Quando a gente começa a trabalhar profissionalmente numa atividade criativa é que a criação começa a vir de fora, e não de dentro. Começa a vir através de encomendas feitas por outros, e não da nossa mera “inspiração” (seja lá o que essa palavra representa). É um dos primeiros sinais de profissionalismo.
Receber uma encomenda de uma pessoa qualquer e entregar
uma canção (um livro, um texto, etc.) à altura! É um pequeno triunfo pessoal.
Às vezes um grande. Porque fizemos algo muito mais difícil. Se na criação
autônoma o artista está captando sua própria emissora-de-rádio mental, na
encomenda ele está captando uma emissora alheia, um sentimento alheio, a
necessidade alheia por uma história. E de repente o camarada, feito um
demiurgo, tira aquela história do nada.
É difícil, e nessa batalha diária as derrotas são tão
numerosas quanto as vitórias. Os textos que a gente não conseguiu escrever, os
livros que tentou adaptar, o mote para o qual não se achou uma glosa à altura,
a melodia linda para a qual a gente fez uma letra e o compositor olhou, coçou a
cabeça, cheio de dedos: “olha, tá bonita, mas... não era bem isso que eu estava
pensando...”
Cada vitória nessa arte, tão difícil quanto a do
trapézio, deve ser comemorada.
Nos primeiros meses de 1984 Elba Ramalho estava fazendo a
pré-produção de um disco novo, logo após o grande sucesso do Coração Brasileiro. Ela já havia me
avisado que nesse novo disco iria incluir a faixa Nordeste Independente, minha parceria com Ivanildo Vila Nova, que
era um grande arraso no show Coração
Brasileiro, cuja carreira começou no Canecão, do Rio.
Um dia, no entanto, chegou um bilhete dela com uma fita
cassete. Era uma melodia de Zeppa, guitarrista da banda que a acompanhava, meu
amigão. E ela pedia uma letra para a música, que era linda.
(Zeppa)
É nessas horas que começa o sofrimento. Quanto mais
bonita a música mais a gente sofre, já com a certeza antecipada de que não vai
ser capaz de produzir uma letra à altura. E eu fiquei durante dias escutando a
fita, rebobinando, escutando de novo, e nesses casos começa um processo em que
a música fica entranhada no ouvido da gente, rodando em loop na memória, o dia todo. Não é preciso mais ouvir a fita. O
implante mental já foi feito.
Faltava o tema, e o tema que me vinha à cabeça era o de
uma música que tocava no ar, que todo mundo ouvia; e pessoas que ficavam a
noite acordadas e viam o dia amanhecer, ao som daquela música que ninguém sabia
o que era.
E então, dias depois do início desse processo, aconteceu
no Rio de Janeiro o famoso “Comício da Candelária”, que reuniu um milhão de
pessoas na Avenida Presidente Vargas. A cidade em peso foi para lá. Todo mundo
marcou, todo mundo combinou de se encontrar, todo mundo foi para o comício em
que uma frente de políticos de centro e esquerda (e alguns de direita) pedia
eleições diretas imediatas para Presidente da República.
Por que pediam? É bom explicar que o último Presidente
eleito pelo povo tinha sido Jânio Quadros (o que já seria um bom motivo para
proibir eleições diretas pro resto da vida; mas deixa pra lá.) Mas isso foi em 1960! Já eram vinte e quatro
anos de jejum, engolindo sapos fardados. Ninguém aguentava mais. Os próprios
sapos estavam em busca de uma solução. O presidente daquela época, João
Figueiredo, foi um dos mais relutantes feitores a tomar conta desta fazenda que
já dura meio milênio ou mais.
Não importa; achávamos que bastaria podermos eleger um Presidente
da República (e o palanque pululava de pretendentes) para resolver os problemas
do país. Acreditávamos que o povo não se engana, que bastava deixar o povo
votar e ele revelaria sua sabedoria profunda. O Brasil profundo queria ser
ouvido.
A verdade é que tínhamos fé em algo que fugia à nossa
experiência – eu estava com 33 anos naquela noite, e nunca tinha votado para
Presidente. Não importa. Estávamos apaixonados pelo Brasil, achávamos que se
deixássemos o Brasil profundo falar ele só diria coisas que bateriam com os
nossos desejos, os nossos sonhos. Quando a gente está apaixonado, não vê os
defeitos da criatura amada, vê somente as qualidades, principalmente as que a
gente mesmo inventa. Não importa. Antes votar por amor do que votar por ódio.
Antes a decepção de acreditar e depois ter um susto; melhor do que a decepção de
desacreditar e ver que era isso mesmo e nada presta.
O comício entrou pela noite, a comemoração entrou pela madrugada. Amanhecemos o dia, ébrios de democracia, e como dizia
Borges, “ébrios de insônia e de vertiginosa dialética”. E no dia seguinte eu
fiz a letra da música, que teve um lindo arranjo do meu amigo, o maestro Zé
Américo Bastos, e dois solos de trumpete de Nilton Rodrigues que me arrepiam até
hoje.
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Veio devagar no vento
um pedaço escondido de canção...
Passeou no firmamento
no brilho de Vênus de manhã...
Carrossel de luzes, sons em carrossel
acendendo todas as cores do céu...
Veio de manhã cedinho
soando bem longe, lá do além...
Leve como um passarinho
trazendo um segredo pra alguém;
a natureza acordou assim
e a cidade inteira saiu pro jardim...
Amanheceu, amor.
Amanheceu, amor.
Foi me encantando quando me tocou...
Amanheceu, amor.
Amanheceu, amor.
Bateu no meu peito e me acordou...
Era como uma risada
na boca encarnada de arlequim;
carnaval inaugurado
no clarão prateado de um clarim.
Sol de meio-dia, castelos no ar,
luminosa melodia mais antiga que o mar...
Era uma canção somente
porém de repente floresceu;
turbilhão profundo,
era o rosto do mundo, e era eu;
multidão de sonhos, mutirão de paz,
forte como a ventania nos canaviais...
Amanheceu, amor.
Amanheceu, amor.
Foi me encantando quando me tocou.
Amanheceu, amor.
Amanheceu, amor.
Bateu no meu peito e me acordou...
Hô artigo caceteiro!
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