Em 3 de dezembro de
1935, o professor Milman Parry e sua esposa Marian fizeram check-in no Palms
Hotel, em Alvarado Street (Los Angeles), onde pretendiam passar alguns dias. Subiram
para o quarto com sua bagagem. Minutos depois, Marian ligou desesperada para a
portaria: o marido tinha sofrido um tiro de arma de fogo e estava agonizante.
Veio a polícia, veio o pronto socorro, mas de nada adiantou. Milman Parry, de
33 anos, morreu a caminho do hospital, com um tiro no peito.
O Departamento de
Polícia de Los Angeles produziu um relatório oficial, pelas mãos dos
tenentes-detetives Ed Romero e B. L. Jones. Eles apuraram que o Prof. Parry
conduzia na mala uma arma de fogo, carregada, envolta numa camisa. A trava de
segurança deve ter se soltado, e ao desembrulhar a arma Parry a detonou
acidentalmente de encontro ao corpo. “Morte acidental”, foi o veredito.
Os anos foram passando
e, como tantas vezes acontecem, dúvidas começaram a surgir. Esse acidente não
era um pouco estranho? Milman Parry teria se suicidado? Brotaram hipóteses de
que ele tinha sido preterido em algumas promoções na Universidade de Harvard,
onde era professor. Surgiram hipóteses de anti-semitismo (por causa da esposa
dele, Marian).
E por que motivo
(alguns perguntaram) um pacato professor de Línguas Clássicas andaria com uma
arma carregada na bagagem?
A explicação da
família foi muito simples. Parry tinha adquirido o costume de andar armado,
porque acabava de chegar de uma estadia de um ano e meio na antiga Iugoslávia,
viajando pelas montanhas e pelo interior, sujeito a assaltos e violências. Aquela
área era um “sertão” onde todo mundo precisava andar armado.
E o que Milman Parry
estava fazendo no sertão da Iugoslávia?
Todo estudioso da
Literatura de Cordel, da Cantoria de Viola e da poesia popular em geral devia
acender uma vela, ao menos uma vez por ano, em homenagem ao Professor Parry.
Nessa estadia de um
ano e meio no sertão iugoslavo, no que hoje chamamos de Sérvia e Croácia, acompanhado
de seu aluno Alfred B. Lord, então com 23 anos, Parry fez o levantamento mais
completo realizado até então da poesia dos rapsodos do sul da Europa, os
“poetas homéricos” como a gente fala coloquialmente.
Essa poesia milenar,
que vem, literalmente, dos tempos de Homero (cerca de 700 anos antes de Cristo),
meio que desapareceu na Grécia, mas sobreviveu na região dos Bálcãs, e foi para
lá que Parry e sua família partiram em meados de 1934, instalando-se em
Dubrovnik. Dessa base Parry começou a viajar para o interior, registrando a
poesia oral dos servo-croatas; Alfred B. Lord juntou-se a eles pouco depois.
Segundo Steve Reece
(v. adiante), a ida dos dois pesquisadores teve um timing perfeito, decisivo para o estudo da poesia oral nos próximos
séculos. Parry e Lord puderam levar consigo um equipamento de gravação
novíssimo, o que chamaríamos agora de “estado da arte”, para registrar poesia
cantada e recitada ao vivo. E puderam encontrar ainda, vivos e lúcidos, poetas
importantes, rapsodos ambulantes que sabiam de cor poemas épicos com milhares
de versos.
Ao voltar para a
Califórnia, eles haviam registrado cerca de 700 mil linhas de poemas cantados
eslavos, mais de 12.500 textos individuais, a maioria por escrito, mas cerca de
750 deles gravados em 3.580 discos de alumínio.
(O poeta Nikola Vujnovic, gravando para o prof. Parry)
Esse material
constitui (com adendos posteriores) “The Milman Parry Collection of Oral Literature”
em Harvard, que hoje está em grande parte acessível online (eu já andei
peruando por lá várias vezes), a partir deste link:
O que Parry e Lord
fizeram deve ter servido de modelo para a façanha da “Missão Folclórica” de
Mário de Andrade, que em 1938 enviou para o Norte e Nordeste brasileiro um
grupo de pesquisadores, com gravadores de fita e máquinas fotográficas, para
registrar a cultura popular de vários Estados. A coleção de CDs lançada pelo
Sesc em 2009 traz um total de 279 faixas gravadas na Paraíba, Maranhão, Pará e
Minas Gerais.
Escrevi sobre esta
Missão aqui:
Milman Parry era um humanista,
interessado em línguas clássicas, em poesia clássica, e disposto a examinar não
apenas as possíveis origens dos poemas homéricos, mas o complexo mecanismo de
criação da poesia oral.
Ele e Lord propuseram
o conceito de uma poesia (estamos falando em poemas longos, de 6 mil, de 8 mil,
10 mil versos) que não é propriamente “decorada”, mas reconstituída de memória
a cada nova performance, valendo-se de fórmulas estruturais que facilitam o
encadeamento das frases e dos episódios.
As perguntas que eles
levaram para as montanhas eslavas, junto com seu gravador e seus cadernos, eram
várias:
Quais são as diferenças cruciais
entre a poesia oral e a poesia escrita? Como é que um poema oral é transmitido
de um poeta para outro? Quais as mudanças que ele sofre durante essa
transmissão? Quais as semelhanças e as diferenças entre duas performances de um
mesmo poeta cantando de novo o mesmo poema? Como a atuação do poeta é
influenciada pela platéia? Qual o efeito da introdução da leitura e da escrita
num ambiente onde predomina a tradição oral?
(Steve Reece, “The Myth of
Milman Parry – Ajax or Elpenor”)
Este longo e bem
pesquisado artigo de Steve Reece, que passei uma tarde lendo, examina a
importância do trabalho de Parry – e de Alfred B. Lord, que após a morte do seu
mestre produziu o livro-bíblia desse assunto, The Singer of Tales (1951), de cuja matéria a Wikipedia dá um bom
resumo aqui:
Lord voltou anos depois
aos Bálcãs, e expandiu suas pesquisas e gravações até a Albânia.
As aventuras dos dois
pesquisadores foi romanceada depois por Ismail Kadaré no livro Dossiê H, já traduzido no Brasil, um
romance curto, de leitura divertida (pelas trapalhadas ficcionais em que se
metem os dois personagens inventados) e instrutiva, porque é cheia de
comentários sobre o ambiente social
daquela poesia. Detalhe da maior importância.
Falei sobre o livro de
Kadaré aqui:
Milman Parry e Alfred
B. Lord têm nos EUA a importância que têm, para nossa cultura, pessoas como
Câmara Cascudo, Leonardo Mota ou Sílvio Romero.
E quanto a mistério da
morte de Parry? Bem, os detalhes são exaustivamente examinados por Steve Reece
nesse artigo que citei aí em cima. Foi acidente mesmo. Arma de fogo é uma coisa
muito perigosa. Pessoas que não têm amor pelas armas aprendem o manejo e param
de manuseá-las; deixam para usar quando o ladrão entrar na casa. Manipulam
aquilo com receio, com desconforto, com desajeitamento. Estão sujeitas a um
acidente bobo.
Até Homero dava os
seus cochilos, quanto mais a gente.
(versos transcritos por Milman Parry)
Munto bão!
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