quarta-feira, 16 de setembro de 2020

4621) Um escritor de pulp fiction em Paris (16.9.2020)






Existem vários filmes norte-americanos abordando a vida e o meio social dos escritores de pulp fiction, das histórias populares vendidas por um vintém nas bancas. São raros, no entanto, os filmes que mostram esse ambiente em outros países.
 
O Crime de Monsieur Lange (“Le Crime de M. Lange”, 1936), de Jean Renoir, é a história de um escritor de pulp fiction parisiense nos anos 1930.  Vemos nesse personagem aquele misto de idealismo, ingenuidade e persistência de quem cresceu lendo aquele tipo de histórias (ou assistindo-as no cinema) e não pensa em outra coisa.
 
Amédée Lange (René Lefèvre) é um rapaz meio desajeitado, simpático, sonhador, que escreve as aventuras do cowboy Arizona Jim. O filme conta sua trajetória do anonimato para o sucesso... até que uma tragédia corta sua carreira ao meio.
 
Ele assina sem ler um contrato com Monsieur Batala, um editor sem escrúpulos de uma revista de contos policiais, Javert ("Hebdomadário Literário e Policial"), um cara espertalhão, que deve a todo mundo, pega dinheiro de todo mundo, engambela todo mundo. (Eu ia escrever: “engaloba”, mas só os paraibanos me entenderiam.)



Paul Batala, interpretado pelo excelente Jules Berry, é um sujeito melífluo, exuberante, com um sorriso maligno pregado no rosto, cheio de argumentos, cheio de recursos. Mulherengo, dá em cima de todas as funcionárias da editora e da lavanderia que ocupa o mesmo prédio; é aquele canastrão grisalho, cheio de auto-estima, predador de gente indefesa, uma espécie de Michel Temer com o dom da simpatia.


(Lange e Batala, interpretados por René Lefèvre e Jules Berry)

A trama, escrita por Jacques Prévert (um dos grandes poetas franceses de sua época) é leve, de um realismo que se satisfaz com uma coerência de superfície. Jean Renoir era um cineasta daquela linha humanista do cinema francês, um cinema focado em problemas humanos e sociais, sem grandes aprofundamentos psicológicos, sem grandes abismos intimistas (como os que existem em Bergman ou Antonioni).
 
Tinha um olho esperto para o modo como os papéis sociais condicionam as ações das pessoas, de modo que em muitos dos roteiros que filmou a gente vê aquela imprevisibilidade que vem da literatura realista – pensa-se que o personagem vai agir em função do seu “papel social” e ele tem uma atitude independente; ou vice-versa.
 
O Crime de Monsieur Lange é um daqueles típicos filmes franceses dos anos 1930, com personagens “populares”, um tanto rústicos, um tanto espertos, meio ingênuos em termos sentimentais mas nada bobos na vida prática; meio bonachões, meio explosivos, esforçados, determinados, avançando aos tropeções por entre uma sociedade que só valoriza o que eles não têm: dinheiro, sobrenome, sofisticação intelectual.
 
Nesse cinema “humanista”, a câmera de Renoir é um personagem a mais, que se move de maneira tão discreta que não percebemos; acompanha um personagem ou outro, recua para dar espaço a mais gente, afasta-se de lado para revelar um detalhe, percorre o ambiente como se fosse um casal a mais evoluindo num salão de baile, sem esbarrar em ninguém.
 
Este filme tem uma panorâmica famosa, justamente na cena do crime, que ocorre no pátio interno de um desses prédios franceses por onde se entra através de um corredor largo que dá acesso a um pátio ao ar livre, ainda mais largo, de onde se olha para cima e dali se veem as janelas dos apartamentos.


(o plano-sequência do crime)

Na hora do crime, um homem está nesse pátio assediando uma mulher. A câmera os deixa ali e sobe num plano-sequência até o segundo andar, para mostrar através da janela outro homem que sai de uma sala, passa por dentro de outras (sendo mostrado de janela em janela pela câmera que se move na horizontal), desce a escada por dentro do prédio (e a câmera começa a abaixar, do lado de fora). Ele sai pela porta e se encaminha para a direita, onde está o casal; a câmera surpreendentemente vira para a esquerda e descreve um giro quase de círculo completo que se fecha no instante em que ele aborda, de arma em punho, o casal que briga.



(diagrama do movimento da câmera)

A cena me trouxe à memória um uso de espaço bem parecido, na última sequência de O Inquilino (1976) de Roman Polanski, que acontece num pátio exatamente igual; dá a impressão até de ser o mesmo prédio. (Não é; Paris é cheia de prédios assim.) No filme de Polanski, o personagem sobe na janela, ameaçando suicidar-se, e a câmera, mais solta até do que a de Renoir, percorre as janelas, as varandas, os telhadinhos intermediários, onde os vizinhos dele o aplaudem e o encorajam no tradicional “pula, pula!”.
 
Quase todo o filme de Renoir acontece nesse pátio (o título inicial era Sur la Cour, “No Pátio”), pois é um prédio onde funciona a gráfica-editora de Monsieur Batala, uma lavanderia que fornece o contingente feminino (a lourinha Florelle, que faz Valentine Cardès, é de uma vivacidade comovente), e tem alguns moradores envolvidos na trama.


(a redação)

O filme é muito citado nas histórias do cinema por ter sido produzido num esforço conjunto de entidades culturais de esquerda ligadas à Frente Popular. Ao contrário do que seria de se esperar, não tem nenhum comício ideológico, é uma história de gente. O único aspecto político, aliás bem resolvido, é que, quando Monsieur Batala desaparece com a grana da editora e é dado como morto, os trabalhadores se organizam em cooperativa, redobram os esforços, e contam com o valoroso “Arizona Jim” para criar um sucesso editorial sem precedentes.



A pulp fiction é, como dizia Thomas M. Disch revertendo a frase de Shakespeare, “o sonho de que é feito o nosso material”.








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