domingo, 7 de março de 2021

4681) Salman Rushdie e as histórias bem contadas (7.3.2021)



O romance Grimus (1975) é o livro de estréia de Salman Rushdie, e foi quase universalmente execrado pela “crítica especializada”.
 
Digressão: crítica especializada é aquela com autoridade para dar palpite sobre as duas ou três coisas em que se especializou, e é bem capaz de não entender nada do restante.
 
A edição que comprei é da Modern Library (Nova York, 2003), e traz na capa essa recomendação não desprezível: “Um livro que é uma verdadeira girândola de fogos de artifício... belo, engraçado e com surpresas incessantes.” (Ursula LeGuin). Não comprei por causa disso; aliás, sempre desconfio dessa história de escritor elogiando escritor. Os escritores são uma guilda de pessoas muito afetuosas, quando lhes convém.


Na verdade, a primeira vez que ouvi falar em Rushdie foi muito antes do escândalo dos Versos Satânicos, ou de suas visitas a Paraty. Foi em 1981, quando comprei a primeira edição de The Encyclopedia of Science Fiction (ed. Peter Nicholls e John Clute). Achei ali um verbetezinho de 14 linhas sobre esse jovem autor (mais velho do que eu 3 anos), que ainda não tinha publicado o livro que o revelou ao mundo, Midnight’s Children (1981).
 
RUSHDIE, (AHMED) SALMAN (1947- ). Escritor indiano, educado na Inglaterra em Rugby e Cambridge, e agora cidadão britânico. Seu romance Grimus (1975) é uma espécie de lenda complexa e espirituosa. Pode ser considerado uma obra na fronteira da ficção científica pelo seu tratamento do tema da Imortalidade, e pelos conflitos interdimensionais que seu protagonista, um índio norte-americano eternamente jovem, tem que atravessar em sua busca através de uma emblemática Ilha-Mundo, para alcançar a morte. No fim, com a ambiguidade de um conto sufi, ele o consegue. (John Clute)
 
Rushdie ganhou o Booker Prize, com Midnight’s Children, naquele mesmo ano – e o resto é História, ou lenda, ou conto sufi.

 
Grimus é um daqueles livros tão compactamente recheados de informação que a certa altura você explica a si mesmo que não precisa ficar voltando de dez em dez linhas para consultar algo que aconteceu lá no começo. É como uma montanha-russa, ou uma ida ao Louvre. Desista. Não vai dar pra ver tudo, e é melhor saborear a vertigem. Sim, vale a leitura, até porque a prosa de Rushdie pode pecar pelo excesso pirotécnico, nunca pela banalidade (e eu prefiro prosa assim).
 
Lá pelo capítulo XXXVIII o protagonista, o índio Flapping Eagle, é recebido para jantar numa mansão no vilarejo de K, na misteriosa ilha onde se refugiam os Imortais. Os donos da casa são o Conde Cherkassov e sua esposa Irina; além de Flapping Eagle, os outros convidados são o casal Ignatius e Elfrida Gribb.
 
Conversam sobre vários assuntos, e a certa altura a condessa, Irina Cherkassova, conta uma história sobre o Anjo da Morte. Quando ela termina...
 
– Não gostei – disse Elfrida. – É muito bem feita, muito certinha. Não ligo muito para histórias assim, tão bem amarradas. As histórias deviam ser como a vida, meio desfiadas nas bordas, cheias de pontas soltas e mostrando vidas justapostas acidentalmente e não por causa de um vasto projeto. A maior parte das coisas na vida não faz sentido, então certamente é uma distorção da vida contar histórias onde cada elemento possui significado. E uma história deformar a vida é quase um crime, porque pode com isso deformar nossa visão da vida. Como é terrível ser forçado a enxergar um conteúdo ou uma grande importância em tudo que está à nossa volta, em tudo que a gente faz, em tudo que nos acontece! (...)
 
Irina respondeu, com um sorriso malicioso:
 
– Querida, você está depositando um peso muito grande no meu conto. É só um conto, afinal. Contos são coisas sem muita importância, então, por que eles não serviriam para nos dar um pouco de prazer inocente pela beleza de sua forma? Prefiro mil vezes olhar uma forma bem acabada do que olhar para o rosto lumpen da vida.
 
(...)
 
– Não, não, não – discordou Ignatius Gribb. – Vocês estão errando o alvo. A questão reside na expressão “ter importância”. Ou seja, ter um sentido. Ora, Elfrida acredita que contos são coisas importantes, e diz que gostaria que eles fossem menos carregados de sentido, ou seja, menos importantes. Por outro lado, a Condessa, para quem esses mesmos contos são coisas destituídas de importância, gosta que eles sejam bem-feitos, quer dizer, apresentem partes selecionadas e significativas desse “rosto lumpen da vida”, ou seja, partes que foram selecionadas porque são mais importantes. Como se vê, ambas as damas entram em contradição. Uma simples questão de semântica. Se os contos têm importância, devem ser bem-feitos. Se não têm, não podem sê-lo. E vice-versa.
(trad. BT)


É uma discussão típica das muitas que há no livro, e inevitavelmente retoma a velha questão da narrativa realista e da narrativa bem-contada. A narrativa realista tem que ser caótica e sem sentido, porque a vida (=a realidade) é assim. A narrativa bem-contada não: tudo nela é certinho, é amarradinho, e dá a impressão de vida sendo infiel à vida.
 
Quam formulou isso com razoável clareza foi Jorge Luis Borges em seu prefácio de 1940 ao romance La Invención de Morel, de Adolfo Bioy Casares. (Registro que para efeito dessa discussão os termos romance, novela, conto e história são praticamente intercambiáveis, a menos que venham qualificados.)
 
O romance característico, “psicológico”, tende a ser informe. Os russos e seus discípulos demonstraram até a saciedade que ninguém é impossível: suicidas por felicidade, assassinos por benevolência, pessoas que se adoram ao ponto de separar-se para sempre, delatores por fervor ou por humildade... Essa liberdade plena acaba por equivaler a uma plena desordem. Por outro lado, o romance psicológico quer ser também romance “realista”: prefere que esqueçamos seu caráter de artifício verbal. (...) (trad. BT)
 
Vejo nessa descrição o que a Condessa Irina chamou desdenhosamente, acima, de “o rosto lumpen da vida”. Lumpen no sentido (acho) de marginalizado, não integrado às funções narrativas que são basicamente organizadoras do Real. Algo despido de essência, algo que é existência pura, feito um mendigo sem documentos. Uma realidade sem artifícios descritivos ou narrativos; como diria Carlos Drummond, “a vida apenas, sem mistificação”.
 
A isso, Borges contrapõe “o rigor intrínseco do romance de peripécias”, da história assumidamente “literária”, que já se anuncia como narrativa inventada e não como uma “fatia de vida” apenas. Borges trata esse tipo de história, em seu texto, como “romance de aventuras”, mas ele se estende por muitos tipos de narrativa.
 
O romance de aventuras, ao contrário, não se apresenta como uma transcrição da realidade: é um objeto artificial que não tolera nenhuma parte injustificada.

 
Os manuais de escrita referem-se a esse tipo de narrativa como “mecanismos”. Não vejo nisso uma sugestão de que são coisas que se movem cegamente, sem saber o que estão fazendo. Não: são sistemas complexos, onde tudo está conectado a algo (não há “partes injustificadas”), tudo está ali com um propósito, e esse mecanismo é na verdade um conjunto de causas e efeitos. O romance policial detetivesco é para mim o exemplo mais acabado disso. Quando é bem escrito, cada frase nele serve a um destes dois propósitos: dar pistas verdadeiras ao leitor (o “fair play” obrigatório), e dar pistas falsas ao leitor.
 
A cena de Rushdie, lá em cima, não é uma discussão teórica desse tema, é o retrato de um daqueles jantares de gente rica e culta, onde um bom paradoxo rende vinhos e mais vinhos de discussão. A Condessa Irina gosta de histórias bem amarradinhas; talvez pelas mesmas razões que a fazem gostar de, sei lá, porcelanas de Sèvres ou sonatas de Albinoni. Elfrida Gibb gosta de contos da “vida como ela é”, aceita o mal executado se houver a compensação de ser autêntico, prefere a expressão à perfeição... Abra-se outro vinho.



 
 


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