O utilíssimo saite The
Public Domain Review me envia de 2 em 2 semanas sua newsletter com as
novidades que amealhou nesse período. É um saite dedicado a divulgar obras que
caíram em “domínio público” – em geral, obras obscuras, de autores
desconhecidos, de difícil acesso, mas que dizem algo sobre nossa civilização.
Mesmo quando os assuntos são banais, em geral a linguagem
usada e as ilustrações são fascinantes. (Pense livros publicados em 1700+, em
1800+, sobre os assuntos mais irrelevantes e imprevistos.)
A edição desta semana, por exemplo, dá destaque a uma
publicação de 1629: o Tratado da
Dobradura de Guardanapos, de Mattia Giegher.
https://publicdomainreview.org/collection/serviette-sculptures-the-forgotten-art-of-napkin-folding
Parece ter surgido nesse período um intenso interesse nas
formas de apresentação de refeições e banquetes, envolvendo elementos de
decoração, artesanato, etc. Não devemos esquecer que o século 17 foi o século
das perucas gigantes (masculinas, principalmente) que vemos ainda hoje nos
tribunais britânicos. (Ou pelo menos nos “filmes de tribunais britânicos”, que
foi só onde as vi.)
Johan Huizinga, num capítulo de seu imprescindível Homo Ludens (1938), dedica um capítulo
às competições de perucas e adornos dos nobres desse tempo. Havia um
barroquismo e um rococoísmo que se espalhava por todos os setores da vida
humana. Inclusive os guardanapos.
Diz o texto da “Public Domain Review”:
Com a chegada do século 17, e a aceleração da educação e da cultura em
bolsões localizados ao longo de toda a Europa, houve uma proliferação de
manuais de como cortar carne, como servir uma mesa, e, no caso de Giegher, como
dobrar guardanapos. Isso sugere um vivo interesse num tipo de conhecimento que
antes fora exclusivo dos ambientes da realeza.
Riqueza, abundância material, cultura refinada,
multiplicação de recursos, de tarefas, de empregos, de talentos individuais.
Necessidade de afirmação social num ambiente de competições implícitas (ou nem
sempre) em torno de quem é mais rico, quem é mais fino, quem é mais culto, quem
é mais bem educado, quem tem mais informação, quem está tendo direito ao melhor
do melhor do melhor.
O século 17 ainda não acabou.
Transformar a dobradura de guardanapos numa forma de
arte? Será necessário? pergunta-se alguém. A questão não é ser necessário ou
não, a questão é: o que dá existência a isso? Por que motivo essas coisas
acontecem? Não temos vontade de fazer essa pergunta quando pensamos numa
sinaleira de automóvel ou num hidrante ou num tubo de dentifrício. São coisas
cuja utilidade e função nos parecem óbvias, assuntos encerrados. (Não são:
ganharíamos muito tentando entender o “porquê” desses objetos, e de muitos
outros.)
Mas... dobradura de guardanapos?! A verdade é que quando a sociedade cresce,
prolifera, enriquece, se desenvolve, é preciso dar ocupação a cada vez mais
gente, e ao mesmo tempo é preciso direcionar os talentos pessoais de certos
indivíduos para alguma coisa que se aproveite.
Quando você é uma chave-de-fenda e sai pelo mundo, tudo
que não for cabeça-de-parafuso está meio fora de foco. Temos a tendência de
gravitar rumo àquelas atividades onde sentimos que podemos quebrar um galho,
resolver um impasse, adiantar uma situação. Com sorte, passarão a nos chamar
outras vezes. Com mais sorte ainda, nos pagarão por isso.
Mattia Giegher ganhava a vida como trinchador de carne em
açougues, mas quando se mudou para Veneza mudou de nome (chamava-se Mattia
Jäger) e entrou no ramo das mesas ornamentais. Dedicou-se a isto e seu tratado
é uma obra barroco-utilitária, uma expressão de uma sociedade abastada onde as
pessoas provavelmente experimentavam orgasmos espirituais ao debater a posição
exata de um botão na roupa ou a largura ideal de um bico de renda.
Quando a sociedade enriquece e se refestela em paz na
própria riqueza (ou seja, quando os humilhados e ofendidos estão quietinhos,
sob o olhar vigilante das milícias), tudo se estetiza. Tudo é pretexto para o
cálculo infinitesimal da Beleza. Isso passa de geração em geração, se impregna
na cultura inteira, nos modos de ser, de conviver, de pensar. Até o nosso nobre
Thomas de Quincey se dá o desfastio de imaginar O Assassinato Considerado Como Uma das Belas-Artes (1827).
E tudo pode mesmo se transformar em “arte”, se virmos
essa palavra com uma certa amplitude de significado, a amplitude meio sem
disciplina com que as pessoas usam a palavra na vida real. (Nos manuais de
estética, é claro, que os filtros têm que ser rigorosíssimos, até para
compensar a bagunça da Língua Geral lá de fora.)
Se achamos que existe arte na pintura de paisagens ou
retratos a óleo, por que não a haveria na pintura de miniaturas, de camafeus,
de botões-de-enfeite? Por que não haveria arte na pintura de cabeças de alfinete,
ou naquelas esculturas de palitos de fósforos? Talvez falte significado social
e ressonâncias humanas profundas a essas artes pequeninas, mas o fato é que uma
“arte” só é pequenina até o dia em que uma pessoa fora do comum começa a
praticá-la, num ambiente capaz de compreendê-la.
Como dizia Raymond Chandler, não existem gêneros
literários pequenos para um grande artista; o problema é que existem artistas
que se acham obrigados a se apequenar quando abordam um determinado gênero.
Existe algum futuro possível, na sociedade de hoje, em
que a dobradura de guardanapos possa se tornar uma atividade estética
independente de todo o resto, ser considerada pelo menos uma “arte ornamental”
como o é a criação de leques, ou uma atividade criativa como o origami?
Muito feliz por ter descoberto o seu blog. Sou professor de português numa escola da rede municipal de Porto Alegre (RS) e já havia usado com meus alunos alguns de seus artigos que saiam na revista Língua Portuguesa. Temos uma oficina de escrita criativa com os alunos dos anos finais do fundamental, e esse blog é uma mina de ouro de conteúdo! Parabéns pelo seu trabalho como escritor e tradutor (sou grande fã de Philip K. Dick e Raymond Chandler). Um abraço!
ResponderExcluirObrigado, Eduardo. Fico feliz em ver que estes posts são úteis a quem ensina! Fique à vontade para citar/utilizar meus textos. E divulgue o blog! Um abraço. (A propósito: tenho também um blog sobre Raymond Chandler, também hospedado no Blogger: CAMINHANDO COM PHILIP MARLOWE. Está inativo, mas aberto para leitura.)
ResponderExcluirPra cada poderoso frívolo prestando atenção em qualquer bobagem, há um astuto que se adapta e prospera em torno dessa frivolidade. Parece ser a revolução possível, né?
ResponderExcluirP.S.: Lembrei de João Ubaldo e o seu Arte e Ciência de Roubar Galinha. A galhofa, se não salva, alivia.
A verdade, Unknown, é que onde houver uma necessidade humana haverá uma possibilidade de ganho financeiro com o ato de satisfazê-la, pouco importa se a necessidade é artificial, frívola, supérflua.
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