quarta-feira, 27 de maio de 2020

4583) Entrevistas Transcendentais: Agatha Christie (27.5.2020)




A chegada ao aeroporto de Londres foi tranquila, e a motorista que me mandaram era uma irlandesa cinquentona, sardenta, com duas turmalinas nos olhos. Trocamos algumas frases de cortesia enquanto cruzávamos os viadutos e os trevos de concreto armado, mas ao chegarmos à rodovia principal a viagem transcorreu em silêncio, enquanto o motor da Mercedes emitia uma nota contínua de violoncelo, e as verdes colinas do Devonshire deslizavam e sumiam à distância.

A casa era a das fotos que eu já conhecia. Desci, enquanto o carro dava a volta rumo à garagem na parte traseira. Toquei a campainha e me preparei para encarar um típico mordomo christiano, de porte cavalheiresco e rosto impassível. Mas foi a própria Dame Agatha que veio abrir a porta, o que me desmontou.

– Ah – disse ela sorrindo. – O jornalista brasileiro! Você é mais jovem do que eu pensava. Entre, por favor.

Somente naquele instante percebi o quanto estava nervoso. Apertei-lhe a mão com brevidade; os olhos azuis dela entraram nos meus, me reviraram pelo avesso, avisaram-na de que poderia ficar tranquila. Fui conduzido a uma sala de estar discreta e antiquada, e daí a alguns minutos estávamos sentados, tendo diante de nós aquela instituição inglesa que sobreviverá ao afundamento da Ilhas Britânicas: uma bandeja de chá.


BT– Sempre imagino que a senhora colhe os assuntos para alguns dos seus livros prestando atenção aos objetos mais banais que há numa residência.

AGATHA – Os críticos literários gostam de ver simbolismo em tudo. Se num livro um cão estava cochilando no jardim e de repente levantou a cabeça, eles acabam achando que isso indica a presença de Anúbis, o deus egípcio da morte. Ora... talvez o autor tenha querido dizer apenas que o cão ouviu uma pessoa abrindo o portão, ou coisa parecida.

Claro que eu aprecio lendas: Anúbis, Gilgamesh, Ishtar... Claro que algumas relações podem ser feitas pelo subconsciente. Mas quando escrevo estou preocupada com as relações reais entre pessoas, lugares, objetos... Um cálice pode aludir ao Santo Graal? Sem dúvida, mas meu interesse é saber se cabe nele a dose de bebida suficiente para diluir um veneno específico... (suspira)  Bem, não posso me queixar. Pior seria se ninguém se interessasse pelo que escrevo.

BT– A senhora fez sucesso com relativa rapidez. Seus primeiros livros são muito fluentes, em termos de enredo e de tipos humanos.

AGATHA – A escrita só se conquista depois de muita prática, mas oh, claro, eu tenho uma afeição grande por aqueles livros, embora nunca os releia, para não achar defeitos. Tenha em mente que foram escritos por uma moça que ainda não sabia se era capaz de escrever ou não. Naquele tempo... ah, não gosto de usar essa expressão, mas, enfim... naquele tempo uma mulher publicar um livro era algo como pedir a palavra num auditório onde só houvesse homens. E eu sempre fui tão tímida! Ainda bem que para escrever eu podia imaginar que estava escrevendo só para mim, e que nenhuma pessoa iria ler aquilo com hostilidade, ou com galhofa. Quando penso que vou ser lida assim, fico bloqueada, não consigo produzir mais uma linha. Então guardo o caderno, vou ver se o jantar está sendo bem encaminhado, ou alguma outra coisa que me distraia o espírito.

BT – Qual o seu livro favorito entre todos que escreveu?

AGATHA – Ah, essa pergunta é tão banal... Tem certeza de que quer uma resposta?

BT – Eu concordo com a senhora. Acontece que quem a sugeriu foi o editor do jornal que me trouxe aqui.

AGATHA – Então vou respondê-la, para você não se prejudicar. Digamos que eu tenho um carinho especial pela minha Autobiografia. Sabe, quando escrevemos um romance estamos dentro de uma espécie de sonho controlado. Eu considero meus romances bastante realistas, e tudo o mais, mas eles têm só um pouquinho da minha realidade pessoal. Nesse livro, em que pude falar de mim, senti uma espécie de alívio. Ainda acho que poderia ter escrito o dobro.


BT – Pode ter certeza de que a imensa maioria dos seus leitores aprecia esse livro muitíssimo, tanto quanto eu. Embora, é claro, ninguém queira abrir mão de Hercule Poirot. Como é sua relação com ele, hoje?

AGATHA – Eu seria ingrata se não dissesse que Monsieur Poirot tem toda minha afeição, não concorda? A verdade é que ele entrou muito inesperadamente na minha vida, como aquele visitante que se hospeda em nossa casa-de-campo para passar uma temporada de férias e acaba morando ali por trinta anos. Eu não me planejei para que fosse assim, mas nunca tive uma oportunidade, para não falar num motivo forte, para mandá-lo embora. Ele tem seus cacoetes, mas é um cavalheiro de verdade, algo cada vez mais raro. E tem uma inteligência admirável.

BT – E Miss Marple? Para muitos de nós, ela é ainda mais simpática do que M. Poirot, quando mais não seja pelo fato de que é mais frágil, parece ter menos recursos...

AGATHA – Oh, ela tem imensos recursos, não se engane. Todas essas senhoras são mais perceptivas do que parecem à primeira vista, e sabem se valer de séculos de dissimulação e de estratégia como forma de defesa. Sim, são frágeis, é fácil acabar com elas, é fácil livrar-se delas, mas não é fácil enganá-las.

(Neste momento, um grupo de crianças tagarelas irrompe na sala, e todas se calam instantaneamente ao constatar a presença do visitante. Ms. Christie as chama para perto, apresenta-as – são netas ou bisnetas, não entendo muito bem, porque são meninas muito lindas, muito brancas, com sorrisos encantadores; vieram mostrar-lhe dois ou três livros que acharam na biblioteca da casa, e pedir-lhe conselhos de leitura. Ms. Christie ergue e me mostra, com um sorriso cúmplice, uma capa dizendo Nursery Rhymes. As garotas agradecem, fazem na minha direção uma pequena mesura bem ensaiada e retiram-se envoltas num silêncio que se desfaz em alacridade quando chegam ao corredor.]

BT – Uma das coisas que mais me chamavam a atenção em seus livros era a utilização de cantigas infantis como mote, como ponto de partida para uma história de crimes tenebrosos.

AGATHA – Nós aprendemos muito cedo que a infância é um jardim de terrores. Devo ter sido uma menina muito medrosa, e desde cedo tive uma consciência muito clara de que os seres humanos são capazes de maldades terríveis entre si. Toda criança sabe disso, mas em geral elas têm medo de comentar com os pais. Comentam apenas os temores que já viram alguém comentar, porque acham que estes devem ser um assunto permitido.

BT – Isto inclui o assassinato, sem dúvida.

AGATHA – Claro. Durante boa parte da minha infância tive pesadelos com uma figura ameaçadora, um criminoso que era capaz de entrar no corpo de qualquer pessoa da minha família para me fazer mal.

BT – O Homem do Fuzil.

AGATHA (sorrindo) –  Vejo que lembra desse detalhe. Era uma espécie de soldado napoleônico que minha imaginação infantil produziu, com chapéu de tricórnio, mosquetão... Ele não atirava em ninguém, mas tinha olhos malignos e sempre que eu o “avistava” sentia um pânico controlado. Depois ele deixou de aparecer pessoalmente, mas seu olhar surgia nas pessoas. Muitas vezes olhei para minha irmã e vi que quem me fitava com os olhos dela era o Homem do Fuzil.


BT – Não deixa de ser uma forma de personificar um sentimento para tê-lo sob controle.

AGATHA – Sim, os psicólogos modernos são capazes de correr rios de tinta em torno disso. Mas, sim, era tudo muito próximo, quando eu era menina: medo, família, infância, violência, a guerra... Um assassino sem corpo que de repente brotava no olhar de alguém à minha volta. Tornar-se adulto é ir ficando coberto de camadas protetoras. Esquecemos o quanto uma criança se sente nua, desprotegida, vulnerável diante de qualquer possibilidade de violência física.

BT – Um personagem por quem tenho uma certa parcialidade é Parker Pyne, o homem da observação cuidadosa e da experiência bem comparada.

AGATHA – Gosto dele, mas é um modelo limitado, jamais me teria proporcionado dezenas de romances inteiros, como Poirot. Até que tentei fazê-lo viajar, mas nunca o senti muito à vontade quando longe do seu escritório, e do seu pequeno exército de assistentes, não muito verossímeis, talvez, mas enfim... A vantagem de Poirot é que ele é um homem cosmopolita, conhece pessoas influentes, e ao longo dos anos é natural que haja muita gente que se sente devedora dele, não acha? Convidam-no, levam-no a visitar lugares pelo mundo... Então é tão normal encontrá-lo no Cairo quanto no Surrey. Gosto de viajar e gosto de imaginar histórias em lugares que eu talvez conheça melhor do que o leitor, mas me divirto tentando descrevê-los como me convém.

BT – Lembro-me de quando era bem jovem a surpresa que tive vendo fotos de suas viagens. Especialmente uma foto sua numa escavação arqueológica, e outra com uma prancha de surf.

AGATHA – Os leitores imaginam às vezes que nós não fazemos outra coisa senão escrever e dar entrevistas. Minha autobiografia foi escrita em parte para preservar recordações de pessoas queridas e de momentos felizes, mas também para mostrar que uma escritora é também uma dona de casa,  e uma mulher como qualquer outra, só que é uma dona de casa que escreve. Não direi todas, mas muitas donas de casa poderiam escrever, se o meio em que vivem as estimulasse para isso. Eu enfrentei preconceitos, mas tive também amigos que me encorajaram, e paguei-lhes tributo em meu livro.

BT – A verdade é que sempre sabemos pouco a respeito dos nossos autores preferidos. A leitura dos romances nunca nos satisfaz, principalmente quando se tornam tão importantes para nós... Não acha que essa curiosidade é justa?

AGATHA – Numa certa medida, sim; não esqueça que também sou leitora, tenho meus autores preferidos, minhas curiosidades, minhas fantasias a respeito deles. E sempre procurei ser atenciosa com os que me leem. Meu livro de memórias foi escrito para eles, em primeiro lugar...

BT – Sou um deles.

AGATHA – Fico feliz que seja, porque há moços e moças da imprensa que vêm aqui conversar comigo e começam o diálogo perguntando quem sou, e o que fiz de tão importante para ser entrevistada.


BT – Que é isso. A senhora é talvez a escritora mais famosa do mundo.

AGATHA – Há certos números anunciando isto, mas não quer dizer muita coisa. Já aprendi que, se acumularmos números sobre tudo, acabamos achando alguns que confirmam qualquer opinião nossa. O mundo não para, surgem novos leitores a todo instante, novos escritores. Tenho uma consciência bem clara de que a fama de um autor tende a diminuir com a passagem dos anos.  Um escritor só é famoso entre pessoas que leem, e lamento perceber que esse número está diminuindo. O número de alfabetizados cresce, mas o de leitores de literatura não faz senão diminuir. Mas não posso me queixar, não é mesmo? Tenho mais leitores que uma grande parte dos meus colegas, sei que sou lida, amada, lembrada... O que mais podemos querer?

BT – Poder continuar escrevendo, talvez.

AGATHA  - Ou, melhor ainda, acreditar que continuarei escrevendo mesmo depois que não esteja mais aqui. Sabe, não sou uma pessoa religiosa, pelo menos não tanto quanto muitos da minha família. Desde menina, no entanto, imaginei que mesmo que não houvesse dentro de cada um de nós uma alma imortal, havia sem dúvida um espírito cuja existência nos sobrevive, capaz de ser evocado com palavras. Você deve lembrar um dos meus livros onde brinco com a existência de bruxas, pessoas que fazem encantamentos rituais... Para elas, é tudo pretexto para um crime, é claro, e no meu caso, pretexto para uma história. Mas quando lemos Shakespeare, não estamos mantendo viva uma parte daquela mente tão privilegiada? Talvez não a pessoa dele, que já morreu e se desfez, mas algo que ele prezava muito, tanto que dedicou a vida a isso: seu humor, seu conhecimento de nossas fraquezas e nossas forças, seu entusiasmo para com o heroísmo de que somos capazes às vezes, seu desprezo pela vilania, sua paixão... Não creio, ou pelo menos creio apenas formalmente, numa alma imortal como as religiões aconselham. Creio nesse outro tipo de alma, presa em palavras, e que pelas palavras se propaga.

BT – E que revive, a cada leitura, a cada vez que aquelas palavras são repetidas em voz alta...

AGATHA – Ou mesmo quando lidas à noite, em silêncio. Ou mesmo quando outros dramaturgos, que ali beberam, produzem versos e inventam personagens que poderiam ter sido criados pelo mestre. Para que dele sobreviva algo. Para que seu modo de ver e de sentir não morra. A pessoa deixa de existir, mas ela ficaria feliz se soubesse que suas palavras, e sua maneira de criar histórias, não desapareceu de todo.

Finalizamos o chá, recusei o convite sincero para jantar, pois naquela mesma noite tinha marcado um jantar com meu editor londrino, e no dia seguinte voaria até Paris para encontrar Monsieur Leblanc. Ela despediu-se de mim com o mesmo sorriso, e aquela formalidade inglesa tão ansiosa para agradar, tão consciente da distância que impõe às pessoas; disse-me (todos dizem) que sempre teve vontade de conhecer o Brasil.

No caminho de volta a Londres, vim revisando as provas do meu livro Fanfic e pensando como os círculos continuam a se expandir na água mesmo depois que a pedra repousa no fundo.




(Nota necessária: esta série de "Entrevistas Transcendentais" é composta por textos imaginários. Eu não entrevistei essas pessoas.)   

Augusto dos Anjos:

Julio Cortázar:

Philip K. Dick: