segunda-feira, 2 de novembro de 2020

4637) A tradução nos livros de FC (2.11.2020)




Comentando na revista Locus (#450, julho 1998) um livro de Frederik Pohl (O, Pioneer!), Russell Letson explica que a história é ambientada num planeta que serve como uma espécie de ponto de encontro entre diferentes raças da Galáxia, nós entre elas. O que dá origem, claro, a problemas de tradução e comunicação.
 
Alguns efeitos engraçados do livro (Pohl tinha uma queda, e muito jeito, para a sátira) estão no inglês empolado usado por alguns colegas alienígenas. E ele refere um trecho em que um Delt, utilizando softwares de tradução simultânea, comenta com um terrestre que admira muito a literatura de nosso planeta e seu escritor preferido é Ernest Hemingway, autor do clássico Man Approaching Death in Relationship with Ocean.


A tradução do “alienigenês” foi sempre um problema na FC. Talvez mais no cinema do que na literatura, talvez porque é de fato meio esquisito ver aquelas criaturas lagartiformes ou mega-antropóides exprimindo-se no idioma de Shakespeare.
 
No filme Duna de David Lynch, há uma cena relativamente bem resolvida, em que um Embaixador (ou coisa equivalente) chega à corte do Barão Harkonnen dentro de um recipiente ambulante contendo o ar que ele respira, e seus prepostos erguem diante do rosto uma espécie de microfone que de um lado capta suas palavras e do outro as reproduz em inglês. O simples fato de ouvirmos os dois ruídos, com um pequen delay, nos consola a busca de verossimilhança.



Mesmo nos melhores livros de FC é meio desanimador ver aqueles “Congressos Interplanetários”, ou coisa equivalente, reunindo dez espécies de diferentes planetas para debater o futuro da Galáxia – todos falando a mesma língua e respirando o mesmo ar.
 
Por isso, conto pontos positivos para um autor despretensioso como B. R. Bruss, onde na primeira reunião coletiva face-a-face entre terrestres e marcianos a sala é dividida ao meio, com duas atmosferas diferentes, e logo na primeira troca de gentilezas acontece este diálogo:
 
– Tenham a bondade de sentar-se – disse Biarzanoff aos marcianos.
Naturalmente, havia poltronas do outro lado da sala.
– Não temos o hábito de nos sentarmos.
 
(S.O.S. Discos Voadores, “S.O.S. Soucoupes”, B. R. Bruss, trad. David Jardim Jr., pág. 68)


Com dez anos de idade, o leitor sente firmeza conceitual.  E o problema do idioma? Resolvido numa cena anterior:
 
Mas uma voz fez-se ouvir, uma voz estranha, metálica, fanhosa. A princípio, Koubine não notou que a voz se dirigia a ele em russo, pois as palavras vinham deformadas, e eram pronunciadas com excessiva rapidez. Mas seu espanto chegou ao cúmulo quando acabou por compreender que aquela voz dizia:
 
– Somos marcianos. Saúde!
 
(...) Viu, então, o marciano tirar, do cinto, um objeto parecido com um alfinete de chapéu, o que lhe causou certa apreensão, durante um momento, imaginando que aquilo fosse uma arma desconhecida. O marciano, porém, passou a ponta daquela agulha em uma das pequenas esferas, que trazia presas ao cinto, depois do que recomeçou a falar, com voz menos anasalada e mais vagarosa. (pág. 60-61)
 
A necessidade de instrumentos de tradução instantânea atrapalha um pouco qualquer autor, mas em geral a praxe é indicar a existência desse processo técnico indispensável, e depois deixar fluir a conversa sem a necessidade de lembrar o tempo todo esses pequenos retardos ou ruídos.
 
Mais ou menos como optou por fazer o diretor Stanley Kramer no filme Julgamento em Nuremberg (1961), quando juízes, acusadores, defensores e réus falavam línguas diferentes. O diretor explica nos minutos iniciais da sessão como a tradução simultânea era feita, e depois, demonstrando enorme bom senso, encena os diálogos como se ocorressem sem precisar passar por isto. Subentende-se que passaram.


Noutro clássico da pulp fiction francesa a questão da tradução se coloca novamente nesse contato entre terrestres e “estrangeiros”.
 
Outros corredores... outras salas... outros lugares, e finalmente chegaram a uma vasta sala de paredes de vidro grosso, banhada numa claridade suave e difusa, de origem misteriosa. O chefe e o outro aproximaram-se dos nossos heróis. Manipularam os controles da máquina e, por meio de sinais, fizeram com que Davy compreendesse que poderia falar livremente.
                Em palavras simples, o coronel apresentou-se e explicou de onde vinha, juntamente com seus companheiros, perguntando se as estranhas crianças, que pareciam escutá-lo com interesse, poderiam realmente compreender o que dizia.
                A estranha máquina desempenhava, com efeito, o papel de tradutor psíquico e desde que Davy começou a falar, os delicados mecanismos encontraram as raízes da nova língua registrada, a qual, em poucos segundos, era assimilada.
                Assim, por meio dos influxos psíquicos apropriados, os interlocutores de Davy compreendiam suas palavras, e o coronel, as deles. Cada palavra pronunciada era traduzida pelo aparelho numa rapidez incrível e, desse modo, era possível uma conversação normal.
 
(A Invasão da Terra, “Fleau de l’Univers”, F. Richard-Bessière, trad. Sérgio Duarte, pág. 55-56)



A necessidade de máquinas tradutórias passa por muitas versões na FC. Um autor não precisa inventar uma tecnologia totalmente plausível, até porque menos plausível que a sua máquina tradutória será decerto o seu alienígena. (Sou da corrente cética de Stanislaw Lem com relação à vida extraterrestre – mesmo que exista, duvido que possamos nos comunicar com ela.)
 
Em todo caso, estão sendo inventados o tempo todo novos recursos técnicos de transformar pensamentos em palavras. Não para comunicação com alienígenas, mas para comunicação com as próprias máquinas que inventamos, e que já nos permitem erguer o smartphone e dizer, com voz clara e nítida: “Siri, quem são os autores da canção Hurricane?”, e escutar, dois segundos depois, uma voz feminina dizendo: Bob Dylan e Jacques Levy.


No conto “Summer Frost”, o autor Blake Crouch mostra a sua protagonista comunicando-se com uma Inteligência Artificial. Ela usa um par de lentes de contato que lhe servem também de tela – as palavras e sinais surgem luminosos à sua frente, como se estivessem suspensos no espaço. E seus pensamentos são transformados tanto em sons quanto em texto escrito, para facilitar sua comunicação.
 
É uma tecnologia ainda em ajustes. O implante VRD é adaptado de modo a conectar-se a eletrodos que mapeiam meticulosamente e registram a atividade da mente no momento de usar certas palavras. Assim, forma-se uma base de dados de padrões de neurossinais que numa fase seguinte são organizados em elementos de fala. Criar um link PPT é um trabalho que consome umas oito semanas, e o custo é proibitivo, pelo menos para quem não trabalha na mesma indústria.
 
Penso minha resposta, e depois de três segundos, a frase aparece no meu campo visual. Aperto o meu polegar e indicador da mão direita para confirmar que meu pensamento foi corretamente transcrito, e envio a mensagem como foi transcrita.
(trad. BT)
 
É um passo adiante em relação aos exemplos mais acima, que pagam pedágio simbólico à necessidade de mostrar algum tipo de máquina mas, prudentemente, não descem a muitos detalhes sobre como as máquinas produzem os seus efeitos. A descrição de Crouch pode ser ainda utópica, mas algumas dessas técnicas já existem, em forma incipiente, o que permite a um escritor apenas extrapolar um momento em que os problemas técnicos e financeiros tenham sido resolvidos. É o que escritores de FC fazem desde que o mundo é mundo.
 
Nessa área neurológica, de implantes produzidos com nano-tecnologia, é possível conceber técnicas de tradução que permitam (num romance, se não na vida real) seres humanos e seres extra-terrestres chegarem a um certo denominador-comum linguístico a ponto de poderem conversar. Se na vida real isso vai ocorrer, é irrelevante. Basta que na literatura seja plausível.