sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

4425) O pau-de-arara sem freio (18.1.2019)



O furto de um verso alheio é lugar-comum na história da cantoria. Todo cantador, na hora do aperto, recorre à memória, tal como um jogador de futebol recorre ao puxão na camisa do adversário.

Em grande número dos casos, contudo, as evidências concretas são poucas.  Alguém na platéia pensa: “eu acho que já ouvi esse verso.” Trata-se de acreditar na memória e na honestidade de "A" , ou então na de "B".  

O mais comum é o furto de uma idéia.  Uso a palavra "furto" aqui no sentido mais benevolente possível.  Furto, em poesia, é a apropriação não-prejudicial de algo que, nas circunstâncias, era mais necessário ao furtador do que ao furtado. 

Em literatura o que importa é o que se faz com o que se furta.  "Copiar o alheio, melhorando-o" poderia muito bem ser o lema de muitos grandes autores que furtaram cenas, ou enredos inteiros, a outros de menor talento, cujo nome só assim escapou da poeira do anonimato.

Veja-se um exemplo de idéia bem aproveitada, a sextilha atribuída por alguns autores a Severino Pinto, o "Pinto do Monteiro" (Francisco Linhares e Otacílio Batista a atribuem a Domingos Tomás na Antologia Ilustrada dos Cantadores, pag. 83):

Cantar com cantador ruim
é viajar pela pista
num pau-de-arara sem freio
com um chofer ruim de vista,
e mais um doido gritando:
"Atola o pé, motorista!"

Esta é uma sextilha da maior competência.  Veja-se o excelente uso da linguagem coloquial: "pista" é como se chama, no Nordeste, uma rodovia qualquer; “atola o pé!” equivale a “pé na tábua!”. 

Depois, a tragicômica verossimilhança desse caminhão e desse chofer, dos quais as estradas nordestinas vivem repletas, principalmente em dia de feira. 

E, por fim, o clímax de nonsense plausível, onde um doido grita a frase milhares de vezes ouvida nos ônibus urbanos nordestinos, apinhados, sacolejantes, quando fazem curvas e cantam pneus, por entre vaias, aplausos, apupos e gritos de incentivo da galera.

Ora, o cantador Manoel Francisco cantava em Patos com um colega, o qual terminou assim a sextilha:

(...)
Aqui em Patos eu gosto
de cantar com Zé Batista,
que na cidade está sendo
o maior radialista.

Vai ver que esta rima final trouxe à memória de Manoel Francisco a sextilha antiga, porque ele, improvisadamente ou não, saiu-se com esta:

Cantar com José Batista
é vir num carro de feira,
com o motorista bêbado
e o carro em toda carreira,
e mais uma doida em cima
cantando "Mulher Rendeira".

Excelente sextilha.  O Zé Batista virou José Batista por conveniência da métrica mas sem perda do sentido; e a sextilha é uma paráfrase rigorosa da outra.  O "pau-de-arara" vira "carro de feira", termo igualmente cotidiano.  O "chofer ruim de vista" vira "motorista bêbado", o caminhão "sem freio" vira, numa boa aliteração, um "carro a toda carreira", e os dois versos finais nos atiram para um nonsense que paga bem o verso de Pinto ou de Domingos.

Suponhamos (com a mesma liberdade imaginativa dos exegetas de Marcel Proust ou de James Joyce) que o primeiro poeta tirou sua sextilha do nada, e Manoel Francisco tentou imitar o que ele dissera. 

Pode-se estabelecer entre os dois uma hierarquia como repentistas, e estabelecer que o primeiro foi superior, porque fêz num instante o que o outro ficou matutando e construindo com vagar. 

Pode-se também dizer que Manoel Francisco apenas ilustrou com imagens diferentes uma idéia central que talvez não tivesse talento para criar.  Mas não se pode negar que, meramente transcritas, e colocadas anonimamente lado a lado, as duas sextilhas se equivalem.   É um desses casos em que a cópia é tão boa quanto o original, e a precedência cronológica é o único critério de desempate possível entre as duas.  E que Manoel Francisco poderia invocar para si a desculpa dada ao longo dos séculos por tantos artistas: “Não é imitação, é aperfeiçoamento...”

A verdade é que existem casos em que o fato de ser um "repente" transforma em obra-prima um verso que literariamente seria apenas banal;  mas pode-se dizer também que, por outro lado, a riqueza literária do produto final pode tornar irrelevantes as circunstâncias em que foi composto.













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