O furto de um verso alheio é lugar-comum na história da cantoria. Todo cantador, na hora do aperto, recorre à memória, tal como um jogador de futebol recorre ao puxão na camisa do adversário.
Em grande número dos casos, contudo, as evidências concretas
são poucas. Alguém na platéia pensa: “eu
acho que já ouvi esse verso.” Trata-se de acreditar na memória e na honestidade
de "A" , ou então na de "B".
O mais comum é o furto de uma idéia. Uso a palavra "furto" aqui no
sentido mais benevolente possível.
Furto, em poesia, é a apropriação não-prejudicial de algo que, nas
circunstâncias, era mais necessário ao furtador do que ao furtado.
Em literatura o que importa é o que se faz com o que se
furta. "Copiar o alheio,
melhorando-o" poderia muito bem ser o lema de muitos grandes autores que
furtaram cenas, ou enredos inteiros, a outros de menor talento, cujo nome só
assim escapou da poeira do anonimato.
Veja-se um exemplo de idéia bem aproveitada, a sextilha atribuída
por alguns autores a Severino Pinto, o "Pinto do Monteiro" (Francisco
Linhares e Otacílio Batista a atribuem a Domingos Tomás na Antologia
Ilustrada dos Cantadores, pag. 83):
Cantar com cantador ruim
é viajar pela pista
num pau-de-arara sem freio
com um chofer ruim de vista,
e mais um doido gritando:
"Atola o pé, motorista!"
Esta é uma sextilha da maior competência. Veja-se o excelente uso da linguagem
coloquial: "pista" é como se chama, no Nordeste, uma rodovia
qualquer; “atola o pé!” equivale a “pé na tábua!”.
Depois, a tragicômica verossimilhança desse caminhão e desse
chofer, dos quais as estradas nordestinas vivem repletas, principalmente em dia
de feira.
E, por fim, o clímax de nonsense plausível, onde um
doido grita a frase milhares de vezes ouvida nos ônibus urbanos nordestinos,
apinhados, sacolejantes, quando fazem curvas e cantam pneus, por entre vaias,
aplausos, apupos e gritos de incentivo da galera.
Ora, o cantador Manoel Francisco cantava em Patos com um
colega, o qual terminou assim a sextilha:
(...)
Aqui em Patos eu gosto
de cantar com Zé Batista,
que na cidade está sendo
o maior radialista.
Vai ver que esta rima final trouxe à memória de Manoel
Francisco a sextilha antiga, porque ele, improvisadamente ou não, saiu-se com
esta:
Cantar com José Batista
é vir num carro de feira,
com o motorista bêbado
e o carro em toda carreira,
e mais uma doida em cima
cantando "Mulher Rendeira".
Excelente sextilha. O
Zé Batista virou José Batista por conveniência da métrica mas sem perda do
sentido; e a sextilha é uma paráfrase rigorosa da outra. O "pau-de-arara" vira "carro
de feira", termo igualmente cotidiano.
O "chofer ruim de vista" vira "motorista bêbado", o
caminhão "sem freio" vira, numa boa aliteração, um "carro a toda
carreira", e os dois versos finais nos atiram para um nonsense que
paga bem o verso de Pinto ou de Domingos.
Suponhamos (com a mesma liberdade imaginativa dos exegetas
de Marcel Proust ou de James Joyce) que o primeiro poeta tirou sua sextilha do
nada, e Manoel Francisco tentou imitar o que ele dissera.
Pode-se estabelecer entre os dois uma hierarquia como
repentistas, e estabelecer que o primeiro foi superior, porque fêz num instante
o que o outro ficou matutando e construindo com vagar.
Pode-se também dizer que Manoel Francisco apenas ilustrou
com imagens diferentes uma idéia central que talvez não tivesse talento para
criar. Mas não se pode negar que,
meramente transcritas, e colocadas anonimamente lado a lado, as duas sextilhas
se equivalem. É um desses casos em que
a cópia é tão boa quanto o original, e a precedência cronológica é o único
critério de desempate possível entre as duas.
E que Manoel Francisco poderia invocar para si a desculpa dada ao longo
dos séculos por tantos artistas: “Não é imitação, é aperfeiçoamento...”
A verdade é que existem casos em que o fato de ser um
"repente" transforma em obra-prima um verso que literariamente seria
apenas banal; mas pode-se dizer também
que, por outro lado, a riqueza literária do produto final pode tornar
irrelevantes as circunstâncias em que foi composto.