Minha parceria musical e teatral com Antonio Nóbrega tem uma longa história, que remonta ainda aos tempos de Campina Grande, de 1972 em diante, quando eu estava lendo pela primeira vez o Romance da Pedra do Reino e vi a primeira “aula espetáculo” de Ariano Suassuna, no Teatro Municipal de Campina Grande, fazendo a Aula Magna de abertura do ano letivo da Universidade Federal da Paraíba, Campus II.
Eu estava embebido de interesse pela música popular do Nordeste, e para isso somou-se o fato de que recentemente o Quinteto Armorial, criado no Recife por Ariano, tinha se transferido para Campina Grande, onde seus integrantes passaram a morar e dar aulas de música. Foi esse modo que virei amigo e companheiro de moderadas carraspanas no “Caldo de Peixe” com Antonio Madureira, Fernando Torres Barbosa, Fernando “Pintassilgo” Farias e Edilson Eulálio.
Pois é: um Quinteto com apenas quatro? Porque razões familiares e profissionais impediram Antonio Nóbrega, o quinto integrante, a ir morar em Campina. Ele continuou no Recife, e foi de todos o que conheci por último. E aquele com quem fiz a parceria mais sólida.
Não lembro quando conversamos a primeira vez, mas pode ter sido quando vi no Teatro Santa Isabel do Recife um dos seus primeiros espetáculos-solo. Ficamos amigos e voltamos a nos encontrar depois, quando já morava eu no Rio de Janeiro e ele em São Paulo.
Nosso trabalho conjunto começou no final de 1989, quando começamos a bolar um espetáculo reunindo Nóbrega, sua esposa e parceira-de-palco Rosane Almeida, e Raul Barretto. Eu ia a São Paulo quase todo mês e passava alguns dias com eles, discutindo piadas, gags visuais, pequenos entremezes, números musicais e de malabarismo...
Esse espetáculo nunca se concretizou; Raul Barretto foi trabalhar no grupo “Parlapatões”, e Nóbrega voltou-se para um espetáculo solo que se tornaria o Figural, um dos seus primeiros grandes sucessos.
O nosso trabalho de criação prosseguiu, porém, e em 1992 estreou Brincante, onde fiz texto e diálogos, Romero de Andrade Lima fez cenários, figurinos e direção geral, Nóbrega e Rosane fizeram tudo. Em 1994 repetimos a dose com Segundas Estórias, já com uma equipe maior. E desde então, sempre fui chamado a colaborar nos espetáculos “tonhetânicos”, como os chamamos, com canções, pequenos esquetes ou números recitados.
Em 2002 Nóbrega lançou o CD Lunário Perpétuo onde está esta bela ciranda, “Carrossel do Destino”. Estávamos nos falando ao telefone com frequência, e eu recitei para ele umas estrofes que tinha composto. Ele me pediu uma cópia mas já foi compondo a música.
As formas fixas da poesia popular nordestina têm essa vantagem. Se o letrista diz “escrevi uns versos em décima”, basta ao músico “compor uma melodia em décima” e as duas se encaixam, mesmo que cada uma tenha sido feita sem conhecer a outra. São dez linhas, cada uma com dez sílabas de letra (=dez notas de música), com uma cadência específica. Como se diz na Paraíba, “não tem errada”.
Os versos foram escritos no final de 2001, e como outras coisas que fiz nesse período refletiam um pouco a tensão em que vivia o mundo após os atentados do 11 de setembro.
O mote da canção foi tirado, veja só, de Zé Limeira. Folheando o livro de Orlando Tejo sobre o Poeta do Absurdo, encontrei no final do Capítulo 10 esta décima de “despedida”:
Adeus, que já vou rodar
no carrossel do destino.
Eu vou tocar no meu sino
até o guarda apitar.
Barca feita de jucá.
Caminhão de melancia.
Cangaceiro, correria,
bacamarte e lazarina,
rege, regente e Regina,
adeus, até outro dia!
Do resto do verso não se aproveita nada, mas essas duas
linhas iniciais se cravaram na minha memória. Dei uma leve ajeitada e produzi
algumas estrofes. Nóbrega brincava sempre que a vantagem das minhas letras é
que eu mandava sempre um caminhão de versos, de onde ele podia escolher os melhores
para gravar.
Desde então, essa música tornou-se um número habitual nos shows dele, apareceu em ouros discos e DVDs.
Aqui, o link para uma versão oficial, com Nóbrega e sua banda:
https://www.youtube.com/watch?v=lOdnFlr-BPk&ab_channel=DIRETODOSMANGUEZAIS
E abaixo a letra completa que fiz; os versos em negrito não foram gravados, mas eu canto às vezes quando a vez é minha.
CARROSSEL DO DESTINO
(Braulio Tavares – Antonio Nóbrega)
(negrito: versos não gravados)
(março 2002)
Deixo os versos que escrevi
as cantigas que cantei
cinco ou seis coisas que eu sei
e um milhão que eu esqueci.
Deixo este mundo daqui
selva com lei de cassino;
vou renascer num menino
num país além do mar...
Licença, que eu vou rodar
no carrossel do destino.
Romances e epopéias
me pedindo pra brotar
e eu tangendo devagar
a boiada das idéias.
Sempre em busca das colméias
onde brota o mel mais fino,
e um só verso, pequenino,
mas que mereça ficar...
Licença, que eu vou rodar
no carrossel do destino.
Enquanto eu puder sentir
o mundo com a minha mente
o tempo estará presente
passando sem resistir.
Na hora que eu for partir
para as nuvens do Divino,
que a viola seja o sino
tocando pra me guiar...
Licença, que eu vou rodar
no carrossel do destino.
Adeus, cadeia do mundo!
Morrer é a liberdade.
Deixo gotas de saudade
cair nesse mar profundo.
Deixo tudo num segundo,
instantâneo, pequenino:
o tempo que um cristal fino
leva para se quebrar...
Licença, que eu vou rodar
no carrossel do destino.
Não sou profeta nem louco
mas vejo o que ninguém vê
creio no que ninguém crê
pago e não espero o troco.
O que eu sei é muito pouco
mas o pouco que eu ensino
aprendi desde menino
sem ninguém pra atrapalhar...
Licença, que eu vou rodar
no carrossel do destino.
Adeus, carcaça do mundo,
vou procurar vida nova.
Faço a conta e tiro a prova
decifro o x num segundo.
Eu não sou Pedro II
que foi rei mas não menino;
sou barro de Vitalino
um dia serei luar...
Licença, que eu vou rodar
no carrossel do destino.
Quero deixar de ser eu
porque ser eu é ser muitos;
eu sou tantos outros juntos
que nenhum prevaleceu.
Eu tenho um lado judeu
tenho um lado palestino;
um lado novaiorquino
e outro de Kandahar...
Licença, que eu vou rodar
no carrossel do destino.
Linda história, magníficos versos!
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