(fotos BT)
Canudos Contado e Vivido
é um título mágico na minha memória. Creio que era assim o nome de uma peça
teatral que nunca li, escrita por Iremar Maciel, o presidente e uma das
principais cabeças pensantes do saudoso Cineclube Glauber Rocha, de Campina
Grande.
Iremar (que não vejo há muitos anos) sempre foi um poeta
talentoso e um obervador crítico da História. Eu tinha de 16 para 17 anos
quando ouvia falar nessa peça dele, que me despertava ainda mais o desejo de
ver Deus e o Diabo na Terra do Sol de
Glauber: as ressonâncias profundas da palavra “Canudos” começaram nesse tempo,
e não pararam até hoje.
Se bem que com 11 ou 12 anos eu já tinha lido o romance A Aldeia Sagrada, de Francisco Marins,
um livro que venho recomendando insistentemente ao longo da vida inteira, para
aqueles que recuam com timidez diante de Os
Sertões de Euclides.
É a história de um menino sertanejo cujo pai abandona o
lar para seguir Antonio Conselheiro. O garoto, assustado, raivoso, saudoso,
desorientado, foge de casa e cruza o sertão (e a batalha) para entrar no
Arraial e reencontrar o pai. Um livro humano e sofrido, onde História e ficção
se misturam num mesmo impulso.
Dias atrás, fui ao sertão de Canudos para participar da I
Festa Literária de Uauá, a convite do poeta Maviael Melo. Participei de uma
mesa sobre poesia popular, ao lado dos poetas Jéssica Caitano (cuja metralhadora
verbal eu já vira à frente do grupo Radiola Serra Alta, de Triunfo), Bule-Bule
(amigo e mestre de longa data) e Nelson Maca, que conheci em São Paulo,
recitando, agitando, desafiando o coro dos contentes.
Por entre shows musicais de amigos como Maciel Melo,
Siba, Em Canto e Poesia e outros, acabei descolando uma ida ao Parque Estadual
de Canudos, mantido pela Universidade do Estado da Bahia (Uneb).
E lá fomos “no pingo do meio dia”, eu, Hudson Silva
Santos, Marcos Melo e Flávia Helena, todos noviços, todos indo pisar pela
primeira vez o “chão sagrado”, guiados pelas instruções precisas do Prof.
Roberto Dantas, da Uneb.
Canudos é um arquétipo sempre energizado e pulsante a
provocar nossa reflexão dolorida sobre as raízes sangrentas do Brasil. Isso
ficou comprovado mais uma vez este ano na Flip, em Paraty, um evento que
começou como uma vitrine do Brasil Oficial e está se deixando ocupar cada vez
mais pelo Brasil Real. Até casa do Cordel teve este ano.
Canudos não foi a primeira, e talvez nem tenha sido a
maior chacina de revoltosos em nosso país. Tornou-se símbolo e modelo por causa
de um Livro. Foi uma das primeiras ocasiões em que a recém-nascida república
militarista meteu os pés pelas mãos, tentando passar no fio da espada o nó
górdio chamado “os brasileiros pobres”.
Não foi a primeira nem a última vez em que o poder
político tentou aproveitar o surgimento de um problema menor para dar uma
demonstração de força, e quando viu... O problema cresceu pra cima de si numa
proporção imprevista, desencadeando um desastre sem retorno.
Canudos foi uma vitória de Pirro de onde o vencedor saiu
aviltado. Faça-se uma certa justiça ao governo da época ao admitir que a “força
excessiva”, como dizem os locutores de futebol, só foi posta em prática na reta
final do desespero, depois que a violência padrão despertou nos resistentes uma
bravura e uma selvageria inéditas.
Como diz Ivanildo Vila Nova num martelo famoso: “Brasileiro
matando brasileiro, e os vencidos mostrando mais linhagem”.
Canudos, como qualquer campo de batalhas historicas, é
hoje uma paisagem em verde e azul, com manchas de ocre do barro pedregoso, e o
cinza fosco dos garranchos.
A criação do Açude de Cocorobó foi uma ironia final, ao
fazer sumir o arraial sublevado através da água, o bem mais precioso daquele
mundo ressequido. Como se os poderosos dissessem: “Pois tomem isso que vocês
pediam tanto, e não se toca mais nesse assunto”.
A visão do Arraial (hoje açude) que se tem do Alto da
Favela é menos verticalizada, menos abrupta, do que a que eu tinha na
imaginação, a partir das leituras. Não sei até que ponto contribuíram para isso
120 anos de erosão, mas do Alto até o vale onde se instalaram os
conselheiristas é uma descida suave. Uma bacia larga e rebaixada, que os
canhões e os sabres do Exército conquistaram palmo a palmo, casa a casa,
garganta a garganta.
E acima de tudo o silêncio. Não se ouve o motor de um
carro, um grito de gente, um trilo de passarinho. Não digo que é um silêncio de
cemitério porque silêncio de cemitério é um silêncio surdo, tapado. Ali não: o
espaço é aberto e o vento é livre, mas mesmo assim nada se bole. É um silêncio
de tocaia, um silêncio de memória e de espera, um silêncio de alguma coisa pronta para acontecer.
Muito bom. Abrrr.
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