Uma das histórias de paradoxo temporal mais complicadas
que eu já li foi também uma das primeiras. A
Máquina Infernal do Tempo (“Carrefour du Temps”, 1958) foi escrita por F.
Richard-Bessière, um dos meus autores preferidos da pulp fiction francesa, muito traduzida aqui no Brasil nos anos 1960
pela TecnoPrint (Edições de Ouro), pela Vecchi, e por outras editoras.
Nesse livro, Sidney Gordon é um repórter novaiorquino
que, junto com amigos, vai cobrir a descoberta de uma nave alienígena
acidentada, que caiu em algum ponto dos EUA. Lá, ele entra na nave, que está
aberta, e meio distraidamente aciona uma alavanca que tem entre os controles.
Pronto. Daí em diante, nada mais no mundo dá certo. Sucedem-se catástrofes
inexplicáveis, tipo “deu bug no sistema operacional do Universo”. Bessière é um
desses autores pulp que a gente lê porque sabe que no próximo parágrafo qualquer coisa pode acontecer.
Os cientistas chamam Sidney Gordon e explicam que é
preciso voltar ao Passado, para evitar que ele cometa aquele ato decisivo. Por
motivos que não vêm ao caso, são inúmeras tentativas frustradas. Até que eles
decidem voltar a uma época anterior ao nascimento de Gordon, e ele é levado, na
máquina do tempo, junto com sua noiva Margaret. E por acaso encontra na rua com
o próprio pai, que está voltando para casa, na hora do jantar. E ele percebe,
preocupado, que nascerá exatamente daí a nove meses!
E então...
Minha noiva olhou-me espantada.
– Margaret, acabo
de pensar numa coisa horrível. Suponhamos que tenha acontecido uma grave avaria
no “Tempojet” e que não nos possam vir buscar.
Apontei para a
casa dos Gordon:
– De um momento
para outro, meus pais vão me conceber. Você percebe em que situação me
encontro? De acordo com as teorias de Delamare e de Archie, não pode haver duas
cópias do mesmo indivíduo, em curso, na Natureza. (...)
– Mas o que vai se
passar, Syd?
Eu não estava mais
ao seu lado para responder. (...) No momento em que eu desaparecera diante
dela, o ser que eu era, modificando bruscamente sua estrutura molecular, uma
fração infinitesimal de Tempo, acabava de desaparecer, cedendo lugar a um
simples óvulo fecundado, átomo original de um Sidney Gordon em potencial.
(p. 112-113, trad. David
Jardim Júnior)
Preciso confessar que em meus verdes anos eu tinha apenas
a mais vaga idéia do que acontecia entre os pais da gente para produzir essa
coisa meio alienígena chamada de “óvulo fecundado”. Mas uma noção ficou, e
ainda hoje me parece uma “escolha de Sofia” para quem escreve FC. Pode, ou não, haver duas cópias do mesmo indivíduo no mesmo Universo?
Essa escolha produz dois tipos de narrativa de FC muito
distintos. Dark, a série alemã
exibida no Netflix, opta claramente pelo “sim” – e um dos seus principais
efeitos dramáticos é o confronto de um indivíduo consigo mesmo, em diferentes
fases da vida.
É o caminho tomado por Robert Heinlein, autor de dois
contos que são uma espécie de tutorial para quem escreve viagens no Tempo.
O primeiro deles, um clássico de 1941, é “By his Bootstraps”,
cujo título, muito citado, alude à raiz do paradoxo temporal. “Bootstraps” são
os cadarços das botas, e o paradoxo é comparado a uma pessoa que conseguisse se
erguer do chão puxando os próprios cadarços – uma visível impossibilidade.
(Muito usado também na teoria econômica, para aludir a economias que se
recuperam sem ajuda externa – o trêfego Paulo Guedes usa isso a torto e a
direito.)
No conto, Bob Wilson está em casa escrevendo sua tese
sobre Metafísica quando de repente aparece um cara igual a ele, dizendo que
veio do futuro (“eu sou você amanhã”), e daí a pouco aparece um terceiro Bob...
A história tem uma mecânica implacavelmente bem urdida, e tornou-se um clássico
porque Heinlein era um autor de raciocínio rigoroso. Os diálogos são vistos
primeiro do ponto de vista do Bob-1, que com o decorrer do tempo se transforma
no Bob-2, no Bob-3, e cada vez que ele volta a cena é a mesma, só que a consciência
de Bob muda a cada vez, porque agora ele sabe
o que já aconteceu.
É uma história literariamente tosca, os diálogos são meio
Sessão da Tarde, mas enfim: é uma referência necessária, e pode ser lida aqui (o conto foi publicado sob o pseudônimo de "Anson MacDonald"):
Muita gente conhece aquela história popular do cara que
vive com o pai viúvo e os dois conhecem uma mulher que vive com uma filha
adulta. O rapaz casa com essa mulher. O pai do rapaz casa com a filha da
mulher. Os dois casais têm bebês, e o narrador percebe a certa altura que é avô
de si mesmo.
Outro conto de Heinlein, “All you Zombies”, publicado dezoito
anos depois de "By his Bootstraps", vai ainda mais longe. É a história de um transexual que... bem,
são vários paradoxos, mas basta dizer que o protagonista, nessas viagens
temporais, engravida a si mesma (pois volta ao passado após a mudança de sexo)
e o bebê resultante dessa união é ele mesmo, ou ela mesma.
O conto saiu no número de março de 1959 da revista The Magazine of Fantasy and Science Fiction,
e pode ser lido no link abaixo:
Nas duas histórias de Heinlein, ficamos com a idéia de um
tempo infinitamente acessível e infinitamente maleável, onde um viajante pode
se encontrar consigo mesmo com as consequências mais imprevisíveis.
Essa é a linha do que eu chamo “os Divergentes” – os
autores e os contos onde qualquer visita ao passado produz alterações na cadeia
temporal e até na vida de quem se transporta de uma época para outra.
A linha oposta é a dos “Convergentes”: nessas histórias,
tudo converge para uma versão única do Tempo, a que nós estamos. Qualquer
tentativa de mexer com a História é reprimida pelo que em diferentes autores
se chama “patrulha do tempo”, “polícia do tempo”, etc. – dando origem até à
versão brasileira, a “Intempol”, criada por Octávio Aragão e explorada por
numerosos autores. Uma versão brasileira, meio carnavalizada, desse FBI
cósmico.
Um bom exemplo dessa tendência de “a História não pode
ser mudada” é o conto de Fritz Leiber “Try and Change the Past”. Leiber
escreveu uma série de histórias sobre a “Guerra da Mudança” (“The Change War”),
onde dois grupos diferentes, as Serpentes e as Aranhas, lutam pelo poder
viajando no tempo em todas as direções.
“Try and Change the Past” (publicado em Astounding Science Fiction, março de
1958) mostra o drama de um indivíduo que volta ao passado, ao momento em que
sua esposa o matou com um tiro na testa, e faz o possível para que isso não
tenha acontecido. O Universo se defende. O Universo faz qualquer contorcionismo
para evitar que o Passado seja mudado.
O último parágrafo do conto diz:
Se um estatístico estiver procurando um exemplo de um fato altamente
improvável, dificilmente achará um melhor do que a chance de um homem ser
atingido por um meteorito. E se somar a isto a condição de que o meteorito o
acerte bem entre os olhos, e de maneira a deixar um buraco equivalente ao de
uma bala calibre 22, a improbabilidade é astronomicamente elevada ao cubo.
Então, como é que alguém pode lutar contra um Universo que acha mais fácil
matar um homem dessa forma do que adiar a data de sua morte? (trad. BT)
As histórias de viagem no Tempo são consideradas ficção
científica, mesmo que a gente saiba que elas são, à luz da ciência de hoje,
absolutamente impossíveis. Eu não creio que um dia seja possível – falo da vida
real – viajar no Tempo. No máximo (estou sendo generoso) poderemos mandar
sinais, mensagens eletrônicas telegrafadas por algum meio, que possam ser
captadas no Passado ou no Futuro. É o tema de outro clássico: Timescape (1980), de Gregory Benford.
Mas mandar pessoas, máquinas, espaçonaves?
Como dizia minha tia Adiza: cochila!
Para mim, o que torna “científicas” as histórias de
viagem no Tempo não é a possibilidade de que venham a acontecer. É que
escrevê-las requer a criação de uma lógica
causal rigorosa, e isto é um dos princípios básicos do nosso pensamento
científico. Estabelecer parâmetros ou premissas, e esgotar todas as combinações
possíveis – sem violentar os parâmetros.
O leitor de mentalidade científica acompanha cada
desdobramento – em uma série de TV como Dark,
por exemplo –, reconhece o esforço
feito pelos autores para obedecer ao rigor do raciocínio, critica quando os
autores “saem pela tangente” ou “mandam um 1-7-1”. O espectador normal, por outro lado, começa a
se perder a partir de certa altura, e nesse caso a solidez da dramaturgia
precisa compensar os buracos do raciocínio.
São histórias humanas que estão sendo contadas, e a FC é
aquilo que Marianne Moore descreveu tão bem: “jardins imaginários onde moram
sapos de verdade”.
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