segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

4652) Zé Calixto e o fole de 8 baixos (14.12.2020)


(foto: Antonio David Diniz)

Por uma dessas simetrias irônicas da vida, neste domingo dia 13, aniversário de Luiz Gonzaga, nossa música perdeu o grande Zé Calixto, 87 anos, um dos mestres do fole-de-8-baixos do forró nordestino.
 
Os Calixto (Zé, Luizinho, Bastinho) são uma linhagem de músicos talentosos e populares. Conhecendo a eles e à sua obra não é difícil entender o "caldo cultural" de onde emergiram figuras hoje internacionalmente famosas como Sivuca e Hermeto Paschoal.
 
Uma vez, nos anos 1990, fui convidado para cantar meus martelos numa coletiva de músicos nordestinos no Circo Voador do Rio. Estava nos bastidores, no meio de dezenas de figuras, conversando com Zé Calixto, quando se aproxima uma figura leonina de cabelos e barbas quase brancos: "Você é Zé Calixto? Meu nome é Hermeto Paschoal, e sou seu maior fã.”
 
Presenciei assim o que imagino ter sido o primeiro papo pra-valer entre esses dois reis do teclado.
 
Teclado é um modo de dizer, porque o fole de oito baixos usa botões, como as “gaitas” gaúchas. E tem como principal característica técnica o fato de que, quando se aperta um botão, “abrir o fole” produz uma nota musical, enquanto que “fechar o fole”, apertando o mesmo botão, produz outra. Na sanfona convencional, o acordeom, tudo é muito mais simples – a nota musical é a mesma, não importa em que direção a gente puxe ou empurre o fole.



O fole-de-8-baixos é um instrumentozinho invocado, pequeno, difícil, rico de recursos. Como dizia Dominguinhos, com uma gargalhada: “A vantagem dele é que é mais leve...”
 
Era o instrumento do velho Januário, o pai de Gonzagão. E o próprio Gonzagão juntou-se a Humberto Teixeira para produzir a canção “Respeita Januário”, onde Luiz conta como voltou para Pernambuco no auge do sucesso, para rever os pais. O velho Januário torceu o nariz diante do sucesso do filho, nesse monólogo criado e falado com a genialidade de Gonzaga:
 
“O nêgo agora tá gordo que parece um major... É uma casemira lascada, um dinheiro danado... Enricou!... Tá rico!... Pelos cálculos que eu fiz, ele deve possuir pra mais de dez contos de réis. Sanfonona grande danada... 120 baixos. É muito baixo. Eu nem sei pra que tanto baixo, porque arreparando bem ele só toca em dois! Januário não. O fole de Januário tem 8 baixos, mas ele toca em todos oito.”
 
Esse detalhe do número de baixos é um tratado completo sobre estética e tecnologia. A rigor, os 120 baixos da sanfona de Luiz Gonzaga são tão supérfluos quando os 18 milhões de cores do PhotoShop. Pra que isso tudo? Com 10 por cento disso, e talento, qualquer artista se vira muito bem.
 
O fole não precisa ter necessariamente oito. No começo (dizem) tinha dois, e aqueles dois botõezinhos à disposição da mão esquerda do tocador lembravam o casco bífido de um caprino, daí (segundo algumas interpretações) o nome “pé de bode” atribuído ao instrumento. Há foles de 12 baixos ou mais, e cada instrumentista usa o que lhe convém.



Quem quiser se aprofundar no estudo dele não tem porta de entrada melhor do que o livro de Léo Rugero, Com Respeito aos oito baixos – Um estudo etnomusicológico sobre o estilo nordestino da sanfona de oito baixos (“Prêmio Produção Crítica em Música”, Funarte, 2012 / Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 2013). 

Léo Rugero, paulista criado no Rio de Janeiro, pesquisador musical da UFRJ, mergulhou nessa colônia nordestina de sanfoneiros e puxadores de fole, produzindo este livro repleto de informações preciosas, e um documentário homônimo que pode ser visto na web.
 
A pesquisa de Rugero centrou-se várias vezes na pessoa de Zé Calixto, como representante mais velho de um clã que, ao contrário do pai deles todos, Seu João de Deus, transferiu-se para o Rio de Janeiro, teve acesso aos estúdios de gravação, e dos anos 1960 em diante deu uma sobrevida de meio século a essas formas musicais.
 
O blog de Rugero, Sanfona de 8 Baixos, pode ser acessado aqui:
 
Zé Calixto teve mais de duzentas composições gravadas. É interessante notar, para quem se interessa por esse tipo de música, que apesar de ser tradicionalmente identificado com o forró nordestino o fole de 8 baixos presta-se muito bem ao samba, ao choro, ao frevo e outros estilos musicais. O choro, principalmente, pelo seu perfil marcadamente instrumental e pela perícia que normalmente exige dos executantes, é um estilo de música que tem tudo a ver com os 8 baixos.
 
Aqui, por exemplo, podemos ouvir seu disco de 1961, onde ele interpreta clássicos instrumentais como o frevo “Vassourinhas” (Matias da Rocha-Joana Batista Ramos) e o samba “Escadaria” (Pedro Raimundo).
 
“A volta do sanfoneiro” (Philips, 1961)


Nascido em 1933 em Lagoa Seca, na época pertencente ao município de Campina Grande, Zé Calixto foi filho de tocador, tal como aconteceu com Luiz Gonzaga, e desde pequeno acompanhava o pai nos bailes rurais onde este tocava. Mudou-se para o Rio em 1960 e conseguiu sua primeira gravação intermediado pelo compositor Antonio Barros, outro recém-chegado naquela imensa leva pós-Gonzaga, pós-Jackson do Pandeiro, quando os estúdios cariocas ficaram repletos de tocadores, cantores e ritmistas gravando discos modestos que vendiam como água.
 
Aqui, um programa da TV Paraíba, em duas partes, criação de Rômulo Azevedo, onde Zé Calixto conta com o bom humor de sempre a sua odisséia nordestina:
 
“A Paraíba e Seus Artistas” (Rômulo Azevedo)
Parte 1:
Parte 2:
 
E aqui, números musicais entre Dominguinhos e Luizinho Calixto, um dos irmãos do mestre falecido – professor, compositor, instrumentista e continuador da Grande Arte.
 
Dominguinhos + Luizinho Calixto:
 
 







Um comentário:

  1. Bráulio como sempre cirúrgico com as palavras, eu costumo brincar dizendo que a santíssima trindade dos 8 baixos é formada por: Zé Calixto, Abidias, e Geraldo Correria

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