a Abril Cultural. A tradução espanhola de José Luis López Muñoz era Adiós, muñeca.
Começamos um cabo-de-guerra, porque Marcelo preferia Adeus, Minha Querida e eu, inspirado na tradução francesa de Geneviève de Genevraye (Adieu, Ma Jolie), queria colocar Adeus, Minha Linda.
Tudo isto aconteceu ao longo do ano de 2015, marcado pelo rumoroso processo do impeachment de Dilma Roussef, e eu andava num baixo astral tão grande que em algum momento pensei em intitular o livro Tchau, Querida.
E teve o caso de The Little Sister, que, se não me engano, sempre foi traduzido entre nós como A Irmãzinha. De fato, a história apresenta uma dupla de irmãs cuja rivalidade desencadeia uma série de crimes. Marcelo Ferroni, contudo, observou que a expressão “a irmãzinha” sugere a imagem de uma garotinha de tranças, com dez anos de idade. E a personagem crucial do livro, a verdadeira “mulher fatal” é, das duas, a irmã mais nova. E ficou este o título: A Irmã Mais Nova, que me parece igualmente verdadeiro, e mais original.
Isto está certo, aquilo está errado? Nunca se sabe. Chega um momento em que traduzir é igual a escrever: a partir de um certo ponto não existem mais o certo nem o errado, e sim o que a nossa intuição nos diz ser o mais adequado. Ou o mais bonito. Ou o mais inovador. Ou o mais comercial. Ou o mais sonoro. Ou o mais “literário”.
As possibilidades, como sempre, são infinitas.