O artista plástico Nelson Leirner faleceu recentemente no Rio de Janeiro, com 88 anos. Era uma figura muito conceituada no meio das artes plásticas, mas a primeira referência que eu tive dele foi como autor de ficção científica.
Foram muito importantes para minha geração as publicações
de duas editoras, nos anos 1960: a GRD (RJ), do meu hoje amigo Gumercindo R.
Dórea, e a EdArt (SP), de Álvaro Malheiros.
Juntas elas publicaram algumas
dezenas de títulos de FC traduzidos (Robert Heinlein, Ray Bradbury, H. P.
Lovecraft, Evgeni Zamyátin, etc.) e publicaram numerosos autores nacionais que
vieram a se tornar os grandes nomes da chamada Primeira Onda da nossa FC: André
Carneiro, Rubens Teixeira Scavone, Jeronymo Monteiro e outros.
Uma das publicações mais importantes da EdArt foi a
antologia Além do Tempo e do Espaço – 13
contos de ciencificção (São Paulo: EdArt, 1965).
A antologia já começava com esse neologismo, uma
tentativa de criar um nome em português para uma literatura que, entre nós, era
novidade. “Ciencificção” era uma maneira de tornar o nome próximo da sonoridade
do termo original, “Science Fiction”. Não colou; e não sei dizer agora se foi
usada na capa e nos demais paratextos dos livros da época.
Essa antologia, provavelmente organizada pelo próprio
Álvaro Malheiros, tinha um dos projetos gráficos mais elegantes de toda a nossa
FC, com capa de Luiz Dias e desenhos de Renato José.
Os treze autores
escolhidos eram André Carneiro, Domingos Carvalho da Silva, Antonio D’Elia,
Álvaro Malheiros, Lygia Fagundes Telles, Clóvis Garcia, Nelson Leirner, Ney
Moraes, Nelson Palma Travassos, Jeronymo Monteiro, Nilson Martello, Walter
Martins e Rubens Teixeira Scavone.
O conto de Nelson Leirner intitulava-se “O Espelho”.
A narrativa, na primeira pessoa, começa com a reunião de
vários astronautas num alojamento, enquanto esperam ser designados para as
próximas missões espaciais. Um deles chama-se Enovacs, numa alusão direta ao
autor paulista Rubens Scavone, que usou em algumas obras o pseudônimo “Senbur
Enovacs”.
Enovacs descreve uma viagem que fez a Titã, a lua de
Saturno, e ele descreve uma flor que avistou ali:
Aproximei-me, curvei-me e vi que de perto era ainda mais bela. Uma,
duas, três, quatro, cinco, seis pétalas aveludadas compilando estranhamente uma
luz brilhante. E o bater do vento movimentando a haste docemente fazia com que
a corola traçasse círculos e mais círculos luminosos. (pag. 107)
O Narrador conta então que voou para a Lua, e seu foguete
a certa altura penetrou numa “...gruta
cujas paredes lisas davam a impressão de serem torneadas pelo homem”. Ele
perde contato com a base e logo em seguida vê-se planando num espaço
desconhecido, onde avista um planeta não identificado. Ao descer, ele percebe
que está na Terra – o túnel onde tinha penetrado na Lua o conduziu,
inexplicavelmente, para um deserto na Arábia.
Ele fornece a data exata da viagem: 22 de outubro de
1982. Cruzando o deserto, chega a uma cidade, consegue ir até Riad e pegar um
avião de volta para sua cidade (não diz qual é). Ao desembarcar, vai direto
para sua casa, que parece estar deserta – ninguém atende aos seus chamados na
porta. Os transeuntes passam sem prestar atenção, como se não o vissem. Ele
fica vagando perplexo pela rua, e tem um sonho, onde vai parar numa espécie de
templo, onde as paredes multiplicam a cena de um casamento que ocorre lá dentro:
Vejo meu retrato de casamento. As portas do antigo templo voltam a
abrirem-se e recebem o cortejo que caminha lentamente. Tudo é preto.
Encontro-me cercado por quatro paredes, em cada parede quatro celas, em cada
cela quatro noivas e o teto coberto por enorme espelho. Sessenta e quatro
noivas, dezesseis celas, quatro paredes e o teto coberto por enorme espelho. (pag.
110)
Ao despertar do sonho ele volta à rua onde ninguém ainda
o reconhece, mas uma mulher estranha para ao seu lado e os dois começam a
conversar. Tornam-se amigos. Fazem daquele local um ponto de encontro. O
narrador conjetura:
Talvez um outro “eu” estivesse me substituindo. Talvez esta não era a
descoberta de uma nova rota entre a Terra e a Lua. Talvez tivesse caído em
outro planeta que não fosse a Terra. Talvez estivesse num planeta que fosse o
espelho da Terra. (p. 111)
O narrador está feliz por ter encontrado aquela nova
mulher, e agora se divide entre o impulso de voltar para a Terra original, onde
estão sua esposa e seus filhos, e o de permanecer ali. E ele corta bruscamente
para o foguete, onde volta a percorrer a gruta, e ao emergir dela recupera o
sinal de rádio, o contato com a base, e para lá retorna – para reencontrar o
amigo descrevendo a flor que descobrira em Titã: “... Uma, duas, três, quatro, cinco, seis pétalas aveludadas compilando
estranhamente uma luz brilhante...”
O conto de Leirner tem essa estrutura em que o fim se
cola no começo, anulando o tempo; tem uma prosa intensa e poética, de imagens vívidas,
que compensa o enredo um tanto desconexo – não é uma ficção que traga respostas
claras aos mistérios que propõe. Guarda essa curiosidade de ter sido escrito
por alguém de fora do mundo literário (nos obituários recentes, não vi menção a
nenhum livro de ficção escrito por Leirner), e com razoável competência.
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