domingo, 28 de março de 2021

4688) O bom senso na tradução (28.3.2021)




O que é “bom senso na tradução”? Não acontece apenas na interpretação do texto estrangeiro, no esforço para entender o que o autor disse. Pode ser – por exemplo – o bom senso de não querer traduzir em excesso, com exatidão perfeita, porque não é disso que se trata.
 
Estou lendo um conto de Brian Stableford, “The House of Mourning”. Logo no começo, o conto mostra um diálogo entre duas mulheres adultas numa situação de confronto, duas irmãs, Anna e Isabel. E ele diz:
 
Isabel had always been scared of Anna, even though she was two years older, two inches taller, and two stones heavier.
 
“Anos” não oferece problema, mas temos em seguida “inches” (polegadas, ou seja, 2,54 centímetros cada) e “stones” (medida inglesa de peso, equivalente a 6,35 quilos).
 
O tradutor pertencente ao grupo que Nelson Rodrigues, meio cruelmente, chamava de “os idiotas da objetividade”, traduziria assim:
 
Isabel sempre tivera um certo medo de Anna, mesmo sendo dois anos mais velha, 5,08 centímetros mais alta e 12,7 quilos mais pesada.
 
Ninguém precisa disso, não é verdade? Essas cifras são meramente aproximativas, e tenho certeza de que se Brian Stableford tivesse tido a idéia de medir as duas moças veria que esses números não correspondem à verdade diegética dos fatos. Para o tradutor literário, mais importante do que conferir as migalhas numéricas é seguir a simetria e a cadência da frase original, mais ou menos assim:
 
Isabel sempre tivera um certo medo de Anna, mesmo sendo dois anos mais velha, dois centímetros mais alta e com doze quilos a mais.
 
Muitas vezes o texto em inglês nos fornece distância em milhas, que a maioria das editoras aconselha a traduzir por “quilômetros” e recalcular. Nem sempre é um cálculo preciso. Existem milhas terrestres e milhas náuticas, existem medidas diferentes de “milha” em diferentes países. De um modo geral, eu calculo que uma milha quer dizer 1.600 metros, ou 1,6 km, e ponho o equivalente em português.
 
Sempre? Não, nem sempre. Uma coisa é você estar traduzindo um romance de guerra, digamos, sobre a retirada de um batalhão, e um oficial dizer para o outro: “Temos que prosseguir, faltam pouco mais de 6 milhas para chegarmos num lugar seguro.”  Se vou adaptar para quilômetros, preciso ter a consciência de que numa situação assim cada metro é importante. E digo: “Temos que prosseguir, faltam pouco menos de dez quilômetros”. No contexto da história, é preciso ficar pertinho da medida original. Para dar idéia clara da situação.
 
Às vezes estou traduzindo um daqueles romances policiais de “quarto fechado”, que frequentemente dependem de engenhocas mecânicas, muito delicadas, complexas,  para que o crime seja cometido. Digamos que o detetive observa: “Well, Watson, I see that this windowsill is only one-and-a-half-inch wide.” Em detalhes assim, cada milímetro é importante para a verossimilhança do que virá mais adiante, então digo: “Bem, Watson, vejo que o caixilho desta janela tem apenas 3,8 centímetros de largura”.



Por outro lado...
 
Se um personagem ferido estava conseguindo se arrastar “inch by inch”, basta-me dizer que ele estava avançando “centímetro a centímetro”.
 
Se um ladrão comete um roubo e as pessoas só se dão conta quando ele está a uma milha de distância, basta-me dizer que era um quilômetro de distância. Não é uma medida exata. É só mesmo para dizer que o cara estava bem longe.
 
Traduzir “certo” muitas vezes não é o bastante. É preciso traduzir da maneira mais adequada, para que o leitor receba a informação do modo mais conveniente.

Uma vez eu estava revisando uma tradução, feita por um tradutor profissional, amigo meu, um cara que podia perfeitamente estar corrigindo uma tradução minha. Lá vou eu, em céu de brigadeiro, e de repente me dou conta de que o personagem do livro está em sua sala, lendo um romance: O Julgamento, de Franz Kafka.
 
Juro que nem percebi de imediato. Mas rabisquei na lateral da lauda: Não seria “O Processo”?  Demos muita risada disso, e para mim ficou um exemplo perfeito, porque “the trial” admite as duas traduções, mas o romance de Kafka é conhecido entre nós apenas por uma delas. Não adianta colocar a outra e dizer que “está tecnicamente correto”. O próprio conceito de “tecnicamente correto” precisa ser mais exigente do que isto.
 
Alguns anos atrás comecei a traduzir para o selo Alfaguara (hoje parte da Companhia das Letras) a obra de Raymond Chandler. Minhas traduções eram revisadas e discutidas pelo editor, Marcelo Ferroni, que não apenas corrigia meus erros e cochilos, como dividia comigo a tarefa sempre espinhosa de achar um título para a obra. (Na tradição do mundo editorial, como no mundo jornalístico, é o editor quem dá o título do livro ou da matéria, não o tradutor ou o redator da notícia.)
 
Alguns títulos chandlerianos não deram muito trabalho, pois acho que The Long Goodbye tem mesmo que ser O Longo Adeus, e The Big Sleep já se consagrou como O Sono Eterno – não vimos necessidade de mexer em nada disso. (Embora Boris Vian tenha traduzido este último como Le Grand Sommeil, e essas “jurisprudências” sempre são levadas em conta.)



Surgiu um pequeno impasse com Farewell, My Lovely. As edições brasileiras anteriores tinham optado por Adeus, Minha Adorada, na versão de Newton Goldman para a Brasiliense, e na de Marina Leão Teixeira Viriato de Medeiros para a Abril Cultural. A tradução espanhola de José Luis López Muñoz era Adiós, muñeca.
 
Começamos um cabo-de-guerra, porque Marcelo preferia Adeus, Minha Querida e eu, inspirado na tradução francesa de Geneviève de Genevraye (Adieu, Ma Jolie), queria colocar Adeus, Minha Linda.
 
Tudo isto aconteceu ao longo do ano de 2015, marcado pelo rumoroso processo do impeachment de Dilma Roussef, e eu andava num baixo astral tão grande que em algum momento pensei em intitular o livro Tchau, Querida.
 
E teve o caso de The Little Sister, que, se não me engano, sempre foi traduzido entre nós como A Irmãzinha.  De fato, a história apresenta uma dupla de irmãs cuja rivalidade desencadeia uma série de crimes. Marcelo Ferroni, contudo, observou que a expressão “a irmãzinha” sugere a imagem de uma garotinha de tranças, com dez anos de idade. E a personagem crucial do livro, a verdadeira “mulher fatal” é, das duas, a irmã mais nova. E ficou este o título: A Irmã Mais Nova, que me parece igualmente verdadeiro, e mais original.


Isto está certo, aquilo está errado? Nunca se sabe. Chega um momento em que traduzir é igual a escrever: a partir de um certo ponto não existem mais o certo nem o errado, e sim o que a nossa intuição nos diz ser o mais adequado. Ou o mais bonito. Ou o mais inovador. Ou o mais comercial. Ou o mais sonoro. Ou o mais “literário”.
 
As possibilidades, como sempre, são infinitas. 











quinta-feira, 25 de março de 2021

4687) Primeiras Estórias: "Nenhum, Nenhuma" (25.3.2021)



(desenho: Luís Jardim)
 
O oitavo conto do livro Primeiras Estórias  (1962) de Guimarães Rosa é uma não-história, um não-enredo. Ele mostra uma situação lembrada e descrita, mas que não se conclui num desfecho. Um redator de “Manuais de Escrita Criativa” devolveria o texto ao autor, dizendo: “Isto aqui não é um conto, não tem começo, não tem meio, não tem fim. Vai ser muito difícil colocá-lo no mercado. Reescreva.”
 
Tem ficado cada vez mais nítida (e mais forçada) aqui no Brasil a idéia tipicamente européia e norte-americana de que toda história tem que ter começo, meio e fim. É como aquele pintor do século 16 que preconizava: “Toda pintura a óleo deve representar uma batalha, uma cena religiosa ou o retrato de um nobre – senão, para que se dar o trabalho de pintar um quadro?!”.
 
Não tenho nada contra a idéia do “conto em forma de seta”, a narrativa que aponta toda para um desfecho. A maioria dos meus contos segue exatamente esse formato. Apenas acho que não é a única forma, nem a mais importante, nem sequer a mais “colocável no mercado”. 
 
Guimarães Rosa tinha seus formatos próprios de história. Eu diria que o formato de “Nenhum, Nenhuma” é o de um diafragma de câmera fotográfica. Algo meio circular, meio em forma de rosácea, que se abre a partir do centro, deixa entrever um ambiente, um grupo de pessoas conversando num cenário, e depois se fecha novamente.
 
E nesse abrir e fechar-se, e deixar passar a luz, ele pode dirigir seu foco para um detalhe, para uma pessoa, para o ambiente em geral.


O Menino (olha ele aqui, o mesmo Menino com inicial maiúscula dos contos de abertura e encerramento do livro) está passando uns dias numa casa de fazenda de alguém da família. Desse período curto, mas confusamente revelatório, ele guarda uma lembrança que tenta emergir e depois tenta esconder-se novamente, à maneira esquiva de certas lembranças infantis.
 
Por isso mesmo, e pela falta de enredo articulado, novidadeiro, penso que se trata não de história inventada, como se autoproclamava a de Augusto Matraga, mas de um episódio autobiográfico, alguma coisa da infância de Rosa, senão não tinha nenhuma razão do próprio, nascido em 1908, fazer questão de destacar:
 
Na verdade, a data não poderia ser aquela. Se diversa, entretanto, impôs-se, por trocamento, no jogo da memória, por maior causa. Foi a Moça quem enunciou, com a voz que assim nascia sem pretexto, que a data era a de 1914? E para sempre a voz da Moça retificava-a.
 
Na tal fazenda onde o Menino está de passagem, há a Moça, figura ao mesmo tempo maternal e erótica nas fantasias dele. Há o Moço, pretendente dela, amigo da família do Menino, mas por uma questão de rivalidade edipiana o Menino vê o Moço com “antipatia”, “rancor”, “ciúmes”. Há o Homem, um velho silencioso, distante, meio carrancudo, que é também o pai da Moça.
 
E há um quarto da casa ao qual nos primeiros dias o Menino tem acesso proibido (como o quarto proibido na casa do Barba Azul), e no qual ele vem a descobrir, com o passar dos dias e o afrouxamento dos cuidados, que mora uma velha, a Nenha, “uma velha, uma velhinha – de história, de estória – velhíssima, a inacreditável”. Nenha é tão velha que não apenas não lembra mais quem é, mas ninguém da família sabe como ela foi parar ali.
 
Antes de vir para a fazenda, ela ter-se-ia residido em cidade ou vila, numa certa casa, num Largo, cuidada por umas irmãs solteironas. Mesmo essas, mal contavam. Dera-se que, em tempos, quase todas as antecedentes mulheres da família, de roca e fuso, sucessivamente teriam morrido, quase de uma vez, do mal-de-semana, febre de parto; daí, rompido o conhecimento, os homens se mudando, andara confiada a estranhos a Nenha, velhinha, que durava, visual, além de todas as raias do viver comum e da velhez, mas na perpetuidade.
 
As mulheres velhas são literariamente um arquétipo da sabedoria pragmática, pré-livresca, das famílias unidas por laços de afetos e vivência, não por sobrenomes. Figuras iniciáticas, repositório concentrado da anima. Talvez a mais simpática dessas, na obra de Rosa, seja a Lina da “Estória de Lélio e Lina” (em Corpo de Baile, 1956). A Nenha deste conto é remota até a si mesma, não se alcança, não se lembra – emite apenas alguns murmúrios, e uma presença.
 
Me vem à memória o conto “Novecentas Avós”, de R. A. Lafferty, sobre um planeta onde as pessoas não morrem. Ficam pequenininhas, cada vez menores, e são colocadas pelos descendentes em porões especiais, onde continuam a diminuir. Com o passar dos séculos, ficam do tamanho de bonecas, depois do tamanho de insetos. O narrador é levado a um desses porões e pergunta a uma daquelas microscópicas avós como começou a raça humana daquele planeta. Ela começa a rir, todas as outras a imitam, e “era como o som de um bilhão de micróbios gargalhando”.


O que tem tudo a ver com a descrição que o Menino faz da Nenha: “...ela seria apenas a mãe de uma outra, de uma outra, de uma outra, para trás”.
 
Escrevi sobre o conto aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2009/12/1428-novecentas-avos-11102007.html
 
No conto de Rosa, a velhinha diminui, sim: “Traziam-na, para tomar sol, acomodadinha num cesto, que parecia um berço”. Mas sua interferência na estória é apenas de catálise, porque os cuidados que a Moça tem com ela despertam o ciúme do Moço, seu pretendente, que começa a questionar para quê tantos cuidados, até porque o Homem, pai da Moça, está “desenganadamente doente, para qualquer momento, mortal”.
 
O vislumbre da morte parece tornar o Moço impaciente, e o Menino presencia e descreve o casal jovem discutindo a relação, discutindo o que é o morrer, o querer, o lembrar. Ele e a Moça ficam de cara feia. E no dia seguinte ele chama o cavalo, monta, e leva o Menino de volta para a casa dos pais, de onde o trouxera. Acabou-se o passeio.
 
O trecho final é o regresso do Menino à casa, mas com a visão transformada por esse episódio.
 
Nunca mais soube de nada do Moço, nem quem era, vindo junto comigo. Reparei em meu pai, que tinha bigodes. Meu pai, estava dando ordens a dois homens, que era para levantarem o muro novo, no quintal. Minha Mãe me beijou, queria saber notícias de muita gente, olhava se eu não rasgara minha roupa, se tinha ainda no pescoço, sem perder nenhum, os santos de todas as medalhinhas.
 
E eu precisei fazer alguma coisa, de mim, chorei e gritei, a eles dois: “ – Vocês não sabem de nada, ouviram?! Vocês já se esqueceram de tudo o que, algum dia, sabiam!...”
 
E eles abaixaram as cabeças, figuro que estremeceram.
 
Porque eu desconheci meus Pais – eram-me tão estranhos; jamais poderia verdadeiramente conhecê-los, eu; eu?
 
Veja-se a sutileza desta pergunta final, porque o conto é narrado na terceira pessoa, sempre se referindo a “o Menino”, e só no trecho transcrito acima as recordações se tumultuam todas e se derramam incontíveis na confissão pessoal. Era eu, o Menino. Foi comigo, essa coisa que eu não lembro direito como foi. Seria isto, psicanaliticamente, o momento da cristalização do Eu?...
 
É um episódio sobre velhice, morte, amor, lembrança. Uma semi-recordação fundamente escavacada, e exumada aos pedaços, como um fóssil arrancado por um trator. A figura do Pai e da Mãe, talvez, compreendidos agora não como entidades fixas, mas como seres também arrastados pelo fluxo do Tempo, sujeitos à juventude, à velhice, à morte.



 
Guimarães Rosa viveu em Paris entre 1948 e 1950, como primeiro-secretário e conselheiro da embaixada do Brasil. Voltou ao Brasil em março de 1951, para ser chefe de gabinete do Ministro João Neves da Fontoura.

 
Alguém já me disse, mas nunca confirmei essa informação, que nessa estadia em Paris ele teria feito análise com Jacques Lacan, numa fase anterior à dos Seminários que tornaram Lacan famoso. Mesmo que não seja verdade, faz um certo sentido. A obra do autor mineiro tem a reiterada busca da infância, a mutabilidade das lembranças exumadas, o uso do trocadilho como revelação e descoberta, o emprego de recursos da álgebra e da geometria como formas de expressão literária. Para procurar (como diz o Menino) “o luar do meu mais-longe”.
 

(J. G. Rosa, menino)
 
 
 




segunda-feira, 22 de março de 2021

4686) O vampiro e a vanguarda (22.3.2021)




O que a gente chama de obra de vanguarda são obras que, paradoxalmente, muitas vezes refletem sobre o passado, sobre a retaguarda, propondo uma revisão de coisas que tínhamos como certas e definitivas – como a linguagem de uma arte qualquer, a pintura, a música, o cinema.
 
Estamos plácidos, satisfeitos, contentes com o que já sabemos e o que já dominamos. E certas obras de vanguarda vêm nos cutucar e nos perguntar: “Tem certeza de que é isso mesmo?”.
 
São as obras que nos convidam à famosa “ressignificação”, palavrinha que anda na ponta da língua de todo mundo. Vamos ressignificar. Vamos repensar. Vamos reinventar. Vamos redefinir. Como é mesmo essa história de que o Far-West americano era todo limpinho?... De repente aparece uma coisa plebéia e mal-educada como o “western spaghetti”, cheia de Ringos e Djangos bêbados, cuspindo, malcheirosos, caubóis que trocam de calça um vez por ano... Olhem só, era um cinema que ressignificou uma indústria inteira. Era de vanguarda, e a gente não sabia.



Alguém poderia fazer um filme de vanguarda com vampiros? Desta vez não falo apenas em filmes comerciais que questionam o gênero dentro do próprio gênero. Estou pensando num filme como Cuadecuc Vampir, de Pere Portabella (1970). É como a história de Drácula narrada por Andy Warhol. Ou como o Nosferatu de F. W. Murnau refilmado por Jean-Luc Godard – não o de Viver a Vida; o de Imagem e Palavra.
 
O filme está aqui, no YouTube, para tranquilizar os leitores que se queixam às vezes (com razão) de que eu gosto de comentar filmes que ninguém viu, ninguém tem, ninguém encontra:
 
https://www.youtube.com/watch?v=6yu4K6GPWCY&ab_channel=Nicol%C3%A1sValencia


Em 1970, o diretor espanhol Jesus Franco queria adaptar o romance Drácula (1897) de Bram Stoker, com Christopher Lee no papel principal, e garantiu ao ator que seria uma adaptação fiel. Lee partiu para a Espanha, pois dizia já estar enjoado de fazer o vampiro em histórias sem pé nem cabeça, muitas vezes mais próximas do ridículo do que do terror.
 
O filme, Conde Drácula (1970), não saiu grande coisa, mas tem pelo menos dois elementos ausentes nos demais: a presença do norte-americano Quincey Morris, personagem importante do livro, que todas as adaptações resolveram limar; e mostra um Conde que começa velho e vai remoçando à medida que saboreia o sangue das moças londrinas. É um filme relativamente fiel ao livro, mas vagaroso, cheio de planos desnecessários, com um elenco esforçado (tem até o doido Klaus Kinski no papel do doido Renfield) mas nem sempre eficaz.


O crítico Jonathan Rosenbaum, cuja opinião respeito muito, o considera “um dos piores filmes de horror já feitos”, mas faz a ressalva de que sem ele não existiria este média-metragem de Pere Portabella, que ele considera um “filme prodigioso”. Cobrindo para o Village Voice o Festival de Cannes de 1971, Rosenbaum achou o filme de Portabella “o filme mais original do festival e o mais sofisticado em seu audacioso modernismo”.
 
(Foi o ano em que foram exibidos Morte em Veneza de Visconti, The Go-Between de Joseph Losey, Johnny Got His Gun de Dalton Trumbo, O Amanhã Chega Cedo Demais de Jack Nicholson, Procura Insaciável de Milos Forman, Pindorama de Arnaldo Jabor, THX-1138 de George Lucas e outros.)
 
Aqui, o comentário de Rosenbaum:
https://news.google.com/newspapers?id=J3pIAAAAIBAJ&sjid=H4wDAAAAIBAJ&pg=6434,5448189



O que é o filme? Bem, enquanto Jesus Franco fazia seu Conde Drácula, que mesmo com toda fidelidade stokeriana não é melhor que as produções da Hammer Films naquela época, Portabella rodava com sua câmera os mesmos planos, fazendo uma espécie de “making of” do filme do outro. Cuadecuc Vampir é uma mistura de filme de ficção (porque acompanha tintim por tintim a narrativa do filme de Jesus Franco) e documentário, porque mostra em planos rápidos mas evidentes o trabalho da equipe, dos cinegrafistas, dos técnicos de efeitos especiais (soprando neblina, ajeitando maquiagem, etc.) e momentos de descontração dos atores, que sorriem e acenam para a câmera mesmo quando estão com a boca coberta de sangue, entre uma tomada e outra.

 
O filme é mudo, e tem a fotografia completamente estourada, em preto-e-branco (o filme de Jesus Franco é colorido), o que o deixa muito parecido com o Nosferatu de Murnau. Na trilha sonora, nenhuma voz dos atores, somente sons aleatórios – e entra aí o elemento Godard. Estrondos, pancadas soturnas sem qualquer sincronia com o que aparece na tela, inserção brusca de música orquestral melosa, rapidamente cortada... A trilha sonora é uma sucessão de silêncios e sustos.
 
Os últimos minutos do filme têm pela primeira vez som sincronizado, e mostram Christopher Lee, sentado no camarim, lendo um trecho do romance de Bram Stoker, onde é descrita a cena da morte do vampiro.


Cuadecuc (que significa algo como “a cauda da cobra”) pertence ao ramo desconstrutivo das vanguardas, em que alguém pega uma obra muito conhecida do público e nela interfere com ruídos, paródias, cortes, justaposições, comentários, variantes etc. 
 
Obras desse tipo são uma homenagem ao original, mesmo quando o menosprezam, pois não existiriam sem a fama do original. Quando Marcel Duchamp põe um par de bigodes na Mona Lisa essa piada herética só tem graça porque a Mona Lisa é “o quadro mais famoso do mundo”, como qualquer pesquisa DataFolha feita na Avenida Paulista pode comprovar. É preciso haver uma estrutura já conhecida para que a desconstrução vanguardista aconteça.
 
A história de Drácula é de conhecimento público, de modo que qualquer espectador irá entendendo quem é o rapaz que chega àquela cidade antiquada, de lá pega uma diligência, salta numa floresta brumosa, é levado para um castelo onde mora sozinho um velho imponente que lhe serve jantar mas não se alimenta... E de noite aparecem três moças bonitas e meio dentuças...
 
As peripécias do romance já foram glosadas e reglosadas em dezenas de filmes, quadrinhos, romances menores. O que há de interessante é que Portabella está recontando ao mesmo tempo um clássico da literatura de terror (Drácula, de Bram Stoker), um clássico do filme de terror (Nosferatu, de Murnau) e um filme de terror colorido, contemporâneo, que está sendo feito ao mesmo tempo por um amigo seu (Conde Drácula, de Jesus Franco).


(Pere Portabella)
 
Os antropólogos dizem que não há duas versões de um mito que sejam idênticas, e que nenhuma delas reúne todos os elementos do mito. É preciso reunir e superpor o maior número possível delas, para que as repetições e confirmações comecem a encorpar a narrativa mítica fundamental. O mesmo ocorre na cultura de massas, quando uma história “cai no gosto” das multidões e durante mais de um século é recontada mil vezes.
 
A vanguarda interfere nesse processo, não para confrontá-lo, talvez, mas para dar-lhe uma sacudidela, ver até que ponto ele está com os parafusos bem apertados, sentir até que ponto uma platéia pode assistir uma hora inteira de filme sem som (ou com som estridente e randômico) e ainda assim passar recibo de que viu a história do Conde Drácula.
 
Histórias clássicas dessa envergadura tendem à diluição e à esclerose quando são recontadas pela linguagem do cinema comercial, que é sempre datada, sempre conservadora. É o que ocorre com o filme de Jesus Franco, apesar da sua boa disposição em ser “fiel à obra original”.
 
A interferência vanguardista e herege de Portabella transforma uma história concebida para provocar um confortável terror (finalidade do cinema comercial) numa história que não aterroriza mas incomoda. O que é sempre bom de vez em quando.




 
 
 
 
 
 






sexta-feira, 19 de março de 2021

4685) As cidades imaginárias do romance policial (19.3.2021)

 


Na ficção científica e na fantasia é comum a invenção de cidades e países fictícios, pois a gente parte do princípio de que está descrevendo outros mundos, paisagens que existem somente na invenção.
 
O mais interessante é que o romance policial faz a mesma coisa. Vejam só. Um gênero que em princípio é tão apegado ao realismo, tão refratário ao fantasioso. No romance (conto, etc.) policial existe até uma espécie de “horror ao sobrenatural”, que é o oposto simétrico do “horror sobrenatural” de Lovecraft e Stephen King.
 
O romance policial é realismo puro, feijão-com-arroz puro, materialismo puro, um gênero escanchado confortavelmente na sela do raciocínio, da experimentação, da invariabilidade das leis da matéria. Quando o sobrenatural ou o fantasioso aparecem na primeira metade do livro, é apenas para receberem um desmentido cabal e arrasador na segunda metade. Foi assim que autores clássicos como John Dickson Carr e Ellery Queen fizeram sua fama.
 
E no entanto... Por que motivo existem tantas cidades imaginárias no romance policial?
 
Em parte, talvez, por discrição. Imagino que tenha sido esta a motivação principal de Agatha Christie ao inventar o vilarejo de St. Mary Mead, onde vive a simpática Miss Marple, a detetive amadora mais famosa da literatura. É um típico vilarejo inglês, a não ser pela assustadora percentagem de homicídios misteriosos que acontecem em seus chalés. Talvez por isso mesmo Dame Agatha tenha preferido inventá-lo, ao invés de ambientar as histórias num vilarejo real, que podia adquirir má fama.
 
Nos websaites dedicados à autora, há mapas e guias do “vilarejo”, indicando ruas principais, lojas, residências de personagens, locais dos crimes mais notórios.


Menos famosa, mas igualmente simpática aos meus olhos, é a cidadezinha de Wrightsville, onde Ellery Queen ambientou alguns dos seus romances mais engenhosos, como O Crime da Raposa (“The Murderer is a Fox”, 1945), Ten Days Wonder (1948, filmado por Claude Chabrol como “La Décade Prodigieuse”), e outros. É uma cidadezinha da Nova Inglaterra, clima um pouco frio, levemente conservadora... Algo parecido com Nova Friburgo no Estado do Rio, ou com Areia ou Bananeiras no brejo paraibano.


(mapa de Wrightsville)
 
Francis M. Nevins, o grande analisador da obra de Queen (Royal Bloodline, 1974) descreve a cidade como uma pequena comunidade onde todo mundo se conhece e se relaciona, e que com a II Guerra Mundial sofreu um boom econômico. Um microcosmo do que a América tem de melhor e de pior.
 
Diz Nevins que o autor citou como inspiração o clássico Spoon River Anthology (1914-1916), de Edgar Lee Masters, uma série de epitáfios em versos onde se contam os crimes e malfeitos da cidadezinha de Spoon River. O próprio Nevins aponta outra influência: a peça Our Town (1938) de Thornton Wilder, de onde Queen parece ter tirado muita inspiração, fazendo sua Wrightsville se parecer com a Grover’s Corner da peça.
 
Raymond Chandler se orgulhava de ter colocado na literatura norte-americana o jeito californiano de falar – as inflexões, as gírias, o vocabulário, a fala coloquial de diferentes classes sociais. Seu escrupuloso realismo (ele de fato pesquisava código penal, funcionamento de delegacias, legislação sobre detetives particulares, etc.) não o impediu de recorrer a ambientações fictícias.
 
Muitas histórias de policiais corruptos de Chandler são ambientadas em Santa Monica, uma cidade do condado ou município de Los Angeles. Certamente para não ferir suscetibilidades, Chandler criou o nome “Bay City”, embora todas as descrições físicas correspondam a Santa Monica. Um artigo de Loren Latker no saite Shamus Town reproduz um diretório (espécie de guia telefônico da época) onde Santa Monica é classificada como uma das “cidades da baía”, o que pode ter dado a Chandler essa dica.





 
São muitos os exemplos e não vou aumentar muito a lista. Ainda posso citar o autor sul-africano James McClure, que depois morou nos EUA e na Inglaterra. McClure era jornalista, e sua obsessão pela verossimilhança era tal que produziu dois livros de não-ficção sobre o funcionamento real de delegacias de polícia, uma em Liverpool (Spike Island, 1980) e outra em San Diego, California (Copworld, 1984).
 
Sua série de romances sobre uma dupla de policiais interraciais (Kramer, um afrikaner, e Zondi, um bantu) é ambientada na África do Sul; mas na cidade imaginária de “Trekkersburg”, uma versão ligeiramente adaptada de sua cidade natal, Pietermaritzburg.
 
“É a minha visão da cidade, e sendo assim não está sujeita às limitações reais dela. Quando eu quero mudar um pouquinho alguma coisa, mudo, e pronto.”


(James McClure)

Essa parece ser a motivação para escritores tão realistas preferirem cidades imaginárias. A cidade real, principalmente em romances onde se desce a um nível de detalhe muito grande, torna-se às vezes difícil de manejar. É preciso checar cada detalhe. É preciso saber a mão do tráfego na Rua Tal de um bairro distante. É preciso saber até que horas fica aberto um posto médico, um mercadinho, um restaurante – porque quando se lida com lugares reais, há sempre leitores nerds que saem de caderneta em punho conferindo cada detalhe.
 
Quando a cidade é imaginária, o autor tem liberdade de movimentos. Claro que se o romance dele é ambientado em Nova York ele tem de graça o charme de se referir a Times Square ou à Broadway. Mas se ele é um bom autor, basta chamá-las de Space Square e de Mainway, e presto! – pela descrição o leitor reconhece o ambiente, e deixa-se levar.


(Evan Huner, “Ed McBain”)
 
É mais ou menos o que faz o grande Evan Hunter, que sob o pseudônimo de Ed McBain criou a série do “87º. Distrito Policial”, muito publicada no Brasil. A cidade é visivelmente Nova York, mas ele a chama de “Isola” (=ilha).
 
Quando eu comecei a escrever o primeiro livro [“Cop Hater”, 1956] percebi que estava ligando para as delegacias de dez em dez minutos para checar algum detalhe. Tinha assinado um contrato para três livros, e pensei: “Isso vai ser uma dor de cabeça danada. Vou passar mais tempo conversando com os caras do que escrevendo o livro.” E pensei: “Vou ambientar isso numa cidade imaginária”, e acho que foi uma contribuição única na literatura detetivesca.
 
Não tão única assim, como já se viu mais acima, mas sem dúvida a contribuição de McBain (e seu elenco de detetives realistas, bem delineados, literariamente vigorosos) misturou bem o ambiente imaginário e os procedimentos reais. Com um detalhe a mais:
 
Eu invento comunidades que não existem, e fatos históricos sobre essas comunidades. Tudo mentira, mas me divirto muito com essa parte – imagino como um bairro veio a receber aquele nome, onde estavam os britânicos na época da revolução, etc., e é tudo inventado.
 
Parece o melhor-de-dois-mundos, e de fato acaba sendo, muitas vezes. Embora haja algumas precauções a serem tomadas.



(Ruth Rendell)
 
Ruth Rendell, uma das Grandes Damas do Crime Britânico no último meio século, ambientava as histórias do seu Inspetor Wexford numa cidadezinha inventada, Kingsmarkham, no condado de Sussex. Wexford estreou em From Doon With Death (1964). Suas investigações não se resumem à cidade natal; ele chega a viajar aos EUA para investigar pistas, e também resolve mistérios quando está de férias no Mediterrâneo.
 
E quanto à ciade de Kingsmarkham?  Diz a autora:
 
Fica no Sussex, e é inteiramente ficcional. Quando criança, vivi por algum tempo em Midhurst, que é no Sussex, e baseei minha cidade no que lembrava de lá. Depois lamentei ter usado o Sussex, porque há outros condados que eu conheço bem melhor.
 
As cidades imaginárias servem ao autor de romances policiais como uma matéria plástica que ele pode moldar ao seu gosto e sua conveniência. Muitas vezes um autor carioca ou belorizontino gostaria de ambientar uma cena do seu livro numa ponte sobre o rio... mas esta é uma paisagem que a cidade não tem. Um romance paulista precisa fazer uma certa ginástica para ter uma cena de praia. E assim por diante.
 
A cidade imaginária pode nos dar incontáveis alusões a uma cidade real a ponto do leitor, nas primeiras dezenas de páginas, perceber que aquilo é uma espécie de Londres, uma espécie de Salvador, ou  de Buenos Aires. Entendendo isso, o leitor se instala num quadro de referências típico da cidade real... e ao mesmo tempo o autor tem liberdade bastante para inventar na sua cidade fictícia alguma paisagem que lhe dê na telha (um rio com pontes, um bairro chinês, uma mata urbana, um cais do porto), ou pequenas mudanças úteis no mundo civil (legislação sobre crime, porte de armas, casos famosos do passado, etc.).
 

 
 (As citações dos autores são extraídas de The Craft of Crime -- Conversations with Crime Writers, de John C. Carr, Houghton Mifflin, 1983, tradução BT).




terça-feira, 16 de março de 2021

4684) "A Noite dos Desesperados" (16.3.2021)



Mas Não Se Mata Cavalo? foi provavelmente o primeiro romance noir que li, nos meus onze ou doze anos, numa casa em que se podia ler sobre tudo (menos sobre sexo; era pecado). Teria sido melhor meus pais me liberarem a leitura de Carlos Zéfiro ou Cassandra Rios – que acabei lendo escondido. Porque este romance lumpen-existencialista de Horace McCoy é uma das fábulas mais depressivas sobre a espécie humana.


Foi adaptado para o cinema em 1969, como A Noite dos Desesperados (“They Shoot Horses, Don’t They?”), um filme magnífico que vi agora pela segunda vez. O diretor é Sidney Pollack, que muita gente lembra como ator, no papel de Victor Ziegler, o milionário amigo de Tom Cruise em Eyes Wide Shut (1999) de Stanley Kubrick.



É a história de uma “maratona de dança” no tempo da Depressão dos EUA. Essas maratonas obrigavam casais a dançar sem parar (dez minutos de descanso, de 2 em 2 horas, dias a fio), eliminando-se aos poucos até só restar o casal vencedor. Um sobrevivente.
 
O filme tem duas horas. Quando chega a uma hora de projeção, os personagens estão todos uns trapos, uns mulambos, uns bonecos desnorteados que só se mantêm de pé porque Deus é grande e o ser humano é foda.


Nos poucos minutos de descanso a que têm direito, os alojamentos, ao lado do salão, repletos de camas-de-campanha, ficam parecendo a mansão de O Anjo Exterminador de Buñuel – por alguma razão uma imagem que não sai da minha mente, aquelas pessoas amontoadas, sem poderem sair daquele espaço, dormindo umas por cima das outras, num ambiente abafadiço, com seiscentas horas de mau cheiro e de desespero sem grana.
 
O livro original, de Horace McCoy, foi traduzido aqui pela antiga Editora Globo de Porto Alegre.
 
O filme tem uma estrutura intercalada com flash-forwards, avanços na direção do futuro. Esse recurso do roteiro de James Poe e Robert Thompson segue a estrutura do livro, onde a sentença de morte proferida contra o narrador, no tribunal, é intercalada frase por frase aos capítulos, em letras cada vez maiores. A primeira frase, que antecede o capítulo 1, é (em caixa-alta, letras miudinhas): LEVANTE-SE O RÉU. Frase a frase, a sentença de morte é dada por extenso até que, depois do último capítulo, a última frase enche toda a página em letras enormes: E QUE DEUS TENHA PIEDADE DE SUA ALMA.


A maratona de dança foi um dos espetáculos mais grotescos dessa época em que as pessoas, para não passar fome, se submetiam a qualquer coisa. Não muito diferente de hoje, só que estamos ainda na parte de cima da escala, onde as pessoas, para terem direito à fama, se submetem a qualquer coisa.
 
Uma das frases definidoras do filme é de Rocky, o MC do pesadelo. Os dançarinos se atropelam num “derby”, uma corrida de resistência em volta do salão, na qual os três últimos casais serão eliminados: “Não importa que você não seja o primeiro; o importante é não ser o último”. Não tenho mais o livro e não sei se a frase é de McCoy ou dos roteiristas, mas ela resume o espírito do filme. A torcida não está ali para aplaudir quem ganha, mas para curtir a catarse cruel de observar quem perde.


Não é uma lógica muito diferente dos campeonatos de futebol. A torcida e principalmente a imprensa se deleitam com duas brigas: a da parte de cima da tabela, para ver quem vai ser o campeão, e a da parte de baixo, para ver quem será rebaixado à divisão inferior. Esta última briga é a mais cruel, é a briga sem glória, a briga dos que brigam pelo último lugar no bote salva-vidas, a briga dos que vão morrer. Parece que é desse estofo que somos feitos: nossos triunfos nos alegram, mas os fracassos alheios nos aliviam muito mais.
 
O “derby” disputado na maratona é uma corrida de dez minutos ininterruptos. No filme, essa cena é mostrada ao longo de sete minutos exaustivos, intermináveis, brutais. Os concorrentes, nesse momento do filme, estão dançando há 25 dias seguidos, num total de 602 horas.


Quando Gloria (Jane Fonda) pede para mudarem as regras em seu benefício, o MC responde: “Tudo, menos isso. São as regras. As pessoas precisam acreditar em alguma coisa, senão deixam de vir.” Claro que, por baixo do pano, as regras sempre são dribladas quando convém a quem pode fazê-lo. Na política, no futebol, em tudo.

Lembra o famoso diálogo em "A Hora e Vez de Augusto Matraga", de Guimarães Rosa. Um rapazinho de um povoado mata um jagunço. O chefe do bando, Joãozinho Bem-Bem, ordena que um homem da família dele seja morto, e as mulheres violentadas. Matraga pede-lhe que perdoe os coitados. Bem-Bem responde: 

– Lhe atender não posso, e com o senhor não quero nada, velho. É a regra... Senão, até quem é mais que havia de querer obedecer a um homem que não vinga gente sua, morta à traição? É a regra...
 
Há dois atores que “engolem” o filme. Gig Young é um galã subestimado e subaproveitado, que dá um arraso de cinismo como o MC do pesadelo, lembrando às vezes a frieza sádica de Kirk Douglas em A Montanha dos Sete Abutres (“The Big Carnival”). Ganhou um Oscar (não acho que Oscar valha grande coisa, mas sei que todo mundo espera esta importantíssima informação.)
 
E Jane Fonda fazendo uma das personagens mais amargas e autodestrutivas do cinema. São dela as frases mais pessimistas, mais brutais. Dizem às vezes que foi seu primeiro grande papel dramático, mas a essa altura ela já tinha feito Caçada Humana (“The Chase”, Arthur Penn). Ela afirmou ter sido They Shoot Horses... o primeiro filme em que um diretor pediu sua opinião sobre o personagem que iria interpretar.


 
 
 
 
 
 
 






sábado, 13 de março de 2021

4683) A arte do nome do personagem (13.3.2021)



Vendo um documentário sobre o diretor Billy Wilder, austríaco de nascimento, e que só migrou para os Estados Unidos quando já era diretor de cinema profissional, fiquei sabendo que não foi nos EUA que ele ganhou esse prenome tipicamente norte-americano. Foi sua mãe que o batizou assim, porque era fã das aventuras de Billy The Kid.
 
É um desses casos de nome próprio de rara improbabilidade, porque se alguém me chamasse para fazer uma aposta eu diria que o nome de registro dele devia ser Wilhelm Wilder ou coisa parecida.
 
O nome era real, porém. Nomes de pessoas reais são atribuídos assim, muitas vezes por uma veneta, um palpite ou uma admiração dos pais, a quem geralmente cabe essa escolha.
 
Nomes de personagens são uma questão totalmente diversa, porque o leitor sabe que está lendo uma história fictícia e que todos aqueles nomes foram escolhidos pelo autor. De acordo com o ambiente, a época, etc., os nomes têm que ter uma certa verossimilhança, para não introduzirem um ruído na narrativa. E mesmo quando isso acontece, o ruído tem que ser plausível.
 
Uma vez eu estava hospedado numa casa e sentei para tomar café. A cozinheira estava preparando alguma coisa. O filho dela, um menino de uns dois anos, começou a chorar, fazendo manha por alguma coisa. E ela disse: “Pára com isso, Van Básten!  Não tem motivo nenhum pra ficar chorando!”.  Eu perguntei: “O nome dele é Van Básten? Por que?”  E ela: “É o pai dele, que só quer saber de futebol.” Para quem não sabe, o holandês Van Baasten foi um dos grandes atacantes do futebol europeu nos anos 1980-1990.


(Van Baasten) 
 
Existe verossimilhança nesse nome? Pra mim, basta ser verdadeiro para ser verossímil, mas se fosse num romance eu iria achar que era piscadela-de-olho do autor, pra mostrar que entendia de futebol.
 
O violonista Baden Powell foi batizado com esse nome em homenagem ao cara que fundou o Escotismo; hoje em dia, pelo menos no Brasil, ninguém sabe quem foi o escoteiro, mas muita gente conhece o músico.
 
Já vi muitos estrangeiros admirados com a quantidade de brasileiros cujo primeiro nome é Washington, Wellington, Nelson ou Lincoln. Sobrenomes ingleses ou norte-americanos são usados aqui como nomes de batismo. Talvez um leitor distante, na Tailândia ou no Irã, leia um livro brasileiro e ache forçada essa alusão histórica, sem perceber que aqui no Brasil é mais fácil você conhecer um cara chamado Washington do que um chamado Bráulio.

 
Como transpor essa sem-cerimônia para a ficção? Rubem Fonseca tem um conto ótimo (“A Força Humana”) em que o narrador pergunta a um cara como é o nome dele. O outro responde: “Vaterlu. Se escreve com dábliu.”  É plausível, sim, no contexto antropofágico brasileiro, inclusive no detalhe da grafia, que pessoas assim já mecanizaram mentalmente, repetem toda vez essa instrução pronta.
 
Como o personagem de Orígenes Lessa (“Nós, o mar e Conceição”), que se apresenta como Fulano de Tal Cavalcanti, e sempre insiste: “Com i... com i...”  Isso é plausível, isso é brasileiro, não é por outra razão que o “Big Brother” da TV Globo teve agora uma participante chamada Karol Conká. Nome que faz parte do espírito da língua neste começo de século, de um fervilhar constante de informações, de uma cultura de individualidades lutando para aparecer mais que as outras, precisando de uma brand, de uma tag, de um traço diferenciado para não morrer invisível no meio de um milhão de seres igualmente diferentes.


(Scarlet e Abidoral)
 
Tem pessoas que têm o que a gente chama de “nome de personagem”, porque são nomes fora do comum, com sonoridade especial, com alusões, etc.  Eu sempre achei que Scarlet Moon de Chevalier, nome da saudosa jornalista carioca, merecia ser nome de uma personagem daqueles romances tipo Rebecca.  O cantor e compositor cearense Abidoral Jamacaru tem esse nome nordestiníssimo que além do mais é um octossílabo perfeito. Quem botasse nomes assim num personagem talvez achasse estar forçando a barra; mas esses são nomes reais, de documento, de lista de chamada no colégio.
 
Não somente aqui no Brasil, claro. Eu já sugeri que se fizesse um filme sobre a vida do cantor Engelbert Humperdinck e quem o interpretasse fosse Benedict Cumberbatch. Isso é lá nome de gente?! Me traz à memória o começo do romance The Voyage of the Dawn Treader, de C. S. Lewis, que principia assim: “Havia um rapaz que se chamava Eustace Clarence Scrubb, e ele era quase merecedor disso.”
 
Carlos Drummond tem um poema famoso, “Quadrilha”, onde cada personagem se apaixona por alguém que já está apaixonado por outra pessoa. Os nomes deles são João, Teresa, Raimundo, Maria Joaquim, Lili... e no final aparece um tal de J. Pinto Fernandes cujo nome é dolorosamente real, veraz, verossímil, nome de um brasileiro de carne, osso e chapéu. É o personagem realista que entra num poema romântico ao qual não pertencia e leva consigo uma bonitinha.
 
Eu tenho uma certa aversão a personagens de romance que ostentam nomes com referências clássicas evidentes demais. Hércules, Orestes, Narciso, Afrodite, Orfeu... quando numa história moderna aparece um personagem assim, eu sempre acho que o autor está querendo dar um upgrade num personagem que não se sustenta por si mesmo. Gosto de personagens que têm nomes “pela primeira vez”, e tornam-se tão fortes que esse nome não terá talvez uma segunda aparição. Não imagino alguém de hoje batizando um personagem de Riobaldo, Diadorim, Policarpo Quaresma, Macunaíma...  


Em A Ascensão do Romance (“The Rise of the Novel”, 1957), Ian Watt discute justamente essa transição, por volta do século 18, entre os nomes de personagens de ficção que pretendiam ter um caráter alegórico, ou meramente alusivo, e os nomes que buscavam apenas uma certa verossimilhança. Que parecessem “nome de gente”, como se diz.
 
Ele analisa principalmente, nesse livro, as obras de Daniel Defoe (Robinson Crusoe, Roxana, etc), Samuel Richardson (Clarissa, Pamela etc) e Henry Fielding (Tom Jones etc). São obras fundadoras do romance moderno inglês, e Watt examina justamente os modos de narrar aperfeiçoados ou inventados por ele e que desembocaram no grande romance realista do século 19. A nomeação dos personagens faz parte desse processo.
 
Um dos argumentos de Watt é mais ou menos o de que a literatura anterior a essa época tinha intenções alegóricas, universalizantes, e isso se refletia em seus nomes. Também houve isso na literatura brasileira: o costume de batizar um homem simples e honrado de Seu Inocêncio, uma esposa casta de Dona Fidélia, um indivíduo truculento ser chamado de Brutus e assim por diante. Nomes próprios que universalizavam o caráter; quem estava ali não era uma pessoa específica, era um “tipo”.


(Daniel Defoe, 1660-1731; Samuel Richardson, 1689-1761; Henry Fielding, 1707-1774)
 
Diz ele:
 
Defoe usa os nomes próprios de modo displicente e às vezes contraditório; porém raramente escolhe nomes convencionais ou extravagantes (.) A maioria dos seus personagens, como Robinson Crusoe ou Moll Flanders, tem nomes e alcunhas completos e realistas. [Em Samuel Richardson] as conotações românticas de Pamela esbarram no sobrenome comum de Andrews; Clarissa Harlowe e Robert Lovelace são batizados adequadamente; quase todos os nomes próprios de Richardson, de mrs. Sinclair a sir Charles Grandson, parecem autênticos e condizentes com a personalidade de seus portadores. (trad. Hildegard Feist)
 
Era uma época em que a literatura de ficção se propunha a criação de indivíduos plausíveis, ambientes plausíveis, acontecimentos plausíveis, num esforço semelhante ao da pintura figurativa quando começou a dominar a reprodução fiel das imagens conforme nossos olhos as percebem, pelo uso da perspectiva, do sombreado, etc.
 
Não que, como vimos no caso de Richardson, não haja lugar no romance para nomes próprios que de algum modo são adequados à personagem em questão, porém essa adequação não deve interferir na função primordial do nome: mostrar que a personagem deve ser vista como uma pessoa particular, e não como um tipo. (Cap. 1, C)
 
Embora geralmente a crítica trate isso como uma evolução, nenhuma função passada se perde de todo. Existe espaço, sim, para personagens alegóricos que não representem um ser humano real, mas uma característica do caráter individual ou do papel social que ele representa. 

Se Ariano Suassuna chama seu rico avarento de Euricão (O Santo e a Porca) o duplo sentido desse nome certamente não lhe escapou; mas quando chama outro de Clemente Hará de Ravasco Anvérsio (no Romance da Pedra do Reino) o que há de sugestivo em cada termo acaba se amalgamando num ideograma único e raro, um personagem único e irrepetível como um ser humano, por mais que esteja transfigurado pelo estilo régio do amanuense.
 


(”A Pedra do Reino”, imagem de Carlos Bêla, TV Globo)