quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

4545) Minhas Canções: "A Volta dos Trovões" (30.1.2020)



Esta música foi gravada por Elba Ramalho num dos melhores discos da primeira fase de sua carreira, Coração Brasileiro (1983), o disco que marcou também o seu primeiro grande estouro nos shows ao vivo. Foi a época em que o Canecão mandou ampliar suas arquibancadas laterais (reza a lenda) para comportar o público de Elba, porque os ingressos esgotavam com 15 ou 20 dias de antecedência. Não sei se é verdade; o que posso garantir é que todas as noites o show botava gente pelo ladrão, e todas as noites eu estava lá.

Acho que “A Volta dos Trovões” não estava no roteiro deste show; quem estava era “Nordeste Independente”, cuja história já contei em entrevistas até abusar. Mas “A Volta...” era para mim uma das melhores canções da minha parceria com Fuba, e uma gravação que acabou se tornando uma beleza. Sim, porque não são poucas as vezes em que um compositor vê sua música ser gravada de uma maneira completamente avessa ao que ele tinha em mente. Em casos assim acho que deve prevalecer a vontade do intérprete, que tem o direito a sua própria leitura da música. A qual, idealmente, poderá ser regravada e relida dezenas de outras vezes.

“A Volta dos Trovões” foi composta quando eu e Emilia Veras dividíamos com Fuba uma casa em Santa Teresa, perto do Largo das Neves. Muitas canções foram feitas durante o ano e meio, mais ou menos, em que moramos naquela casa da ladeira, no andar térreo, tendo no andar superior a vizinhança circunspecta e editorial de Jorge Chaves, que trabalhava na livraria Leonardo da Vinci.

A melodia, Fuba extraiu primeiro do violão, e passou meses tocando diariamente e abrindo concorrência para uma letra. É um dos casos em que o compositor faz um “monstro”, uma letra provisória e sem sentido que a gente aconchambra com o único propósito de dar apoio à melodia, para a gente cantar melhor e não ter perigo de esquecer. As frases finais das duas estrofes da música, “armas de estrondo e luz” e “a volta dos trovões” tinham suas seis sílabas cantaroladas por nós como “Gira Cascaviou”, que é do mesmo idioma de “Yolesman Crisbeles” ou de “Klaatu Barada Nitko”.

Lembro que nessa época a gente tinha na parede da sala uma foto do olindense Xirumba, mostrando índios deitados na rede. Muitas vezes as visitas lá na casa, que eram frequentes, comentavam historias de índios. Alguém nos contou que numa certa tribo, que ocupava um território muito valioso, um avião passou certo dia em voo rasante e jogou lá de cima, bem no centro da aldeia, várias sacas de açúcar, que estouraram, é claro, ao se chocar com o chão. Segundo essa versão, índios adoram açúcar, e meia hora depois aquilo estava fervilhando com a presença atarefada de todos os indígenas ao alcance da voz, recolhendo todo o açúcar possível.

E então o avião fez o seu segundo sobrevoo, exatamente na mesma rota, e ao passar sobre a aldeia jogou dinamite.

É interessante o choque entre civilizações quando existe não apenas um desnível tecnológico, mas uma irredutibilidade conceitual. Lembro o exemplo do cacique maia que derrubou em batalha o espanhol Pedro de Alvarado e, tendo abatido o cavalo do conquistador, deu-lhe as costas, imaginando (por não serem os cavalos conhecidos no Peru de então) que os dois eram uma criatura só; Alvarado ergueu-se e o matou.

A guerra dos maias contra a tecnologia armamentista dos brancos equivaleria a que?  Pensei: equivaleria a uma hipotética guerra desses brancos contra alienígenas (em vez de indígenas), uma luta já tantas vezes descrita na ficção científica menos ufanista. Não é muito difícil a um escritor de space opera imaginar “matadeiras” high tech que deixem no chinelo as pretensões  belicosas da Humanidade.

Reconheço que na letra da canção não ficou muito claro, mas a primeira visão da letra foi supor uma lenda cíclica, de algum povo nativo e de baixa tecnologia: uma lenda de que um dia, no futuro, gente armada descerá do céu sobre eles, com armas de estrondo e luz, e os derrotará para sempre, ou os dizimará, ou os escravizará.

Isso acontece, os brancos massacram os índios na parte 1 da música. Na parte 2, que começa com “Onça negra caminhou na trilha... vê-se a ocupação da terra dos índios pelos brancos, que não são muito mais gentis do que os “genocidas” do romance de Thomas M. Disch. E os remanescentes dos índios, escondidos em algum desvão da paisagem agro-terraformada, sonham com o momento em que a morte voltará a descer do céu, com ribombos e ofuscação – sobre os moradores atuais.

Foi, pelo que lembro, uma das faixas mais bem produzidas do disco, que é todo muito bom. O arranjo foi de César Camargo Mariano, que chamou os grupos Boca Livre e Céu da Boca para fazerem um vocal ao estilo de um canto indígena.

Do ponto de vista da técnica empregada, foi um desses casos em que a gente pega uma melodia 100% pronta e vai encaixando as sílabas da letra como quem encaixa ladrilhos num mural: de um em um.


***********


A VOLTA DOS TROVÕES  (Elba Ramalho)
(Braulio Tavares e Fuba)


Um tambor amedrontou a mata
quando o dia clareou.
Na clareira respondeu a flauta
um aviso de terror.

Um cacique descobriu pegadas
de um estranho caçador.
Uma tribo foi exterminada
onde o rio avermelhou.

Antes das chuvas,
quando um trovão
tombou das estrelas
e a selva escura
viu brilhar nas mãos de um deus
armas de estrondo e luz...
Como avisou a lenda:
armas de estrondo e luz.


2
Onça negra caminhou nas cinzas
da fogueira que passou.
Gavião voando contra a brisa
viu a mancha do trator.

Sobre o chão onde os pajés dançavam
uma vila se formou.
Todo dia longe ressoava
o machado lenhador.

Dentro da selva
pulsam os corações
dos guerreiros,
esperando a noite
em que os astros vão trazer
a volta dos trovões...
Como promete a lenda:
a volta dos trovões.














domingo, 26 de janeiro de 2020

4544) "Babel-17" (26.1.2020)




Samuel Delany tinha apenas 24 anos quando este romance foi publicado e ganhou o Prêmio Nebula de ficção científica. 

É o prêmio mais “intelectual” da FC norte-americana, votado por escritores, editores e críticos, em comparação ao Prêmio Hugo, mais “popular”, votado por leitores e fãs. E tem mais: ele já havia publicado àquela altura cinco novelas curtas, das quais pelo menos uma (Empire Star, 1966) é de qualidade excepcional.

Babel 17 foi uma porrada na elite dos autores de FC da época porque pegava alguns dos temas, ambientes e truques narrativos da pulp fiction dos anos 1930-40 e da FC mais literariamente consciente dos anos 1940-59. E no meio disso tudo injetava uma overdose de elementos contemporâneos da contracultura da época, dos jovens da época. Quando este livro surgiu, os grandes nomes da FC norte-americana eram Isaac Asimov, Frederik Pohl, Robert Heinlein, Theodore Sturgeon, A. E. Van Vogt – todos na faixa dos 45 anos ou mais. Aos olhos deles, Delany era uma espécie de menino-prodígio.

Babel-17 tem um cardápio habitual nas aventuras de space opera: batalhas espaciais, astronavegação visionária, invasores implacáveis, assassinos de encomenda, piratas galácticos, um espião oculto entre uma tripulação fiel, armas de poder titânico...

Na obra de Delany, o livro tem uma continuidade temática e estilística com Nova (1968), que já comentei aqui no blog. Ambos os livros, aliás, começam com um longo trecho em que o capitão de uma espaçonave caminha pelo submundo de uma cidade espaçoportuária, selecionando tipos extravagantes para compor a tripulação de sua nave – como em tantas aventuras piráticas-marítimas do romance clássico de aventuras.

Nenhum leitor poderia se queixar de temática obscura. Tudo ali é familiar: a humanidade em combate feroz contra um invasor incompreensível, e o herói (no caso, a heroína) que detém uma habilidade única e excepcional, capaz de reverter o equilíbrio da guerra.

Babel-17 é uma das obras fundadoras da New Wave da FC norte-americana da época. Um sinal disto é que deve ser o primeiro romance na história da FC em que a personagem principal é uma poeta, e que ela vence suas batalhas intergalácticas enfrentando uma ameaça de natureza linguística, e não apenas armas nucleares.

Uma poeta bem space opera, em todo caso, porque Delany diz logo no início, sobre a capitã-de-espaçonave Rydra Wong:

Ela era a poeta mais famosa nas cinco galáxias já exploradas.

A suspensão de incredulidade neste caso é necessária, não para admitir a hipótese de que a humanidade já tivesse a essa altura explorado cinco galáxias, mas de que uma poeta fosse famosa em todas elas. Ou seja: é space opera, é puro melodrama, é uma história épica em grande escala onde mais importa o vívido do que o verossímil.

A escala do romance é épica, sim, contando a guerra entre a Aliança e os Invasores, um conflito político descrito assim (com um possível erro de continuidade):

Havia nove espécies inteligentes entre as sete galáxias já exploradas pelas viagens interestelares. Três haviam se unido permanentemente à Aliança. Quatro ficaram ao lado dos Invasores. Duas não se envolveram. (Parte 3, IV).

No meio da guerra aparecem piratas espaciais simpáticos, comandados por Jebel Tarik; piratas estão presentes também em Nova (1968), o romance seguinte do autor. Existem armas de tecnologia ultra-avançada para a época, androides que funcionam como perfeitas máquinas de matar.


Uma aventura de space opera não vale apenas pela grandiosidade e exotismo de sua ação, mas pela capacidade de produzir (como nos melhores livros de Van Vogt, de Edmond Hamilton, de Doc Smith) frequentes flashes de imaginação descritiva, evocando episódios inteiros de aventuras que não serão contadas. Como neste trecho, em que num momento de crise um personagem lembra um perigo por que já passou:

...parado e tiritando de frio nas cavernas ressoantes de Dis onde ficara enclausurado durante nove meses, depois de devorar toda a comida, e mais o cachorrinho de Lonny, depois Lonny, que morrera congelado tentando escalar a encosta de gelo, até que de súbito o planetóide saiu da zona de sombra de Ciclope e o clarão de Ceres explodiu no céu, de modo que quarenta minutos depois a caverna estava inundada por uma água gelada que lhe chegava ao peito. (Parte 4, II)

Essas “ilustrações” brotam (e desaparecem para sempre) no meio de uma ação totalmente diferente, e expandem o universo proposto.  São, nas aventuras espaciais, o equivalente às recordações de guerra de velhos soldados ao pé da lareira, ou de lobos-do-mar num convés noturno, ou de caçadores em volta da fogueira.

São uma figura narrativa essencial ao romance de aventuras. Servem para lembrar ao leitor que a aventura sendo contada não é a única, e que contá-la implica em puxar os fios de muitas outras que ficaram (e ficarão) para trás, pois o mundo do Romance de Aventuras vive do exotismo e do fascínio das coisas extraordinárias que transformam pessoas comuns em pessoas extraordinárias.  

É um mundo futuro onde a cirurgia cosmética avançou a galope, e praticamente todo mundo ostenta algum tipo de enxerto ou deformação estilosa:

“A maior parte deles eram homens e mulheres normais, mas os resultados da cirurgia cosmética eram numerosos, e faziam o olhar de um observador pular de um lado para outro. Criaturas anfíbias ou reptilianas discutiam e gargalhavam com grifos e com esfinges de pele metálica.” (Parte 1, III)

E ao mesmo tempo é um universo onde os personagens comem hamburger e batata frita e ketchup, bebem “ice cola”, compram jornais para saber das novidades. Essa mistura entre imaginação exótica e ambientação banal existe em toda space opera. Em Delany, ela parece menos resultado da pressa ou da preguiça, e sim da intenção consciente de aproximar o futuro ao presente, e ver que tipo de faísca de percepção resulta desse atrito.

Há um capítulo curto e bem humorado (Parte 4, I) em que duas pessoas estão trancadas na cabine de comando, aparentemente fazendo sexo, e um tripulante fica interferindo com perguntas de rotina pelo áudio e recebendo respostas monossilábicas até que encerra dizendo: “Puxa, desculpa aí se eu interrompi alguma coisa.”

A luta entre a Aliança e os Invasores tem no idioma Babel-17 uma de suas armas. William Burroughs dizia que a linguagem é um vírus do espaço exterior. Neste caso, a linguagem é um vírus que um dos grupos em guerra faz infiltrar nas telecomunicações do outro, para desorganizar suas associações de idéias. É curioso que Delany recorre (Parte 5, IV) ao uso de paradoxos para explicar o poder “travador” de uma linguagem – em Alphavile (1965), Jean-Luc Godard usava trechos de poesia para provocar num bug no supercomputador futurista, Alpha 60.

O filme de Godard e o romance de Delany  mantêm aquele equilíbrio instável, bem dos anos 1960, entre cultura erudita e cultura pop, embora o livro seja muito mais “literário” e mais fundamentado em assuntos de linguística (Delany é um dos mais “semióticos” autores da FC) e demonstre muito mais prazer-de-leitor com a FC clássica do que ocorre com Godard.

A primeira edição brasileira deste livro saiu há pouco pela Ed. Morro Branco (SP), com tradução de Petê Rissatti (num volume duplo que inclui o excelente Estrela Imperial), mas meus comentários neste artigo são a partir da edição em inglês ( trechos traduzidos por mim).


(capa da edição brasileira) 





quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

4543) "Parasita": o filme (23.1.2020)





O marxismo criou a expressão “luta de classes” – se não a criou, pelo menos a transformou num utensílio do idioma. Ou seja, uma expressão que qualquer estagiário de redação usa com plena convicção de que sabe do que está falando. Foi o que aconteceu com “trauma” de Freud, “paradigma” de Thomas S. Kuhn ou “quântico” de Max Born.

Não importa quem inventou o termo. Na verdade, nem importa quem o gravou na linguagem popular, um suporte mais duradouro do que o mármore. Importa que após esse ato de nomear uma coisa abstrata ela se torna estranhamente concreta e as pessoas mais variadas (inclusive jornalistas culturais não-remunerados, como eu) se julgam no direito de botá-la no bolso e sacá-la sempre que for preciso.

O motivo deste nariz-de-cera é que pensei em falar do filme coreano Parasita (2019), de Bong Joon-Ho, sob a ótica da luta de classes, mas essa luta não é uma guerra tão nítida quanto – por exemplo – a guerra entre as formigas e os cupins. O que acontece entre os ricos e os pobres é luta, mas em certos aspectos é dança, em outros aspectos é intercurso sexual, em outros é esporte radical, em outros é combinação-contra-o-feda (como se diz na Paraíba), em outros é jogo de cena, em outros é bestialização coletiva...

“Luta”, apenas, não descreve a relação que neste filme une a família rica (os Park) e a família pobre (os Kim). As duas são simétricas: pai trabalhador, mãe atarefada e cheia de angústias, filha lindinha, filho voluntarioso. Dentro deste quadro, cada um dos oito personagens cresce no seu próprio formato, atira-se no caminho sem volta de suas próprias decisões, sejam pensadas ou aleatórias.

A “luta” entre as classes, em termos como estes, tem algo de sedução e algo de estupro, tem algo de convivência pacífica e de vizinhança em-pé-de-guerra, tem algo de libido predatória e algo de nojo controlado. Como se fosse uma luta entre iguais, mas com armamentos distintos.

Não estarei dando nenhum spoiler se disser que, por uma combinação de circunstâncias, a família de favelados consegue empregar um dos seus membros na casa da família rica; e depois, um segundo; e depois, um terceiro... E por aí vai.

O objetivo deles é previsível, e o resultado disso também. Conheço (aqui do lado de fora da tela) dezenas de histórias pitorescas sobre empregados que, no primeiro piscar de olhos dos patrões, aprontam uma, em sua ansiedade de sentir o gostinho do conforto e do consumo.

Quando vou numa casa bem rica, como a arquitetônica moradia da família Park, tenho às vezes a fantasia de que me empreguei ali como mordomo e que, mais dia, menos dia, a família vai passar férias fora e eu ficarei durante uma semana inteira por dono da casa, sozinho. A partir daí, como dizem as sinopses na web, “mayhem ensues”. Instala-se o caos.

É próprio das pessoas de classe baixa essa atitude contraditória com reação à riqueza: admirá-la, sonhar com ela, e, uma vez tendo-a ao alcance, destruí-la de forma pueril e negligente. Porque (aí é minha “mente rica” que interpreta) a gente só dá valor ao que conquistou com esforço, e quando um grupo de gente maltrapilha se apossa de uma adega, de uma despensa, de uma mansão, por que razão deveria tratar aquilo com reverência e parcimônia? O grande exemplo cinematográfico disto é a ceia dos mendigos no Viridiana (1960) de Luís Buñuel.



Parasita é um exemplo interessante da figura narrativa que denomino A Tomada, por inspiração do conto “Casa Tomada” (1951) de Julio Cortázar: uma situação em que pessoas permitem que seu ambiente seja gradativamente invadido, de forma aparentemente casual e pacífica, por pessoas estranhas que de repente tomam o controle de tudo.

Outro exemplo clássico disto é uma história de terror que nada tem de terror, mas que até hoje me dá arrepios quando lembro dela (como ocorreu ao ver este filme). É o conto de Hugh Walpole “A Máscara de Prata” (1932), que incluí na minha antologia Freud e o Estranho – Contos Fantásticos do Inconsciente (Casa da Palavra, 2007).  

Existe algo ominoso, algo cruelmente veraz na sua brutalidade: o vulcão virtual de violência que jaz sob cada jardim gramado onde uma família rica recebe convidados chiques – para uma festa-coquetel, para um casamento ao ar livre, um aniversário de criança...

Neste filme lembrei também, inexplicavelmente, do clássico pouco conhecido da FC, As Esposas de Stepford, livro de Ira Levin, filme de Bryan Forbes. Lembrei do arrepiante almoço-ao-sol no filme Corra! (Get Out) de Jordan Peele, em que um rapaz negro aceita o convite para um fim-de-semana na mansão dos pais da noiva. Neste último caso a lembrança é inevitável, pois vi este e Parasita, por acaso, no mesmo dia.

Todo roteirista pode bem avaliar as possibilidades de variados efeitos quando encaixamos uma cena de festa seguida por uma cena de carnagem. Carnagem é o que cada espectador está esperando ver, por este ou aquele motivo. Parasita é um desses filmes em que numa ocasião social cheia de tensão civilizada começa a se quebrar uma casca com força, e a gente sabe que alguém vai matar alguém de maneira horrenda. O bom é saber isto possível em cada um deles. E quando acontece, a surpresa é igual, a plausibilidade também.

A luta de classes é sempre encarada como o equivalente sociológico ao choque de placas tectônicas. As histórias humanas são as faíscas produzidas por esse atrito. “Luta” é adequado mas “parasitismo entre classes” talvez fosse um termo mais interessante, porque abriria caminho para comparações possivelmente úteis.

As duas famílias também são parasitas das telecomunicações. Tudo que fazem é mediado por selfies, wi-fi, mensagens, videofone, telefonemas, código Morse. Pode-se igualmente dizer que se, como dizia William Burroughs, “a linguagem é um vírus do espaço exterior”, então as web-comunicações são um vírus criado em laboratório e que está nos parasitando até agora.

Opor um núcleo rico e um núcleo pobre significa a possibilidade de jogar com cumplicidades recíprocas, quando convier à história, e antagonismos declarados, quando for o caso. As chanchadas de Oscarito e Grande Otelo não cansavam de arremessar essa dupla de toscos-simpáticos nos ambientes mais granfinos da época. E instalava-se o caos.

Sobre Parasita, declarou o diretor Bong Joon-Ho:

Para pessoas de diferentes condições sociais a vida em conjunto num mesmo espaço não é coisa fácil. É cada vez mais o que ocorre num mundo triste como o nosso: as relações humanas baseadas na co-existência ou na simbiose não podem se sustentar, e um grupo é levado a assumir uma relação parasítica quanto ao outro. No interior de um mundo assim, que poderá apontar seu dedo contra uma família que batalha, uma família travando uma verdadeira briga pela sobrevivência, e chamá-los de parasitas? Eles não eram parasitas desde sempre. Eles são nossos amigos, são nossos vizinhos, nossos colegas de trabalho. Tudo que aconteceu foi que eles foram empurrados por sobre a borda de um precipício. Ao ser a descrição da vida de pessoas comuns que caem numa tragédia inevitável, o filme é: uma comédia sem palhaços, uma tragédia sem vilões, e nele tudo conduz a em enfrentamento violento e uma queda de ponta-cabeça escada abaixo. Estejam convidados a assistir a ferocidade incontrolável desta tragicomédia.




 (poster: Andrew Bannister)

        






domingo, 19 de janeiro de 2020

4542) O parágrafo anunciado (19.1.2020)




É um gancho narrativo dos mais elementares, e que sempre funciona. Por isso mesmo, deve ser usado com parcimônia, porque depois da terceira vez o leitor pensa, meio sem pensar, “ih, lá vem isso de novo”.

Suponhamos o seguinte trecho de um romance:

“Smith deixou as coisas no hotel, lanchou num bar, assistiu um filme, e de noite foi para a orla da praia, onde pessoas caminhavam, andavam de bicicleta, passeavam com as crianças. Ele lembrou da última vez em que ele e Marybelle tinham ido para a casa dos amigos na Flórida.

Marybelle. Fazia tempos que não pensava nela. Há anos que ela sumira de sua vida por completo. (Etc e tal.)”

Mencionar o personagem, e usar o nome como uma espécie de crachá abrindo o parágrafo seguinte, é um procedimento para informar o leitor de que estão saindo do continuum de ação para o de digressão e memória.  

É um clichê narrativo, essa técnica de  abrir assim um parágrafo, anunciando um nome de pessoa, um lugar específico, um fato ou uma época (“Ah, aquelas férias na montanha com os primos!”). Basta isso para que o leitor ressete a bússola mental e acompanhe o novo canal narrativo, sem nenhum percalço.

O leitor acompanha as mais absurdistas das histórias, se a narração delas fizer um sentido minimamente narrativo: aí estão Campos de Carvalho, Robert Sheckley, Ionesco, Jarry. Acontecem somente coisas bizarras, mas o leitor não tem o menor problema em acompanhá-las.  Seu problema é quando a linguagem narrativa funciona de outra forma – como em James Joyce ou como o Catatau de Paulo Leminski, que são fluxos de frases pouco consequenciais.

Leminski... Os dois romances publicados pelo poeta curitibano (Agora é que são elas, Catatau) são muito diferentes, e nenhum dos dois obedece a essa estilística que poderíamos chamar “estilística de best-seller”, se isso não passasse a idéia errônea de que livros assim vendem mais do que os outros. Não vendem. Apenas são livros mais fáceis de entender, porque o autor vai sinalizando o rumo para o leitor, usando artifícios dessa natureza. Artifícios que funcionam como aquelas bandeirolas que o pessoal finca nas trilhas entre terras pantanosas, avisando aos transeuntes: “venha por aqui”.

O leitor precisa de continuidade, precisa saber onde está pisando, mesmo que a paisagem em torno seja de árvores desconhecidas.

O que mais atrapalha um leitor e impede o seu avanço no texto não é uma história difícil de compreender (embora isto possa pesar, é claro). É a sinalização gráfica.

Grande parte dos leitores de José Saramago – me refiro a leitores cultos, experientes – se queixa da sua maneira pouco ortodoxa de usar a pontuação, as letras maiúsculas, a troca de interlocutores (que ele às vezes amontoa num mesmo parágrafo, sem dar sinais muito claros de quem disse o quê).

A prosa de ficção da segunda metade do século 20 nos acostumou a uma série de liberdades. Mas não acostumou todo mundo ao mesmo tempo.

Hoje em dia, muitos leitores conseguem se virar sem muito problema diante de um parágrafo como este:

Cheguei no prédio que me indicaram. O porteiro era um cara grandão, sonolento. Boa tarde, mora aqui Doutor Altamiro? Pode ser e pode não ser. Quem quer falar com ele? Me botou um olhar de buldogue entre o almoço e a sesta. Olhe, ele não me conhece. Diga que é da parte de Felisberto. Ele mexeu no interfone, resmungou baixinho, de propósito, pousou o aparelho de volta. Seiscentos e um.

Existem aí três planos de discurso, a narração “de fora”, a voz de A e a voz de B. Como a cena é bastante clara, é natural esperar que o leitor faça a decodificação sem muito problema. E tem mais uma coisa: como os três planos vêm misturados, é preciso que depois de cada ponto e a cada início de frase o leitor interprete, compare e decida: “ah, agora é fulano quem está falando”. São microdecisões tomadas ao longo da leitura, e isso acaba sendo bom, porque, como diz o pessoal mais tarimbado, evita que o leitor pegue no sono.

O mesmo trecho, numa sinalização gráfica convencional, viria mais ou menos assim:

Cheguei no prédio que me indicaram. O porteiro era um cara grandão, sonolento.

– Boa tarde, mora aqui Doutor Altamiro?

– Pode ser e pode não ser. Quem quer falar com ele? – Me botou um olhar de buldogue entre o almoço e a sesta.

– Olhe, ele não me conhece. Diga que é da parte de Felisberto.

Ele mexeu no interfone, resmungou baixinho, de propósito, pousou o aparelho de volta.

– Seiscentos e um.

Fica mais óbvio, fica mais confortável, mais “conforme o figurino”, porque a sinalização está claríssima. Mas não se pode dizer que o primeiro exemplo está incompreensível. Pelo menos me parece mais fluido do que muitos parágrafos (brilhantes, por outros critérios) de José Saramago.

Saramago... Sua coragem de misturar um português clássico, castiço, e uma sinalização heterodoxa causaram surpresa em muitos leitores, para quem esses dois aspectos se excluíam mutuamente. Mas são combinações desse tipo que marcam um estilo, deixam-no totalmente pessoal – no que isto tem de bom ou de ruim.

E se a história que o autor está contando valer a pena, e se for complicada, e se tiver valores e qualidades como história em si... não custa nada sinalizar, deixar que o leitor perceba sem esforço adicional quem falou, quem respondeu, onde aquilo está acontecendo, se é fato real do momento, se está se passando na memória ou na imaginação do personagem. Pequenas sinalizações. Como faz o metrô, que nunca deixa de avisar o óbvio, sem se preocupar pensando que todo mundo já sabe: Próxima estação, Cinelândia. Desembarque pelo lado direito.

Se a história estiver bem sinalizada, o autor pode arrebatar o leitor para a viagem que bem entender.











quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

4541) "Os Dois Papas" (16.1.2020)






Este filme de Fernando Meireles, que está à disposição no Netflix, é uma experiência curiosa de visão romanceada da realidade.

Chamo de visão romanceada aquela narração de fatos reais, ou supostamente reais, em que o autor descreve as coisas como se elas tivessem de fato acontecido, mas está inventando. Com um enorme grau de liberdade para ousar dizer o que Fulano ou Sicrano estavam pensando naquele momento.

Muitas biografias são escritas assim, e fico sempre com um pé atrás em relação ao que está sendo narrado. Na verdade, não me preocupo muito por mim, porque sempre acho (meio irresponsavelmente, talvez) que sei distinguir entre verdade-dos-fatos e invenção literária.

Me preocupo por causa de outro tipo de leitor, o que acredita em tudo que lê, ao pé da letra. Se numa biografia de Cleópatra for descrito um longo diálogo romântico entre ela e Júlio César, esse leitor imagina que esse diálogo aconteceu mesmo, tintim por tintim.

Esse diálogo foi registrado pelos historiadores da época? Está transcrito, ou pelo menos resumido, nas memórias de Júlio César?  Teve testemunhas?  Se não, é um diálogo romanceado e, por mais verossímil que pareça, não pode ser citado como prova ou indicação de coisa alguma. É ficção, mesmo que seja uma ficção plausível.

O roteirista Anthony McCarten tem uma boa experiência da arte de imaginar os pensamentos alheios – entre vários outros filmes ele escreveu Bohemian Rhapsody, a cinebiografia de Freddie Mercury, e A Teoria de Tudo, cinebiografia de Stephen Hawkings. Suas fontes neste filme atual foram vários pronunciamentos de ambos os Papas, publicados em livros e periódicos, mas as conversas pessoais entre os dois, é claro, não foram divulgadas.

Diz o escritor: “A gente especula sempre. Nossa expectativa é de que essa especulação esteja baseada nos fatos e na verdade, e que sua inspiração seja correta”.

Por outro lado, a tradição de encenar encontros históricos (reais ou fictícios) entre personagens famosos serve mais para fantasiar debates filosóficos ou pessoais do que para obedecer ao rigor historiográfico.

Tem o famoso Encontro de Descartes com Pascal (1985) do dramaturgo francês Jean-Claude Brisvile, que vi no Rio anos atrás, com (se não me engana a memória) Rubens Corrêa como Descartes e Daniel Dantas como Pascal. Há uma outra peça famosa (também filmada) envolvendo diálogos entre dois grandes físicos, que imagino serem Erwin Schrodinger e Werner Heisenberg, mas não consegui localizar.

Para ficar perto do Vaticano, temos também a clássica peça de Julio Dantas, A Ceia dos Cardeais (1902) em que três cardeais idosos (um italiano, um francês e um português) se reúnem para cear e relembrar episódios românticos da juventude.

É um gênero teatral acima de tudo, mesmo que tenha um pé firme na literatura – nos séculos 17 e 18 o “Diálogo” era uma das formas literárias mais importantes, tanto quanto o romance, que começava ainda a adquirir a proeminência que tem hoje.

Histórias assim baseiam-se totalmente na substância do que é conversado e no possível carisma dos personagens (e dos atores, claro).

Eu veria com prazer (imagino) uma peça teatral baseada no famoso diálogo entre o conquistador huno Átila, o “Flagelo de Deus”, e o Papa Leão I, no ano 452.  Reza a lenda que os hunos se dispunham a invadir Roma, e o Papa, nesse encontro a dois, perto do acampamento huno, conseguiu dissuadi-lo – não se sabe como.

O filme de Meireles tem claramente uma tremenda limitação criativa, por tratar de indivíduos ainda vivos e em posições de poder. Mesmo com todos os cuidados que o autor tomou, a imprensa comentou várias imprecisões do roteiro. O peso jornalístico, historiográfico, impede que um filme assim tenha liberdade para imaginar, a menos que se trate de detalhes pouco significativos, embora divertidos, como mostrar o argentino ensinando passos de tango ao alemão, ou os dois comendo pizza, ou assistindo juntos a final da Copa de 2014.

A Igreja Católica Romana continua sendo uma fonte permanente de rituais, conspirações, fantasias, enredos melodramáticos.

Traduzi meses atrás o romance Conclave de Robert Harris, a sair pela Editora Intrínseca. É um thriller político ambientado no Vaticano, narrando todo o processo de eleição de um Papa – processo mostrado com rapidez no filme de Meireles. Com maior liberdade de criação, por não usar personagens reais, o livro é um passeio instrutivo pelos “subterrâneos do Vaticano”, suas intrigas, suas máfias, suas armações e traições.

Um Papa honesto teria que ser alguém como o detetive Philip Marlowe, de Raymond Chandler – um indivíduo honesto num mundo corrompido, sabendo que lhe é impossível mudar esse mundo, mas decidido apenas a não se deixar corromper por ele.










segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

4540) Eu me lembro XVII (13.1.2020)





1.
Eu me lembro que quando comecei a aprender violão, por volta de 1964, o “método” que a gente (eu e minha irmã Clotilde) tinha em casa era o método de Paraguassu, um cantor de valsas e serestas. A capa tinha o desenho de uma rua à noite, imitando a imagem de um violão, onde as seis cordas eram os fios elétricos entre um poste e outro e a boca do violão era uma lua cheia. Depois, ainda nos anos 1960, veio um método emprestado por Zezé Duarte: era o de Américo Jacomino, “Canhoto”, grande compositor de valsas. Eram métodos de violão “pé-duro”, quadrado, baseado numa sequência onde os acordes eram chamados de “primeira”, “acorde” (ou “preparação”), “terceira menor”, “terceira maior”, “segunda” e voltava à “primeira”. Já nos anos 1970 usava-se o método de Paulinho Nogueira, mais moderno, com explicações teóricas bem acessíveis, e acordes dissonantes tipo bossa-nova. O último dessa linhagem de manuais, já no Rio de Janeiro, foi o Dicionário de Acordes Cifrados, de Almir Chediak, que somente a preguiça e a resignação com meus próprios limites me impediu de estudar a fundo. Sou um violonista da escola Erasmo Carlos, que dizia: “Tudo que eu fiz na vida foi com cinco acordes, e acho que estou no lucro.”


2
Eu me lembro do “Bingo do Treze”, um episódio controverso na história de Campina. O Treze realizou um bingo sorteando os prêmios valiosos habituais (eletrodomésticos, e como prêmio principal um carro). O sorteio foi marcado para a noite, em algum ponto do lado do Açude Velho. Pelo que lembro, do lado do colégio S. Vicente de Paula, mas como eu não estava lá posso estar enganado. Milhares de cartelas foram vendidas, havia uma multidão enorme acompanhando a chamada dos números pelos altofalantes. De repente, alguma coisa provocou o estouro da boiada. Dizem que foram tiros de revólver; outros garantem que foi algum sujeito ligando a moto e assustando as pessoas com o barulho. O que eu sei é que houve uma debandada geral, um pânico que durou muito tempo, feriu centenas de pessoas e derrubou dezenas delas na lama do Açude. Nessa noite, a gente estava no terraço de casa, no Alto Branco, e nosso vizinho Zé do Bombo voltou pra casa, descalço e enlameado. Muita gente perdeu sapatos, bolsas, peças de roupa. Durante muitos anos, toda vez que se via alguém com uma peça de roupa extravagante ou descombinada, perguntava: “O que diabo é isso? Achasse no bingo do Treze?...”

3
Eu me lembro que os bingos, aliás, tiveram um surto naquele tempo. Não eram apenas os bingos grandes e profissionais que levavam multidões ao Estádio Municipal, ao Estádio Presidente Vargas ou à Praça da Bandeira. Era o jogo de bingo em casa, com cartelas impressas que a gente comprava na papelaria, ou mesmo com cartelas desenhadas domesticamente com caneta e régua. Os números, também manuscritos, eram puxados de dentro de uma sacola e chamados em voz alta. Minha mãe e minhas tias tinham o costume de marcar os números chamados colocando um caroço de milho em cima de cada um, para poderem reaproveitar a cartela noutro dia. Eu achava aquilo absurdo, porque de vez em quando uma ventania imprevista bagunçava o ritual todo. Havia um código brincalhão para dar animação à chamada dos números. O 44 era “Quá-quará-quaquá”. O 22 era “Dois patinhos na lagoa”, e assim por diante. Uma vez, duas pessoas lá de casa bateram ao mesmo tempo, a gente foi conferir e viu que as duas cartelas tinham números diferentes (poucos coincidiam) mas todos os números de ambas tinham de fato sido chamados, e o último número completou as duas cartelas simultaneamente. Eu não sei calcular as possibilidades matemáticas disso acontecer.

4
Eu me lembro que nos meus 14/15 anos, já estudando no Estadual da Prata, eu tinha o costume de economizar o dinheiro do ônibus para comprar livros e revistas. Na ida, 6:30 da manhã, sempre havia a carona de Frederico, nosso vizinho no Alto Branco, que enchia de garotos “fardados” sua Caiçara (e depois a camionete). Na volta, era cada um por si. Eu poupava avaramente os cobres do lotação, e saindo do Gigantão pegava a rua lateral da Igreja do Rosário (a Rodrigues Alves) e dali seguia uma reta comprida que ia acabar na lateral do Convento das Clarissas, de onde eu rodeava o balde do Açude Novo (àquela época seco, coberto de matagal e lamaçais, muito antes da construção do Parque, por Evaldo Cruz). Passando ao lado do Teatro Municipal, subia a Floriano Peixoto, dava uma olhada nos cartazes do Cine Capitólio e nas bancas de revistas. Pegava geralmente a Marquês do Herval até o Edifício Rique, e descia pela Epitácio Pessoa, seguindo a calçada do Chope do Alemão, até o começo da ladeira descendente da Vigolvino Vanderley. Dali, eu avistava ao longe a colina do Alto Branco e a fileirinha de casas, com a da gente em destaque. Era só descer até o Ponto Cem Réis, cruzar o canal, e subir dali beirando a estrada da Dr. Vasconcelos, virar na Rua José do Ó, passar em frente à casa de Marcelo dos Sebomatos, depois a casa de Umbelino e Severino Brasil, os gramados úmidos da Lavanderia, e chegar finalmente a minha rua. Isso tudo dava uma hora, uma hora e meia de caminhada.

5
Eu me lembro que uma coisa interessante das pessoas tímidas (como eu sempre fui) é que essa introversão compulsiva se rompe às vezes e faz emergir comportamentos não-tímidos totalmente destoantes. Quando eu tinha 9 ou 10 anos e morava na Miguel Couto fui uma vez (forçado por não sei que desespero de véspera-de-prova) estudar na casa de um colega. Coisa que até hoje me apavora, porque sempre acho que vou cometer alguma gafe. Era na rua Solon de Lucena, de modo que talvez o colega fosse Sílvio Coentro, de cujas irmãs Juliana e Silvana fiquei muito amigo depois de adulto. Fui lá, fizemos o dever de casa. E eu notei que no corredor da casa havia uma estante baixinha, de 3 ou 4 prateleiras, cheia de livros, entre os quais inúmeros livros da Coleção Amarela, de livros policiais, da Editora Globo, de Porto Alegre. Na hora de ir embora, tartamudo e gaguejante, perguntei à mãe do colega se eu poderia voltar noutro dia para olhar aqueles livros. Ela respondeu que sim, sorridente e incauta. No dia seguinte falei em casa que ia estudar de novo, rumei para lá, bati, alguma empregada veio à porta, eu disse que tinha vindo olhar os livros, ela me reconheceu, admitiu-me na casa e eu fui direto para a estante, onde me atraquei com uma Agatha Christie qualquer até que a família chegou na hora do jantar, e ficou sem saber direito o que fazer comigo.

6
Eu me lembro da “Hora dos Miseráveis”, que era o nome popular de um momento tradicional dos jogos no Estádio Presidente Vargas: faltando cinco ou dez minutos para terminar o jogo, os portões do estádio eram abertos, para permitir que a torcida começasse a sair, sem muito atropelo. A principal consequência disso era a entrada, com muita gritaria e alvoroço, de algumas dezenas (as vezes centenas) de torcedores sem dinheiro para comprar ingresso, a maioria deles meninos e rapazinhos. Ficavam do lado de fora do estádio o jogo inteiro, acompanhando pelo rádio, e ouvindo a gritaria da torcida. Quando os portões se abriam, eles entravam numa euforia danada, que fazia o pessoal da arquibancada se divertir: “Eita!... Chegou a hora dos miseráveis!...”  Ainda assim, muitos deles, assistindo os minutos finais de um clássico, de um jogo “pegado”, de uma decisão, conseguiram ver de graça alguns lances históricos, de partidas que só foram decididas nos acréscimos – algo que volta e meia está acontecendo no futebol.











domingo, 5 de janeiro de 2020

4539) Minhas canções: "Miragem do Porto" (5.1.2020)




Nas músicas em parceria existe um consenso meio equivocado de que o parceiro “A” faz a letra e o parceiro “B” faz a música. Isso até acontece, mas está longe de ser uma regra.

Muitas das minhas canções com Lenine foram feitas assim, mas muitas outras foram feitas “tudo ao mesmo tempo agora”. Uma sala, duas poltronas, dois violões, duas canetas, duas folhas de papel. Todos dois tocando, cantarolando, rabiscando, procurando rimas, experimentando acordes, treinando levadas, anotando idéias, ao longo de horas. Geralmente com o apoio de garrafas térmicas cheias de uma poção mágica chamada café.

O fato de que Lenine é um excelente letrista e de que eu consigo me virar tocando violão faz com que as músicas muitas vezes sejam na base do “eu fiz 80% da letra e ele fez 80% da música”.

Mesmo assim, há muitas parcerias nossas que sou incapaz de tocar e cantar sozinho, porque apesar de ter dado idéias para a melodia não consigo tocar no violão. Faltam duas coisas que meus parceiros geralmente têm mais do que eu: repertório harmônico na mão esquerda e precisão rítmica na mão direita.

“Miragem do Porto” surgiu de uma toada lenta que Lenine havia composto por encomenda para um trabalho qualquer, não lembro se era a trilha para algum trabalho de TV. Como ele usou uma toada de sextilhas, sugeriu que a gente desenvolvesse mais versos, até pelo fato de que as toadas de sextilhas dos cantadores de viola são melodias anônimas, de domínio público.

Eu peguei os versos que ele tinha feito, ajeitei uma rima aqui, uma palavra ali, e saiu a primeira estrofe, a que fala no navio perdido no oceano.

Para a coisa não ficar repetitiva, usando a mesma melodia (algo que eu faço nas minhas músicas sozinho, que seguem o modelo folk de “mesma música com outra letra”), ele pegou a toada da gemedeira, que é uma sextilha com melodia diferente e o refrão lamentoso “ai ai, ui ui” antes do verso final. E veio assim a estrofe da ilha deserta.

É uma história de amor que não dá certo – o navio que não consegue chegar num porto, e a ilha “onde ninguém quer chegar”.

E aí a gente sentiu que precisava partir para algo diferente, que fosse ao mesmo tempo uma segunda parte e um refrão, sintetizando a idéia. E me veio o trecho de “Ê, lá no mar / eu vi uma maravilha...”, onde ele completou a letra.

Eu chamo isso o “sistema Lennon-McCartney” de compor: um faz a primeira parte da música, o outro faz a segunda. Era assim que os Beatles criavam, e entre muitos autores acho que Ian MacDonald, em Revolution In The Head, é o que melhor descreve esse processo.

John e Paul assinavam juntos mas muitas canções eram 100% de um ou de outro. Raramente um deles entregava uma letra pronta para ser musicada pelo outro, ou uma melodia para ser “letrada”. Muitas vezes, usavam o sistema do “eu faço uma parte, você faz a outra”.

MacDonald analisa exemplos bem claros. Como “We Can Work It Out”, onde Paul fez a parte “Try to see it my way...” e Lennon a parte central de “Life is very short…”.  O caso mais famoso é o de “A Day In The Life”, onde Lennon fez sozinho toda a parte do “I read the news today, oh boy”, e McCartney fez o “Woke up, fell out of bed...”.

Lançada por Elba Ramalho no álbum Encanto (1992),“Miragem do Porto” foi composta nos últimos meses de 1988. Lembro bem disso porque depois da canção estar pronta houve no reveillon carioca o famoso acidente com o “Bateau Mouche”, onde morreram várias pessoas. E eu ficava pensando nos versos, de início tão abstratos: “Quem vai lá no mar bravio não sabe o que vai achar...”.




(BT & Lenine)

Eu sou aquele navio
no mar sem rumo e sem dono
tenho a miragem do porto
pra reconfortar meu sono
e flutuar sobre as águas
na maré do abandono.

Ê, lá no mar
eu vi uma maravilha
vi o rosto de uma ilha
numa noite de luar...
Êta luar, lumiou o meu navio
quem vai lá no mar bravio
não sabe o que vai achar...

E sou a ilha deserta
onde ninguém quer chegar
lendo a rota das estrelas
na imensidão do mar
chorando por um navio
ai, ai, ui, ui
que passou sem lhe avistar.

Ê, lá no mar
eu vi uma maravilha
vi o rosto de uma ilha
numa noite de luar...
Êta luar, lumiou o meu navio
quem vai lá no mar bravio
não sabe o que vai achar...









quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

4538) O autor sem nenhum caráter (2.1.2020)




(Monteiro Lobato)


Eu tinha acabado de comprar um livro na banquinha do sebo e ao passar na calçada de um bar vi alguns braços se erguerem: eram amigos que estavam tomando um chope para comemorar o fim do expediente. Meu expediente só começa pra valer de noite, mas num ato de solidariedade corporativa puxei uma cadeira e mostrei de longe, ao garçom, o indicador erguido.

– Comprou livro? – perguntou um deles, olhando o saco plástico que botei em cima da mesa.

Abri o saco e mostrei: era A Barca de Gleyre, de Monteiro Lobato. Livro de correspondências dele com Godofredo Rangel. Era um dos dez títulos favoritos de Guimarães Rosa.

– Lobato? – disse um deles, dando um gole. – Mas ele não era racista?

O racismo de Lobato acaba de ser descoberto pelas redes sociais, que são uma espécie de confessionário público onde todo mundo vai confessar os pecados alheios.

– E você é machista – respondi. – E nem por isso eu deixo de ler as porcarias que compro naquelas tuas noites de autógrafos, onde não vai ninguém.

Houve uma gargalhada geral, inclusive dele (cujas noites de autógrafos, diga-se de passagem, botam gente pelo ladrão), e ficou por 1x1. Mas a gente entrou num corredor-de-discussão interessante: o fato de um autor cultivar uma filhadaputice qualquer deve riscar a obra dele de nossas leituras possíveis?

No tiroteio da conversa alguém lembrou que William Faulkner era alcoólatra, pecado venial que foi minimizado por todos, com mais uma rodada de chope. Dostoiévsky perdeu fortunas no jogo, lembrou outro; mas desde quando o brasileiro acha que jogo é pecado? Jogo é um esporte nacional, mais generalizado do que o futebol. Céline era antissemita, disse alguém. Eu nunca li Céline, mas não seja por isso: já devo ter lido muitos antissemitas sem saber.

Chegamos a um veredito provisório: pode até existir algum indivíduo-ou-indivídua que não tenha defeitos de caráter, mas essas figuras certamente não serão escritores profissionais. Serão monges ou monjas em algum mosteiro remoto, numa cordilheira onde se fala o sânscrito.

Quem é escritor(a) é porque é humano, demasiado humano. Tem algum defeito de fábrica, e os primeiros da fila são a vaidade intelectual, a autoindulgência afetiva, a propensão para cagar regras e a ânsia de enriquecer sem fazer força. Depois vêm o machismo (em homens e em mulheres), o racismo, o classismo, o voto-do-partido-oposto-ao-nosso...

Não acaba nunca, até porque os defeitos que criticamos nos escritores, agora em 2019, não são necessariamente os mesmos que criticávamos vinte ou trinta anos atrás.

A questão que se coloca para muita gente ansiosa é expressa mais ou menos nesses termos: “Mas como ele pode ser um grande escritor, se em sua vida pessoal ele era um canalha, ou era desonesto, ou era cruel, ou era bajulador de poderosos, ou batia na mulher, ou apanhava da mulher?...”

Ser escritor (artista, etc.), muitas vezes, é um processo de compensação num indivíduo que sabe estar trilhando um caminho nebuloso em outras regiões da vida. Muitos autores de belos poemas sobre a espiritualidade humana derivaram para a religião movidos pelo tormento de se acharem grandes pecadores.  Talvez nem o fossem tanto, aos nossos olhos de 2019. Mas eles sabiam a vida que levavam. Achavam-se culpados de pecados inomináveis, e condenados ao inferno; e procuravam se redimir através da poesia, não pedindo desculpas ou escondendo suas “faltas”, mas lançando ao seu Deus perguntas sérias sobre sua própria condição e a condição humana em geral.

Quem espera de um escritor uma impossível pureza de caráter e uma improvável nobreza de sentimentos está atribuindo ao ofício literário um poder que ele não tem: o poder de servir de modelo para todos nós, para que digamos aos jovens, “olhem só, o Grande Escritor Fulano é assim, procurem ser como ele!”.  Não, não é isso.

Um livro é como uma chapa de raio-X. “Olhem só o estado do pulmão desse rapaz!...” A chapa é tirada para nos dar uma idéia do que acontece com aquela pessoa, e o livro é escrito por uma razão não muito diferente. Não temos que ser como os escritores. Nenhum desses caras deve servir de modelo para nós. Não são santos nem heróis da pátria. Alguns se metem a ser, e acabam se tornando figurões meio patéticos.

A literatura é feita para nos dizer o que somos, e não “como devemos ser”. E o que somos nem sempre é muito agradável ao espelho. Somos monstros? Não, somos até bonitinhos por fora (nas fotos, nos currículos Lattes, nas redes sociais) mas por dentro somos todos quasímodos. Me lembro de um bêbo que me confidenciava, anos atrás: “Rapaz, todo mundo me acha todo certinho, mas por dentro eu sou pior do que uma batida de trem.”

Não era um escritor, era um leitor. "Meu semelhante, meu irmão."