Esta música foi gravada por Elba Ramalho num dos melhores
discos da primeira fase de sua carreira, Coração
Brasileiro (1983), o disco que marcou também o seu primeiro grande estouro nos
shows ao vivo. Foi a época em que o Canecão mandou ampliar suas arquibancadas
laterais (reza a lenda) para comportar o público de Elba, porque os ingressos
esgotavam com 15 ou 20 dias de antecedência. Não sei se é verdade; o que posso
garantir é que todas as noites o show botava gente pelo ladrão, e todas as
noites eu estava lá.
Acho que “A Volta dos Trovões” não estava no roteiro
deste show; quem estava era “Nordeste Independente”, cuja história já contei em
entrevistas até abusar. Mas “A Volta...” era para mim uma das melhores canções
da minha parceria com Fuba, e uma gravação que acabou se tornando uma beleza.
Sim, porque não são poucas as vezes em que um compositor vê sua música ser
gravada de uma maneira completamente avessa ao que ele tinha em mente. Em casos
assim acho que deve prevalecer a vontade do intérprete, que tem o direito a sua
própria leitura da música. A qual, idealmente, poderá ser regravada e relida
dezenas de outras vezes.
“A Volta dos Trovões” foi composta quando eu e Emilia
Veras dividíamos com Fuba uma casa em Santa Teresa, perto do Largo das Neves.
Muitas canções foram feitas durante o ano e meio, mais ou menos, em que moramos
naquela casa da ladeira, no andar térreo, tendo no andar superior a vizinhança
circunspecta e editorial de Jorge Chaves, que trabalhava na livraria Leonardo
da Vinci.
A melodia, Fuba extraiu primeiro do violão, e passou meses
tocando diariamente e abrindo concorrência para uma letra. É um dos casos em
que o compositor faz um “monstro”, uma letra provisória e sem sentido que a
gente aconchambra com o único propósito de dar apoio à melodia, para a gente
cantar melhor e não ter perigo de esquecer. As frases finais das duas estrofes
da música, “armas de estrondo e luz” e “a volta dos trovões” tinham suas seis
sílabas cantaroladas por nós como “Gira Cascaviou”, que é do mesmo idioma de
“Yolesman Crisbeles” ou de “Klaatu Barada Nitko”.
Lembro que nessa época a gente tinha na parede da sala
uma foto do olindense Xirumba, mostrando índios deitados na rede. Muitas vezes
as visitas lá na casa, que eram frequentes, comentavam historias de índios. Alguém
nos contou que numa certa tribo, que ocupava um território muito valioso, um
avião passou certo dia em voo rasante e jogou lá de cima, bem no centro da
aldeia, várias sacas de açúcar, que estouraram, é claro, ao se chocar com o
chão. Segundo essa versão, índios adoram açúcar, e meia hora depois aquilo
estava fervilhando com a presença atarefada de todos os indígenas ao alcance da
voz, recolhendo todo o açúcar possível.
E então o avião fez o seu segundo sobrevoo, exatamente na
mesma rota, e ao passar sobre a aldeia jogou dinamite.
É interessante o choque entre civilizações quando existe
não apenas um desnível tecnológico, mas uma irredutibilidade conceitual. Lembro
o exemplo do cacique maia que derrubou em batalha o espanhol Pedro de Alvarado
e, tendo abatido o cavalo do conquistador, deu-lhe as costas, imaginando (por
não serem os cavalos conhecidos no Peru de então) que os dois eram uma criatura
só; Alvarado ergueu-se e o matou.
A guerra dos maias contra a tecnologia armamentista dos
brancos equivaleria a que? Pensei:
equivaleria a uma hipotética guerra desses brancos contra alienígenas (em vez
de indígenas), uma luta já tantas vezes descrita na ficção científica menos
ufanista. Não é muito difícil a um escritor de space opera imaginar “matadeiras” high tech que deixem no chinelo as pretensões belicosas da Humanidade.
Reconheço que na letra da canção não ficou muito claro,
mas a primeira visão da letra foi supor uma
lenda cíclica, de algum povo nativo e de baixa tecnologia: uma lenda de que um
dia, no futuro, gente armada descerá do céu sobre eles, com armas de estrondo e
luz, e os derrotará para sempre, ou os dizimará, ou os escravizará.
Isso acontece, os brancos massacram os índios na parte 1
da música. Na parte 2, que começa com “Onça negra caminhou na trilha... vê-se a
ocupação da terra dos índios pelos brancos, que não são muito mais gentis do
que os “genocidas” do romance de Thomas M. Disch. E os remanescentes dos
índios, escondidos em algum desvão da paisagem agro-terraformada, sonham com o
momento em que a morte voltará a descer do céu, com ribombos e ofuscação –
sobre os moradores atuais.
Foi, pelo que lembro, uma das faixas mais bem produzidas
do disco, que é todo muito bom. O arranjo foi de César Camargo Mariano, que
chamou os grupos Boca Livre e Céu da Boca para fazerem um vocal ao estilo de um
canto indígena.
Do ponto de vista da técnica empregada, foi um desses
casos em que a gente pega uma melodia 100% pronta e vai encaixando as sílabas
da letra como quem encaixa ladrilhos num mural: de um em um.
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A VOLTA DOS
TROVÕES (Elba Ramalho)
(Braulio Tavares e Fuba)
Um tambor amedrontou a mata
quando o dia clareou.
Na clareira respondeu a flauta
um aviso de terror.
Um cacique descobriu pegadas
de um estranho caçador.
Uma tribo foi exterminada
onde o rio avermelhou.
Antes das chuvas,
quando um trovão
tombou das estrelas
e a selva escura
viu brilhar nas mãos de um deus
armas de estrondo e luz...
Como avisou a lenda:
armas de estrondo e luz.
2
Onça negra caminhou nas cinzas
da fogueira que passou.
Gavião voando contra a brisa
viu a mancha do trator.
Sobre o chão onde os pajés dançavam
uma vila se formou.
Todo dia longe ressoava
o machado lenhador.
Dentro da selva
pulsam os corações
dos guerreiros,
esperando a noite
em que os astros vão trazer
a volta dos trovões...
Como promete a lenda:
a volta dos trovões.