domingo, 2 de agosto de 2020

4606) Os paradoxos das viagens no Tempo (2.8.2020)





Uma das histórias de paradoxo temporal mais complicadas que eu já li foi também uma das primeiras. A Máquina Infernal do Tempo (“Carrefour du Temps”, 1958) foi escrita por F. Richard-Bessière, um dos meus autores preferidos da pulp fiction francesa, muito traduzida aqui no Brasil nos anos 1960 pela TecnoPrint (Edições de Ouro), pela Vecchi, e por outras editoras.

Nesse livro, Sidney Gordon é um repórter novaiorquino que, junto com amigos, vai cobrir a descoberta de uma nave alienígena acidentada, que caiu em algum ponto dos EUA. Lá, ele entra na nave, que está aberta, e meio distraidamente aciona uma alavanca que tem entre os controles. Pronto. Daí em diante, nada mais no mundo dá certo. Sucedem-se catástrofes inexplicáveis, tipo “deu bug no sistema operacional do Universo”. Bessière é um desses autores pulp que a gente lê porque sabe que no próximo parágrafo qualquer coisa pode acontecer.

Os cientistas chamam Sidney Gordon e explicam que é preciso voltar ao Passado, para evitar que ele cometa aquele ato decisivo. Por motivos que não vêm ao caso, são inúmeras tentativas frustradas. Até que eles decidem voltar a uma época anterior ao nascimento de Gordon, e ele é levado, na máquina do tempo, junto com sua noiva Margaret. E por acaso encontra na rua com o próprio pai, que está voltando para casa, na hora do jantar. E ele percebe, preocupado, que nascerá exatamente daí a nove meses!

E então...

Minha noiva olhou-me espantada.
                – Margaret, acabo de pensar numa coisa horrível. Suponhamos que tenha acontecido uma grave avaria no “Tempojet” e que não nos possam vir buscar.
                Apontei para a casa dos Gordon:
                – De um momento para outro, meus pais vão me conceber. Você percebe em que situação me encontro? De acordo com as teorias de Delamare e de Archie, não pode haver duas cópias do mesmo indivíduo, em curso, na Natureza. (...)
                – Mas o que vai se passar, Syd?
                Eu não estava mais ao seu lado para responder. (...) No momento em que eu desaparecera diante dela, o ser que eu era, modificando bruscamente sua estrutura molecular, uma fração infinitesimal de Tempo, acabava de desaparecer, cedendo lugar a um simples óvulo fecundado, átomo original de um Sidney Gordon em potencial.
(p. 112-113, trad. David Jardim Júnior)

Preciso confessar que em meus verdes anos eu tinha apenas a mais vaga idéia do que acontecia entre os pais da gente para produzir essa coisa meio alienígena chamada de “óvulo fecundado”. Mas uma noção ficou, e ainda hoje me parece uma “escolha de Sofia” para quem escreve FC. Pode, ou não, haver duas cópias do mesmo indivíduo no mesmo Universo?

Essa escolha produz dois tipos de narrativa de FC muito distintos. Dark, a série alemã exibida no Netflix, opta claramente pelo “sim” – e um dos seus principais efeitos dramáticos é o confronto de um indivíduo consigo mesmo, em diferentes fases da vida.

É o caminho tomado por Robert Heinlein, autor de dois contos que são uma espécie de tutorial para quem escreve viagens no Tempo.

O primeiro deles, um clássico de 1941, é “By his Bootstraps”, cujo título, muito citado, alude à raiz do paradoxo temporal. “Bootstraps” são os cadarços das botas, e o paradoxo é comparado a uma pessoa que conseguisse se erguer do chão puxando os próprios cadarços – uma visível impossibilidade. (Muito usado também na teoria econômica, para aludir a economias que se recuperam sem ajuda externa – o trêfego Paulo Guedes usa isso a torto e a direito.)

No conto, Bob Wilson está em casa escrevendo sua tese sobre Metafísica quando de repente aparece um cara igual a ele, dizendo que veio do futuro (“eu sou você amanhã”), e daí a pouco aparece um terceiro Bob... A história tem uma mecânica implacavelmente bem urdida, e tornou-se um clássico porque Heinlein era um autor de raciocínio rigoroso. Os diálogos são vistos primeiro do ponto de vista do Bob-1, que com o decorrer do tempo se transforma no Bob-2, no Bob-3, e cada vez que ele volta a cena é a mesma, só que a consciência de Bob muda a cada vez, porque agora ele sabe o que já aconteceu.

É uma história literariamente tosca, os diálogos são meio Sessão da Tarde, mas enfim: é uma referência necessária, e pode ser lida aqui (o conto foi publicado sob o pseudônimo de "Anson MacDonald"):



Muita gente conhece aquela história popular do cara que vive com o pai viúvo e os dois conhecem uma mulher que vive com uma filha adulta. O rapaz casa com essa mulher. O pai do rapaz casa com a filha da mulher. Os dois casais têm bebês, e o narrador percebe a certa altura que é avô de si mesmo.

Outro conto de Heinlein, “All you Zombies”, publicado dezoito anos depois de "By his Bootstraps", vai ainda mais longe. É a história de um transexual que... bem, são vários paradoxos, mas basta dizer que o protagonista, nessas viagens temporais, engravida a si mesma (pois volta ao passado após a mudança de sexo) e o bebê resultante dessa união é ele mesmo, ou ela mesma.

O conto saiu no número de março de 1959 da revista The Magazine of Fantasy and Science Fiction, e pode ser lido no link abaixo:



Nas duas histórias de Heinlein, ficamos com a idéia de um tempo infinitamente acessível e infinitamente maleável, onde um viajante pode se encontrar consigo mesmo com as consequências mais imprevisíveis.

Essa é a linha do que eu chamo “os Divergentes” – os autores e os contos onde qualquer visita ao passado produz alterações na cadeia temporal e até na vida de quem se transporta de uma época para outra.

A linha oposta é a dos “Convergentes”: nessas histórias, tudo converge para uma versão única do Tempo, a que nós estamos. Qualquer tentativa de mexer com a História é reprimida pelo que em diferentes autores se chama “patrulha do tempo”, “polícia do tempo”, etc. – dando origem até à versão brasileira, a “Intempol”, criada por Octávio Aragão e explorada por numerosos autores. Uma versão brasileira, meio carnavalizada, desse FBI cósmico.


Um bom exemplo dessa tendência de “a História não pode ser mudada” é o conto de Fritz Leiber “Try and Change the Past”. Leiber escreveu uma série de histórias sobre a “Guerra da Mudança” (“The Change War”), onde dois grupos diferentes, as Serpentes e as Aranhas, lutam pelo poder viajando no tempo em todas as direções.

“Try and Change the Past” (publicado em Astounding Science Fiction, março de 1958) mostra o drama de um indivíduo que volta ao passado, ao momento em que sua esposa o matou com um tiro na testa, e faz o possível para que isso não tenha acontecido. O Universo se defende. O Universo faz qualquer contorcionismo para evitar que o Passado seja mudado.

O último parágrafo do conto diz:

Se um estatístico estiver procurando um exemplo de um fato altamente improvável, dificilmente achará um melhor do que a chance de um homem ser atingido por um meteorito. E se somar a isto a condição de que o meteorito o acerte bem entre os olhos, e de maneira a deixar um buraco equivalente ao de uma bala calibre 22, a improbabilidade é astronomicamente elevada ao cubo. Então, como é que alguém pode lutar contra um Universo que acha mais fácil matar um homem dessa forma do que adiar a data de sua morte? (trad. BT)



As histórias de viagem no Tempo são consideradas ficção científica, mesmo que a gente saiba que elas são, à luz da ciência de hoje, absolutamente impossíveis. Eu não creio que um dia seja possível – falo da vida real – viajar no Tempo. No máximo (estou sendo generoso) poderemos mandar sinais, mensagens eletrônicas telegrafadas por algum meio, que possam ser captadas no Passado ou no Futuro. É o tema de outro clássico: Timescape (1980), de Gregory Benford. Mas mandar pessoas, máquinas, espaçonaves?  Como dizia minha tia Adiza: cochila! 

Para mim, o que torna “científicas” as histórias de viagem no Tempo não é a possibilidade de que venham a acontecer. É que escrevê-las requer a criação de uma lógica causal rigorosa, e isto é um dos princípios básicos do nosso pensamento científico. Estabelecer parâmetros ou premissas, e esgotar todas as combinações possíveis – sem violentar os parâmetros. 

O leitor de mentalidade científica acompanha cada desdobramento – em uma série de TV como Dark, por exemplo –,   reconhece o esforço feito pelos autores para obedecer ao rigor do raciocínio, critica quando os autores “saem pela tangente” ou “mandam um 1-7-1”.  O espectador normal, por outro lado, começa a se perder a partir de certa altura, e nesse caso a solidez da dramaturgia precisa compensar os buracos do raciocínio.

São histórias humanas que estão sendo contadas, e a FC é aquilo que Marianne Moore descreveu tão bem: “jardins imaginários onde moram sapos de verdade”.












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