(Amsterdam)
Existe uma comparação permanente, em quem comenta livros,
entre a literatura e a arquitetura. Um livro é como um edifício: uma coisa
construída para abrigar gente dentro dela.
Isso fica mais verdade ainda quando a gente pensa em
livros SOBRE edifícios, onde o edifício é, num certo sentido, o personagem de
verdade.
Notre Dame de Paris
(1831) de Victor Hugo é a aventura melodramática e folhetinesca de seus
personagens: a cigana Esmeralda, o capitão-da-guarda Phebo, o corcunda
Quasímodo, o arcediago Frollo. Mas é acima de tudo a história da catedral que
lhe dá o nome.
Falei sobre ela aqui:
Pedaços da história-histórica, por assim dizer, mas
também a história simbólica que a catedral representa. E nem falo aqui da
simbologia alquímica e iniciática que o misterioso Fulcanelli desvendou
parcialmente em O Mistério das Catedrais
(1926). Falo do significado que uma igreja como aquela tem para uma cidade.
Lembro disso quando me vem à lembrança o famoso
comentário de George Orwell sobre a obra de Charles Dickens, quando ele disse
algo como “a arquitetura é mal feita, mas as gárgulas são maravilhosas”. Ou
seja: o conjunto é mal planejado e nem tudo se encaixa, mas os detalhes
(personagens, diálogos, cenas isoladas) valem pelo resto.
Isso deve corresponder a uma das muitas abordagens do
processo criativo, e que eu resumiria assim: tem obras onde se parte do geral
para o detalhe (planeja-se a arquitetura do edifício, e depois vai-se recheando
o bruto com gárgulas), e outras onde se parte do detalhe para o geral
(prepara-se um time inteiro de gárgulas, e à medida que surgem vai-se arranjando
parede onde encaixá-las).
Está cheio por aí de escritores de um tipo e escritores
de outro.
Mas eu ando pensando muito em uma terceira opção
literária, que é a prosa de ficção que não se propõe a ser arquitetônica, não
se propõe a traçar um plano prévio na prancheta, não se propõe a criar um
formato que visto à distância exprima alguma coisa.
São obras que (posso estar errado – mas a impressão que
me dão é essa) vão sendo criadas por acreção, por acrescentamento, e não para
encaixe numa estrutura previamente imaginada. As novelas de cavalaria eram bem
assim: uma aventura, depois outra, depois outra, depois outra, depois outra, o
que faz com que muitos desses romances caudalosos (alguns deles em verso!)
funcionem como livros de contos, embora a unidade de personagens e de tempo
permita vendê-los a preço de romance.
O Dom Quixote,
genial como é, não me parece ter estrutura nenhuma: é um desfile de gárgulas,
uma sucessão linear de situações que de vez em quando se referem a situações
passadas. E só. (Isso não é um defeito – é uma opção estrutural.)
Tem três livros (todos pós-Dom Quixote) que nunca li por inteiro, mas tenho por aqui, e de vez
em quando pego, e só de sacanagem abro ao acaso e pego um começo-de-capítulo,
leio dez ou vinte páginas... Por que?
Porque eu sei que estruturalmente falando é como se nada tivesse
acontecido antes e nada viesse a acontecer depois, mesmo sendo as mesmas
pessoas, os mesmos ambientes, a mesma moldura temporal.
Esses livros são o que eu chamo de “literatura ao rés do
chão”, porque (posso estar enganado) seus autores não fizeram nenhum projeto arquitetônico,
vertical e monumentalista, antes de escrevê-los.
Foi como se a verba de
construir uma nova Notre Dame tivesse saído a prestação. O autor,
impossibilitado de erguer grandes estruturas, fez primeiro um sobrado, depois ao
lado dele uma bodega, depois uma casinha de porta e janela, depois um galpão,
depois outro sobrado, depois uma mansão de gente rica, depois três barracos...
O livro avança assim, linearmente, na horizontal.
Esses livros são: O
Manuscrito de Saragoça (1815) de Jan Potocki, Jacques, o Fatalista, e seu Amo (1786) de Denis Diderot e Tristram Shandy (1759-1767) de Laurence
Sterne.
Veja-se que são praticamente três livros do século 18,
porque até mesmo Potocki, o mais recente, escreveu o dele numa era pré-Hugo,
pré-Balzac, pré-Dickens, pré-Tolstoi.
Romance e conto são dois gêneros estruturalmente
diferentes, por mais que as pessoas pensem que o romance é um conto grande e o
conto um romance pequeno. Não são.
A idéia que temos hoje do romance clássico, no entanto,
tem algo em comum com o conto: é uma história com começo, meio e fim. Há um
conjunto de acontecimentos que surgem, que conduzem a situações capazes de
produzir em nós uma certa curiosidade, expectativa, tensão, sopesamento de
possibilidades, até mesmo ansiedade e suspense, inquietação diante de um
mistério... e num movimento final essas situações se concluem, chegam a um
desfecho, encerram-se com um conjunto de informações novas e satisfatórias.
Nessas histórias “ao rés do chão”, não se vê essa
estrutura. Mesmo o Dom Quixote não
tem resolução dramática de um grande conflito: o personagem tem uma série de
aventuras e acaba morrendo porque todo mundo morre. Não é um círculo que se
fecha, é uma linha reta que meramente se interrompe.
Digo isto fazendo a ressalva de que, não tendo lido
aqueles livros linearmente até o fim, posso não ter percebido algum senso
arquitetônico oculto que eles possam ter. (Diz a crítica que o livro de Potocki
tem um arco narrativo geral, mas evitei pesquisar mais, para não espoliar meu
prazer.)
Mas independentemente destes exemplos, essa literatura
existe, sim – o chamado “Romance Picaresco” ou romance de estradeiro consiste
justamente nesse trajeto linear de aventura em aventura, de episódio em
episódio, sem que nenhum enredo mais amplo esteja sendo composto. É um colar de
peripécias, e o único fio é o trajeto do personagem pelo espaço e pelo tempo,
sem nenhuma missão a cumprir, nenhum mistério a esclarecer, nenhum reino a
conquistar ou resgatar. A vida apenas (disse o poeta), sem mistificação.
(by Tom Gauld)
Essa terceira via na escrita adapta-se bem a nossa vida zapeada de hoje. Muito legal esse texto.
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