segunda-feira, 28 de setembro de 2020

4625) O primeiro filme de zumbis (28.9.2020)




O “filme de zumbi” virou um dos gêneros mais conhecidos do cinema de hoje. Meio século atrás, era um subconjunto minúsculo do “filme de terror”, ocupando um nicho bem menor do que o “filme de vampiro”, e competindo mais ou menos com “filme de múmia”.
 
Graças a George Romero e seus seguidores, o filme de zumbi tornou-se de certa forma um videoclip de nossa época. Multidões manipuladas, extermínios gratuitos, pandemias mal explicadas, retirantes famélicos invadindo cidades, migrações forçadas, cidades fantasmas entregues a gente que mal sabe de si...
 
Romero é creditado como o desencadeador do gênero, mas muitos historiadores apontam como primeiro filme de zumbi o White Zombie (1932) de Victor Halperin, baseado num romance do excêntrico William Seabrook, tendo Bela Lugosi à frente do elenco.



Vi agora esse filme, que pode ser visto, com legendas em inglês, no YouTube, numa cópia de qualidade surpreendente:
 
https://www.youtube.com/watch?v=NV3B2z0HkKA&ab_channel=PizzaFlix
 
Há vários aspectos curiosos neste filme precursor. A história se passa no Haiti, na propriedade rural de um tal Charles Beaumont (Robert Frazer), personagem que por coincidência tem o mesmo nome de um dos grandes escritores e roteiristas de FC e terror de sua geração. (Beaumont é o roteirista de filmes como As Sete Faces do Dr. Lao, Castelo Assombrado, A Máscara da Morte Rubra e outros, além de numerosos episódios de Twilight Zone.)



O Beaumont do filme é dono de plantações de cana-de-açúcar e em suas terras funciona o engenho de um feiticeiro local, em cujas engrenagens rústicas trabalham negros macambúzios, de olhar fixo e vidrado, movimentos robotizados. Chega a sua casa um jovem casal, Neil e Madeleine, e o fazendeiro se apaixona pela moça. Com o auxílio do feiticeiro, Murder Legendre (Bela Lugosi), ele impede o casamento dos dois, e transforma a moça em zumbi para tê-la em sua mansão como escrava sexual. O noivo descobre tudo e, com o auxílio de um missionário, tenta impedir a consumação do feitiço.


É um filme “B”, de produção paupérrima – foram usados cenários abandonados por outros filmes do estúdio (O Corcunda de Notre Dame, Frankenstein, etc.), num sistema de reaproveitamento cenográfico que Roger Corman iria empregar com mais habilidade duas ou três décadas depois. O diálogo é descartável; é o tipo do filme que se pode ver dublado em dinamarquês sem grande prejuízo. A ação é mecânica, as poucas cenas de luta ou perseguição são banais. O elenco é fraquinho, e Bela Lugosi, com um disfarce que lhe dá ares meio de Fu-Man-Chu, meio de Charlie Chan, diverte-se fazendo caras e bocas ameaçadoras.



Ainda assim, é um filme notável, que se vê com certo proveito. Um aspecto interessante nesses filmes de baixo orçamento é que a deficiência técnica os impede de produzir uma impressão de realidade muito grande. O som ora é alto ora baixo, a iluminação oscila de maneira inexplicável, os cenários não batem uns com os outros num simples atravessar de uma porta, o ator fala para um lado e parece estar olhando para outro...



Esse tipo de non sequitur, de justaposição de coisas aparentemente não-relacionadas, acaba produzindo uma impressão onírica, de incerteza, de insegurança perceptiva, que é um dos encantos do cinema mudo e que se prolongou, no cinema sonoro e colorido, pelo universo do filme “B” feito com um gosto e seis vinténs.

(a moenda)

Os primeiros zumbis que vemos são os negros haitianos que fazem moer o engenho de açúcar rústico, de engrenagens de madeira empurrados à mão. Não deixa de lembrar aqueles filmes bíblicos em que vemos Sansão, cego, escravizado, ajudando outros cativos a empurrar aquelas enormes pedras de moinho para os filisteus.
 
A certa altura, Bela Lugosi apresenta ao fazendeiro seu exército particular de escravos, que ele zumbificou através de uma poção da qual basta uma gota para transformar a pessoa num morto-vivo. E todos são brancos, e pessoas ilustres:


São os meus ex-inimigos. Ledot, o feiticeiro... Já foi o meu mestre. Entregou-me seus segredos sob tortura. Von Gelder, esse porco estufado de riquezas... Lutou até o último instante contra meus encantamentos. É o tipo do guerreiro. Sua Excelência, Richard, ex-Ministro do Interior... Scarpia, chefe dos salteadores locais... Marcquis, capitão da polícia... E este é Chauvin, o carrasco-mor, o que quase me executou!...
 
São os símbolos do poder político e militar, escravizados pelo vudu, agindo mecanicamente sob as ordens mentais de Murder Legendre.


Marina Warner, em seu livro Phantasmagoria (2006), um vasto ensaio sobre as representações tecnológicas do sobrenatural e do espiritual, analisa a figura do zumbi, como mais uma projeção do não-humano sobre o humano ou vice-versa. Ao comentar a sedução hipnótica sofrida pela jovem noiva, neste filme, ela diz:
 
Uma espécie de arraigado interesse próprio leva os realizadores de White Zombie a meditar sobre a escravidão e seus desdobramentos, ao mesmo tempo em que evitam os fatos históricos propriamente ditos desse fenômeno. No entanto, embora no nível mais superficial do enredo a noiva enfeitiçada seja a vítima inocente de uma sinistra magia negra, num nível latente ela cai em desgraça quando entra em contato com as forças que governam as atividades daquela ilha; ela perde a lucidez mas não percebe nem admite tomar conhecimento da opressão. É como se o filme dissesse: “Não olhe. Não pergunte de onde vem seu dinheiro. Você não vai suportar a resposta.”
(p. 363, trad. BT)
 
Os filmes de zumbi são muitas vezes alegorias sobre algo que vemos à distância na TV: multidões massacradas, escravizadas, desumanizadas, reduzidas a farrapos humanos. Sem nome, sem memória pessoal, sem memória coletiva, algum tipo de espírito primordial de vingança as levanta da tumba e as conduz à destruição cega de quem se atravessar na sua frente. George Romero e os demais que vieram depois dele (de Lucio Fulci a Wes Craven, de Dan O’Bannon a Jim Jarmusch) ramificaram essa idéia básica em numerosos sub-temas.
 
Bela Lugosi interpretou o vilão deste filme pouco tempo depois de ter criado seu Conde Drácula (em 1931). Se o vampiro é o morto-vivo típico da aristocracia européia, bebendo o sangue dos camponeses das montanhas e dos bosques da Europa Oriental, o feiticeiro vudu, criador dos zumbis, é o seu equivalente nas florestas tropicais e nos canaviais dos engenhos de açúcar.
 
É curioso que a ambientação do Nordeste açucareiro de Gilberto Freyre e José Lins do Rego, tão pródiga em escravos e em histórias de maus tratos, de mandingas e feitiços, não tenha produzido uma literatura de terror apreciável, na linha do que sucedeu com os zumbis haitianos. Talvez porque aqui não tenha acontecido uma revolta sangrenta como a do Haiti na virada do século 18 para o 19, quando foram passados “no fio da faca” os europeus locais, principalmente os franceses. Alejo Carpentier contou um pouco dessa história em O Reino deste Mundo (1949).
 


 
 
 
 





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