Mas Não Se Mata
Cavalo? foi provavelmente o primeiro romance noir que li, nos meus onze ou doze anos, numa casa em que se podia
ler sobre tudo (menos sobre sexo; era pecado). Teria sido melhor meus pais me liberarem a
leitura de Carlos Zéfiro ou Cassandra Rios – que acabei lendo escondido. Porque
este romance lumpen-existencialista de Horace McCoy é uma das fábulas mais
depressivas sobre a espécie humana.
Foi adaptado para o cinema em 1969, como A Noite dos Desesperados (“They Shoot
Horses, Don’t They?”), um filme magnífico que vi agora pela segunda vez. O
diretor é Sidney Pollack, que muita gente lembra como ator, no papel de Victor
Ziegler, o milionário amigo de Tom Cruise em Eyes Wide Shut (1999) de Stanley Kubrick.
É a história de uma “maratona de dança” no tempo da Depressão
dos EUA. Essas maratonas obrigavam casais a dançar sem parar (dez minutos de
descanso, de 2 em 2 horas, dias a fio), eliminando-se aos poucos até só restar o
casal vencedor. Um sobrevivente.
O filme tem duas horas. Quando chega a uma hora de projeção,
os personagens estão todos uns trapos, uns mulambos, uns bonecos desnorteados
que só se mantêm de pé porque Deus é grande e o ser humano é foda.
Nos poucos minutos de descanso a que têm direito, os
alojamentos, ao lado do salão, repletos de camas-de-campanha, ficam parecendo a
mansão de O Anjo Exterminador de
Buñuel – por alguma razão uma imagem que não sai da minha mente, aquelas
pessoas amontoadas, sem poderem sair daquele espaço, dormindo umas por cima das
outras, num ambiente abafadiço, com seiscentas horas de mau cheiro e de
desespero sem grana.
O livro original, de Horace McCoy, foi traduzido aqui pela
antiga Editora Globo de Porto Alegre.
O filme tem uma estrutura intercalada com flash-forwards, avanços na direção do futuro.
Esse recurso do roteiro de James Poe e Robert Thompson segue a estrutura do
livro, onde a sentença de morte proferida contra o narrador, no tribunal, é
intercalada frase por frase aos capítulos, em letras cada vez maiores. A
primeira frase, que antecede o capítulo 1, é (em caixa-alta, letras miudinhas):
LEVANTE-SE O RÉU. Frase a frase, a sentença de morte é dada por extenso até
que, depois do último capítulo, a última frase enche toda a página em letras
enormes: E QUE DEUS TENHA PIEDADE DE SUA ALMA.
A maratona de dança foi um dos espetáculos mais grotescos
dessa época em que as pessoas, para não passar fome, se submetiam a qualquer
coisa. Não muito diferente de hoje, só que estamos ainda na parte de cima da
escala, onde as pessoas, para terem direito à fama, se submetem a qualquer
coisa.
Uma das frases definidoras do filme é de Rocky, o MC do
pesadelo. Os dançarinos se atropelam num “derby”, uma corrida de resistência em
volta do salão, na qual os três últimos casais serão eliminados: “Não importa que você não seja o primeiro; o
importante é não ser o último”. Não tenho mais o livro e não sei se a frase
é de McCoy ou dos roteiristas, mas ela resume o espírito do filme. A torcida
não está ali para aplaudir quem ganha, mas para curtir a catarse cruel de
observar quem perde.
Não é uma lógica muito diferente dos campeonatos de
futebol. A torcida e principalmente a imprensa se deleitam com duas brigas: a
da parte de cima da tabela, para ver quem vai ser o campeão, e a da parte de
baixo, para ver quem será rebaixado à divisão inferior. Esta última briga é a
mais cruel, é a briga sem glória, a briga dos que brigam pelo último lugar no
bote salva-vidas, a briga dos que vão morrer. Parece que é desse estofo que
somos feitos: nossos triunfos nos alegram, mas os fracassos alheios nos aliviam
muito mais.
O “derby” disputado na maratona é uma corrida de dez
minutos ininterruptos. No filme, essa cena é mostrada ao longo de sete minutos
exaustivos, intermináveis, brutais. Os concorrentes, nesse momento do filme,
estão dançando há 25 dias seguidos, num total de 602 horas.
Quando Gloria (Jane Fonda) pede para mudarem as regras em
seu benefício, o MC responde: “Tudo, menos isso. São as regras. As pessoas
precisam acreditar em alguma coisa, senão deixam de vir.” Claro que, por baixo
do pano, as regras sempre são dribladas quando convém a quem pode fazê-lo. Na
política, no futebol, em tudo.
Lembra o famoso diálogo em "A Hora e Vez de Augusto Matraga", de Guimarães Rosa. Um rapazinho de um povoado mata um jagunço. O chefe do bando, Joãozinho Bem-Bem, ordena que um homem da família dele seja morto, e as mulheres violentadas. Matraga pede-lhe que perdoe os coitados. Bem-Bem responde:
– Lhe atender não posso, e com o senhor não quero nada, velho. É a regra... Senão, até quem é mais que havia de querer obedecer a um homem que não vinga gente sua, morta à traição? É a regra...
Há dois atores que “engolem” o filme. Gig Young é um galã
subestimado e subaproveitado, que dá um arraso de cinismo como o MC do
pesadelo, lembrando às vezes a frieza sádica de Kirk Douglas em A Montanha dos Sete Abutres (“The Big
Carnival”). Ganhou um Oscar (não acho que Oscar valha grande coisa, mas sei que
todo mundo espera esta importantíssima informação.)
E Jane Fonda fazendo uma das personagens mais amargas e
autodestrutivas do cinema. São dela as frases mais pessimistas, mais brutais. Dizem
às vezes que foi seu primeiro grande papel dramático, mas a essa altura ela já
tinha feito Caçada Humana (“The
Chase”, Arthur Penn). Ela afirmou ter sido They
Shoot Horses... o primeiro filme em que um diretor pediu sua opinião sobre
o personagem que iria interpretar.
No filme O Olho Mágico do Amor (José Antonio Garcia e Ícaro Martins), a personagem de Carla Camurati ao chegar em casa encontra a família reunida assistindo A Noite dos desesperados. Como olivro de McCoy frequentava minha mente, a irônica sugestão caiu como uma luva em minha tímida risada. Isso lá em 1982 (o livro e o filme vieram antes. Bem antes)
ResponderExcluirOlá. Leio seu blog sempre que posso. Uma de minhas irmãs gosta muito deste filme. Já li o livro de H. McCoy algumas vezes. E sempre sou arrebatado pelo pessimismo e pela amargura de Gloria. Escrevi sobre Mas não se mata cavalo? lá no meu blog
ResponderExcluirUm abraço.