“A Roda do Tempo” não é minha primeira parceria com Lenine, que hoje talvez seja o parceiro com quem compus a maior quantidade de músicas gravadas. Outras vieram antes; mas esta foi nossa primeira música gravada por Elba Ramalho, minha eterna “madrinha”. Num momento importante para nós dois, numa dessas fases recorrentes em que você faz uma montanha de canções e ninguém se interessa por elas.
Foi composta no final de 1988, e gravada por Elba em 1989
no álbum Popular Brasileira, tendo
Lenine participado da gravação tocando viola.
Na época a gente tinha umas idéias para composições mais
complexas, que sempre avançavam mas não chegavam a lugar nenhum.
Lenine era, e é ainda, muito influenciado pelo universo
musical do “Clube da Esquina” mineiro: harmonias complexas, melodias difíceis,
letras introspectivas. E eu sempre tive o sonho (típico de quem foi adolescente
na década de 1960) da “música pra ganhar festival”. Canções complexas em forma
de suíte de 4 ou 5 partes sucessivas, com letras épicas, ritmo arrebatador.
E tome música que ficava pela metade!
Nosso objetivo era ter músicas gravadas por alguém, pois
era no tempo em que discos vendiam muito. Ter uma música gravada por uma
artista como Elba significava ter alguns meses de sobrevivência garantida,
naquela época pré-filhos.
Aí resolvemos “ir às bases”. Fazer uma música de Jackson do Pandeiro. Não
uma imitação, mas usar as formas melódicas, as levadas rítmicas, o vocabulário poético
usado por Jackson e seus compositores.
“A Roda do Tempo” foi uma dessas tentativas, e para mim
foi bem sucedida, porque foi logo gravada. É aquela levada “tun-dun-dun” que eu
chamo de “marcha quadrilha”. Jackson do Pandeiro chamava “marcha de arrasta
pé”.
Pelo que me lembro, Lenine foi puxando a levada no violão
e eu fui anotando quintilhas no papel. Chamo de “quintilhas” aquelas estrofes que
na Cantoria de Viola são chamadas de Mourão
de 5 Linhas, rimando ABCCB. E lembro que concordamos em ter um
“responsório” depois dos primeiros versos, numa época em que a banda de Elba
contava sempre com dois ou três vocalistas de apoio.
Daí veio:
Diz que o tempo é um mistério (deixa falar)
que cura qualquer paixão (deixa falar)...
Quem disse não conhecia
essa dor que noite e dia
martela meu coração.
Esse “deixa falar” (que retorna com variantes nas
estrofes seguintes) está dentro daquele jogo de toma-lá-dá-cá entre o cantor
principal e o coro, algo típico da música popular em geral, mas que Jackson do
Pandeiro explorou com riqueza de variantes. E não só ele, aparece muito nas
canções de Marinês (“Olê Laurindo”, “Balanceiro da Usina”), Trio Nordestino
(“Na Emenda”), Genival Lacerda (“Noé, Noé”) e assim por diante.
Uma parte dessas letras é feita na base do clichê, da
frase já conhecida, das frases falando em coração, amor, que vão se emendando
por causa da rima e do encaixe na cadência. Têm a mesma intenção poética que um
pão-com-manteiga tem de intenção culinária.
Como dizia John Lennon de suas composições pré-“Help”: “Era só besteira,
a letra não dizia nada, o que importava era a levada, o som”.
Nem sempre. Relendo agora a segunda estrofe, lembro que
era um tempo em que eu estava lendo sobre Tarô, mais precisamente o livro Jung e o Tarô de Sallie Nichols.
A imagem que me vem à cabeça quando penso nesta música é
a capa da edição original de Cem Anos de
Solidão de Garcia Márquez, capa de Carybé onde aparecem cartas de Tarô:
E veio certamente daí o verso que para mim é o verso
principal da canção, que lhe dá o título, e que exprime (lá vou eu agora
psicanalisar a mim mesmo!) a idéia que existe por trás dela.
A roda do tempo gira (deixa girar)
para a frente e para trás (deixa girar)
meu baralho eu já tracei
se você jogar um rei
eu tenho que jogar um ás.
A roda do tempo, que gira para a frente e para trás, é a
mesma “Roda da Fortuna” do Tarô, que roda para cima e para baixo ao mesmo
tempo. A roda da “Fortuna = Sorte, Destino”, e também “Fortuna = Riqueza, Dinheiro”.
A roda que, infalivelmente, rebaixa uns para poder elevar outros. Uns
empobrecem para que outros possam enriquecer. Ou como disse Chico Science, “o
de cima sobe, e o de baixo desce” (até certo ponto do ciclo, pelo menos).
Essa idéia não é muito clara para algumas pessoas. Se
você perguntar: “Num carro que anda normalmente na rua, as rodas dele estão
girando para a frente ou para trás?”, as pessoas em geral respondem que
obviamente as rodas estão girando para a frente, já que o carro está avançando.
E no entanto a resposta científica seria: “Cada roda está girando ao mesmo tempo para
a frente, em seu semicírculo superior, e para trás, em seu semicírculo
inferior, mas o carro só avança porque o semicírculo de baixo, o que toca no
chão, está girando para trás, e, exercendo pressão sobre o solo nessa direção,
impele o carro para a direção oposta, ou seja, para a frente”.
Os versos seguintes recorrem às cartas do baralho/tarô,
com esta imagem: Qual é a carta mais poderosa: o ás ou o rei? Resposta: depende
do jogo, porque esses valores de qualquer carta são atribuídos na natureza de
cada jogo. A disputa mais interessante, contudo, é justamente entre a primeira
carta, o ás, e a última, o rei. Se alguém perguntar: “Qual é a carta que, numa
escala ascendente, vem depois do rei?” eu respondo: “O ás – num patamar
superior”.
Aí vem a segunda parte da canção, ou parte intermediária:
Eu me criei escutando a melodia
da ventania castigando a beira-mar
me acostumei no tombo da ribanceira
quem sabe subir ladeira não tem pressa de chegar.
Esse trecho não tem nenhuma viagem esotérica, mas tem um
detalhe biográfico divertido. Nessa época eu morava na rua Tavares Bastos, no
Catete, e Lenine na São Sebastião, na Urca. Nenhum dos dois tinha carro.
Tínhamos, em função do trabalho, um acordo de cada um ir na casa do outro,
alternadamente. Eu saltava do ônibus perto da antiga TV Tupi e subia a São
Sebastião; na vez dele, ele saltava na Rua do Catete e subia a minha rua.
Quem sabe subir ladeira não tem pressa de chegar. Pode
ser uma metáfora para a vida de compositor, não é mesmo?
E aí vêm as estrofes finais:
Quem pensa que o céu é perto
(deixa pensar)
e é só estender a mão (deixa
pensar)
fica mal acostumado
vive com o braço esticado
e os pés fora do chão.
Mas a vida vai passando (deixa
passar)
como o céu muda de cor (deixa
passar)
cada curva do caminho
me leva devagarinho
mais perto do teu amor.
A estrofe de cima eu furtei de um mote antigo, que já dei
em cantorias de pé-de-parede: “Quem pensa que o céu é perto / morre com o braço
esticado”. E o resto da letra exprime aquela sensação do cara que, depois de
uma tarde de trabalho (e uma música pronta, letra dobradinha no bolso da
camisa) volta a pé, satisfeito, dever cumprido, pra jantar em casa.
A gravação original de Elba:
Excelente texto, professor Bráulio!
ResponderExcluirO senhor tem algum e-mail?