“The Murders in the Rue Morgue” é um dos primeiros contos que li de Edgar Allan Poe, e foi na antologia Maravilhas do Conto Policial (Ed. Cultrix, 1960, 3ª. edição), organizada por José Paulo Paes. Fico em dúvida se terá sido antes de “O Poço e o Pêndulo”, também um dos meus preferidos, que li numa antologia do conto norte-americano por essa mesma época.
Tive a chance de traduzir esse conto agora, quase
sessenta anos depois. Claro que o reli várias vezes depois da primeira, tanto
em português quanto em inglês. Mas quando temos a incumbência de traduzir um
conto bem conhecido, vem à nossa mente uma sensação que por causa de Jorge Luís
Borges fiquei chamando “a Síndrome de Pierre Menard”. Pierre era aquele crítico
e escritor francês que tinha lido anos atrás o Dom Quixote e resolveu reescrevê-lo de memória, na esperança de
suas frases coincidissem com as de Cervantes!
Traduzindo a “Rua Morgue” agora, tirei minhas dúvidas
consultando as duas primeiras traduções de Poe que li, na adolescência: aquela
tradução de José Paulo Paes, e depois a de Oscar Mendes e Milton Amado, para a Poesia e Prosa de Poe, pela Editora
Globo. Olhei também a tradução francesa de Baudelaire, fartamente anotada e
comentada por Léon Lemonnier (Paris: Garnier, 1946).
Anotei alguns detalhes que me chamaram a atenção.
1)
Poe faz, no trecho inicial do conto, uma breve
dissertação sobre o pensamento analítico, e diz a certa altura:
The faculty of
re-solution is possibly much invigorated by mathematical study, and especially
by that highest branch of it which, unjustly, and merely on account of its
retrograde operations, has been called, as if par excellence, analysis.
Traduzi assim:
Esse talento para a re-solução pode ser muito fortalecido pelo estudo
da Matemática, especialmente aquele seu ramo mais elevado que injustamente, e
somente por conta de suas operações retroativas, tem sido denominada de
“análise” par excellence.
Poe destaca o prefixo em “re-solution” e nesses casos acho
que convém fazer o mesmo, chamando a atenção para o mesmo detalhe. (JPP traduz:
“A faculdade de resolver”; OM-MA: “Essa faculdade de resolução”, com itálico).
Em todo caso, o ponto principal nesse trecho está quando
o autor se refere às “retrograde
operations” da análise. OM-MA traduzem como “operações retrógradas”, quando
me parece mais esclarecedor usar “retroativas”.
A palavra “retrógrado”, em português, não deixa de estar
correta – em astronomia falamos no “movimento retrógrado de Marte”, naqueles
trechos da órbita da Terra em que a velocidade aparente do nosso planeta é
maior, e o outro parece andar para trás.
Mas essa palavra acabou adquirindo um uso frequente, na
linguagem cotidiana, com conotação moral pejorativa: “Fulano é um sujeito de mentalidade retrógrada; as leis e os costumes
retrógrados desses países; etc.”
Se nos referimos aos processos de análise dos fatos, em
suas relações de causa e efeito, “retroativas” é melhor (é assim que JPP
traduz). Todo este arrazoado inicial de Poe serve para nos predispor a entender
o episódio, que vem em seguida, de quando C. Auguste Dupin adivinha o
pensamento do amigo, enquanto caminham de madrugada, e reconstitui de trás para
diante os pontos sucessivos de sua associação de idéias.
2)
Eu sempre fantasiei nas minhas leituras o primeiro
encontro do narrador (o “watson” de Edgar Poe) com o detetive Dupin numa
livraria, os dois de dinheiro em punho, disputando um livro. Por que?
O conto diz, no original:
Our first meeting was
at an obscure library in the Rue Montmartre, where the accident of our both
being in search of the same very rare and very remarkable volume brought us
into closer communion.
José Paulo Paes traduz:
Nosso primeiro encontro teve lugar numa obscura livraria da Rua
Montmartre…
E Mendes & Amado traduzem:
Nosso primeiro encontro se deu numa escura livraria da Rua
Montmartre...
Foram as duas primeiras traduções do conto que li na
vida. Somente agora, pela primeira vez, esta lebre ergueu as orelhas e emitiu
um miado inconfundível. Porque “library”,
para nós, é biblioteca, e não livraria. Se fosse esse o interesse de Poe ele
teria provavelmente usado “bookshop”.
E me pareceu muito mais redondo o fato de duas pessoas
estarem buscando o mesmo livro “obscuro” numa biblioteca do que numa livraria. “Library” é sempre biblioteca em inglês,
pelo que me consta. É só nas línguas românicas ou latinas que manteve o sentido
de “loja onde se vendem livros”: librairie
em francês, libraria em italiano, librería em espanhol.
Baudelaire
traduz:
Notre première connaissance
se fit dans un obscur cabinet de lecture de la rue Montmartre...
E dei-lhe total razão, não menos pelo fato de que
instantaneamente visualizei a cena no Gabinete Português de Leitura, junto à
Praça Tiradentes. E ficou assim:
Nosso primeiro encontro foi numa obscura biblioteca na Rua de
Montmartre, onde por acaso estávamos ambos à procura do mesmo volume, muito
raro e fora do comum; essa coincidência nos aproximou.
As leituras paralelas que se faz ao longo de uma tradução
nos ajudam a escolher melhor o vocabulário a ser usado, chamando nossa atenção
para detalhes que de outro modo poderiam passar despercebidos.
Dupin, na reta final da história, explica ao narrador o
modo como suas deduções o levaram ao caminho certo, ou seja, a entender de que
modo o assassino, depois de cometer os crimes, pudera fugir do quarto
deixando-o aparentemente trancado por dentro.
Ele reconstitui suas deduções, explica o exame que fez em
cada uma das pistas, e diz a certa altura:
You will say that I
was puzzled; but, if you think so, you must have misunderstood the nature of
the inductions. To use a sporting phrase, I had not been once ‘at fault.’ The
scent had never for an instant been lost.
“At
fault”: diz-se do cão que perdeu o rastro da caça.
Para me distrair, eu estava consultando nas horas vagas
um dos livros mais enriquecedores sobre este tema: The Mystery to a Solution – Poe, Borges and the Analytical Detective
Story, de John T. Irwin (Johns Hopkins University, 1994).
No capítulo 21, ele faz uma análise fascinante deste
conto, comparando as palavras “clue” (“pista, em inglês), “clew” (“novelo de
linha”, em inglês) e “clou” (“prego”, em francês), e reunindo o mito de Teseu e
o Minotauro ao conto de Poe e a “A Morte e a Bússola” de Borges.
E ele chama a atenção justamente para esse trecho de Poe,
mostrando que num sistema quase subliminar, falando em “caça” e em “faro”, Poe
começa a colocar na mente do leitor a idéia de que é um animal, que está sendo caçado. O assassino é um animal, não um
ser humano.
Ficou assim:
Você dirá que eu fiquei desconcertado; mas se pensar assim terá
entendido mal a natureza das induções. Para usar uma frase cara aos caçadores
esportistas, eu não estava “em falta’. Meu faro não havia perdido a pista nem
por um instante.
Não achei nos glossários por aí nenhuma expressão de caça
que pudesse se equivaler a esse “em falta”, acabou ficando uma tradução literal,
meio limitada. Mas deu para me pegar com “scent” e manter viva a metáfora da
“caça ao animal”.
4)
Aqui aconteceu um fato interessante, porque um comentário
feito por Poe em seu texto original poderia até parecer, a um leitor desatento,
ser um comentário interpolado por enchirimento do tradutor.
Referindo-se ao crime bárbaro que é o tema do conto, o
jornal citado por Dupin expressa-se desta maneira:
“The Tragedy in the
Rue Morgue.—Many individuals have been examined in relation to this most
extraordinary and frightful affair” [the word affaire has not yet, in France,
that levity of import which it conveys with us].” (Nota: “affaire” é francês,
“affair” é inglês.)
O texto de Poe é norte-americano, mas se passa em Paris. Ele
provavelmente escolheu a França para dar um “distanciamento brechtiano” a um
conto em que, mais do que a verossimilhança social de um ambiente, importava a
mecânica interna dos acontecimentos (Brecht falava da Alemanha ambientando suas
peças na China, no Cáucaso, na América.)
O texto, portanto, é cheio de expressões e citações
francesas. Quando Poe repete a expressão que teria sido usada por um jornal
francês, “affair”, ele se sente obrigado a fazer uma pausa e explicar, para
seus leitores da Filadélfia em 1841, que a palavra está sendo usada noutro
sentido.
E lembrei que hoje em dia não se pode abrir um portal de
notícias ou uma revista sem encontrar essa palavra em manchetes como “Anitta exibe seu novo affair na Ilha de
Caras”, ou “Neymar e modelo saem
juntos mas negam affair”.
Inglês, francês e português mantêm um toma-lá-dá-cá
permanente de significados e nuances, e não são poucas as vezes em que um
tradutor precisa abrir mão de uma palavra perfeitamente aceitável do vernáculo brasileiro
porque sabe que, naquele ano, naquela década, essa palavra está contaminada de
conotações que farão estourar, mesmo por um segundo, a estrutura-da-bolha-de-sabão
em que se baseia a crença do leitor.
Mais rara ainda é a chance de deixar que o próprio autor faça essas ressalvas em nosso
nome. Ficou assim:
“Muitos indivíduos foram interrogados com relação a este extraordinário
e aterrorizante affair” (a palavra affaire ainda não adquiriu, na França, a
frivolidade de sentido que assumiu em nossa língua).”