domingo, 28 de junho de 2020

4594) Minhas canções: "Amanheceu" (28.6.2020)




Quando a gente começa a trabalhar profissionalmente numa atividade criativa é que a criação começa a vir de fora, e não de dentro. Começa a vir através de encomendas feitas por outros, e não da nossa mera “inspiração” (seja lá o que essa palavra representa). É um dos primeiros sinais de profissionalismo.

Receber uma encomenda de uma pessoa qualquer e entregar uma canção (um livro, um texto, etc.) à altura! É um pequeno triunfo pessoal. Às vezes um grande. Porque fizemos algo muito mais difícil. Se na criação autônoma o artista está captando sua própria emissora-de-rádio mental, na encomenda ele está captando uma emissora alheia, um sentimento alheio, a necessidade alheia por uma história. E de repente o camarada, feito um demiurgo, tira aquela história do nada.

É difícil, e nessa batalha diária as derrotas são tão numerosas quanto as vitórias. Os textos que a gente não conseguiu escrever, os livros que tentou adaptar, o mote para o qual não se achou uma glosa à altura, a melodia linda para a qual a gente fez uma letra e o compositor olhou, coçou a cabeça, cheio de dedos: “olha, tá bonita, mas... não era bem isso que eu estava pensando...”

Cada vitória nessa arte, tão difícil quanto a do trapézio, deve ser comemorada.

Nos primeiros meses de 1984 Elba Ramalho estava fazendo a pré-produção de um disco novo, logo após o grande sucesso do Coração Brasileiro. Ela já havia me avisado que nesse novo disco iria incluir a faixa Nordeste Independente, minha parceria com Ivanildo Vila Nova, que era um grande arraso no show Coração Brasileiro, cuja carreira começou no Canecão, do Rio.

Um dia, no entanto, chegou um bilhete dela com uma fita cassete. Era uma melodia de Zeppa, guitarrista da banda que a acompanhava, meu amigão. E ela pedia uma letra para a música, que era linda.


(Zeppa)

É nessas horas que começa o sofrimento. Quanto mais bonita a música mais a gente sofre, já com a certeza antecipada de que não vai ser capaz de produzir uma letra à altura. E eu fiquei durante dias escutando a fita, rebobinando, escutando de novo, e nesses casos começa um processo em que a música fica entranhada no ouvido da gente, rodando em loop na memória, o dia todo. Não é preciso mais ouvir a fita. O implante mental já foi feito.

Faltava o tema, e o tema que me vinha à cabeça era o de uma música que tocava no ar, que todo mundo ouvia; e pessoas que ficavam a noite acordadas e viam o dia amanhecer, ao som daquela música que ninguém sabia o que era.

E então, dias depois do início desse processo, aconteceu no Rio de Janeiro o famoso “Comício da Candelária”, que reuniu um milhão de pessoas na Avenida Presidente Vargas. A cidade em peso foi para lá. Todo mundo marcou, todo mundo combinou de se encontrar, todo mundo foi para o comício em que uma frente de políticos de centro e esquerda (e alguns de direita) pedia eleições diretas imediatas para Presidente da República.


Por que pediam? É bom explicar que o último Presidente eleito pelo povo tinha sido Jânio Quadros (o que já seria um bom motivo para proibir eleições diretas pro resto da vida; mas deixa pra lá.)  Mas isso foi em 1960! Já eram vinte e quatro anos de jejum, engolindo sapos fardados. Ninguém aguentava mais. Os próprios sapos estavam em busca de uma solução. O presidente daquela época, João Figueiredo, foi um dos mais relutantes feitores a tomar conta desta fazenda que já dura meio milênio ou mais.

Não importa; achávamos que bastaria podermos eleger um Presidente da República (e o palanque pululava de pretendentes) para resolver os problemas do país. Acreditávamos que o povo não se engana, que bastava deixar o povo votar e ele revelaria sua sabedoria profunda. O Brasil profundo queria ser ouvido.

A verdade é que tínhamos fé em algo que fugia à nossa experiência – eu estava com 33 anos naquela noite, e nunca tinha votado para Presidente. Não importa. Estávamos apaixonados pelo Brasil, achávamos que se deixássemos o Brasil profundo falar ele só diria coisas que bateriam com os nossos desejos, os nossos sonhos. Quando a gente está apaixonado, não vê os defeitos da criatura amada, vê somente as qualidades, principalmente as que a gente mesmo inventa. Não importa. Antes votar por amor do que votar por ódio. Antes a decepção de acreditar e depois ter um susto; melhor do que a decepção de desacreditar e ver que era isso mesmo e nada presta.

O comício entrou pela noite, a comemoração entrou pela madrugada. Amanhecemos o dia, ébrios de democracia, e como dizia Borges, “ébrios de insônia e de vertiginosa dialética”. E no dia seguinte eu fiz a letra da música, que teve um lindo arranjo do meu amigo, o maestro Zé Américo Bastos, e dois solos de trumpete de Nilton Rodrigues que me arrepiam até hoje.

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AMANHECEU
(BT & Zepa)
Elba Ramalho, CD Do Jeito Que a Gente Gosta, 1984 


Veio devagar no vento
um pedaço escondido de canção...
Passeou no firmamento
no brilho de Vênus de manhã...
Carrossel de luzes, sons em carrossel
acendendo todas as cores do céu...

Veio de manhã cedinho
soando bem longe, lá do além...
Leve como um passarinho
trazendo um segredo pra alguém;
a natureza acordou assim
e a cidade inteira saiu pro jardim...

Amanheceu, amor.
Amanheceu, amor.
Foi me encantando quando me tocou...
Amanheceu, amor.
Amanheceu, amor.
Bateu no meu peito e me acordou...

Era como uma risada
na boca encarnada de arlequim;
carnaval inaugurado
no clarão prateado de um clarim.
Sol de meio-dia, castelos no ar,
luminosa melodia mais antiga que o mar...

Era uma canção somente
porém de repente floresceu;
turbilhão profundo,
era o rosto do mundo, e era eu;
multidão de sonhos, mutirão de paz,
forte como a ventania nos canaviais...

Amanheceu, amor.
Amanheceu, amor.
Foi me encantando quando me tocou.
Amanheceu, amor.
Amanheceu, amor.
Bateu no meu peito e me acordou...