Tenho visto alguns livros muito interessantes em que compositores explicam como foram criadas algumas de suas canções mais conhecidas, o processo de composição, as circunstâncias, como foi gravada a música...
Tenho alguns volumes da série de Ruy Godinho Então, foi assim? e o livro de Paulo
César Pinheiro Histórias das Minhas
Canções (LeYa).
Pensei comigo: está aí um bom assunto para escrever de
vez em quando, porque mesmo quando as músicas não sejam grande coisa (tem as
que são, e as que não são), às vezes a história lança alguma luz sobre processos
criativos em si, sobre o meio musical, sobre um momento da História, e tudo
isso interessa.
Minha primeira música gravada foi “Caldeirão dos Mitos”,
que Elba Ramalho incluiu no seu segundo disco, Capim do Vale (1980). Foi composta, como a maioria das músicas que
faço sozinho, em duas fases: primeiro a melodia, depois a letra.
A melodia era muito antiga, era dos anos 1970, quando
voltei de Belo Horizonte para Campina Grande e passava o dia inteiro pegado com
o violão, redescobrindo o forró e a cantoria de viola. Se bem que essa melodia,
especificamente, era anotada em meus caderninhos com o título provisório de “I
wanna sing this all together”, verso que misteriosamente se transformou, anos
depois, em “Eu vi o céu à meia-noite”.
Esse título não era pra valer, aliás era meio chupado de
uma canção dos Rolling Stones, acho que em Their
Satanic Majesties Request, mas na época em que fiz essa música eu ouvia
muito umas bandas menores, que tocavam no rádio. Uma delas era o Mungo Jerry,
com uma canção brincalhona e simpática chamada “In the Summertime”:
Uma pessoa com o mais rudimentar conhecimento musical vai
dizer que as duas músicas não têm nada a ver uma com a outra, e este é um dos
mistérios da criação artística. Ela se dá por uma cadeia de associações de
idéias com saltos tão grandes que na quarta ou quinta parada já não se tem a
menor noção de como aquilo começou.
A única coisa clara para mim era que não haveria a tal
“segunda parte”, que é uma coisa da MPB e da música fonográfica em geral. Eu
queria o modelo da canção folk: estrofe musical única, com sucessivas letras
nas mesmas notas. É o modelo “Asa Branca”, é o modelo que o folk-rock
norte-americano, Bob Dylan à frente, empregava, bebendo nas canções irlandesas
e escocesas trazidas pelos colonizadores.
No São João de 1978 eu morava em Salvador, e não tinha
grana para ir passar a festa junina em Campina Grande. Me veio a idéia de fazer
uma música falando em São João, mas a primeira frase que me veio à mente foi “o
Apocalipse de São João”. (Olha aí como funcionam as associações de idéias!).
Essa imagem me trouxe à mente o céu pegando fogo, a qual
de imediato me lembrou uma espécie de trocadilho que eu já tinha usado antes,
em mais de um contexto: o fato de que “corisco” quer dizer relâmpago, e
“lampião” quer dizer candeeiro, ou seja, duas coisas que produzem clarão dentro
da noite. Estava pronta a primeira estrofe:
Eu vi o céu à meia-noite
se avermelhando num clarão
como o incêndio anunciado
no Apocalipse de São João
porém não era nada disso
era um corisco, era um lampião.
O que faz o compositor preguiçoso? Exatamente o que eu
fiz: pega a estrutura da primeira estrofe e a repete, com outros elementos, sem
introduzir nenhum conceito novo. O conceito da canção (que eu poderia, se
quisesse, ter expandido para 200 estrofes) era: “Eu vi uma coisa assim-assim;
não era tal-e-tal-coisa da Bíblia; era tal-e-tal-coisa do Sertão”.
Claro que o conceito não é seguido de forma totalmente
rígida, me permiti introduzir aqui e ali uns elementos destoantes (Inglaterra,
Paris, Japão), mas é isso mesmo. O dono do poema é o poeta. Ele não precisa
obedecer a regra nenhuma, nem mesmo a que ele acabou de criar. Georges Perec,
um obsessivo criador de regras, pregava o conceito de “clinâmen”, e dizia:
“Crie uma regra super rigorosa, e a obedeça da maneira mais fanática; depois,
num ponto escolhido com cuidado, desobedeça essa regra. Produza voluntariamente
uma exceção, num ponto onde seria facílimo ter continuado a fazer como antes.”
O primeiro título que dei à música depois de pronta,
pegando como deixa a estrutura “eu vi isso, eu vi aquilo”, foi “Visão do
Mundo”. Tá vendo como é bom continuar procurando uma segunda idéia?
Toquei essa música em público pela primeira vez em 1979,
numa coletiva de compositores baianos no Teatro Castro Alves repleto, na qual
entrei por obra e graça de Zelito Miranda, com quem eu estava compondo bastante
na época. Eu não tinha coragem de subir no palco, mas ele praticamente me
arrastou até o microfone e disse: “Vai, Galo, agora canta essa porra.”
Na primeira versão a música não tinha o “riff” entre as
estrofes, que depois ficou característico, o “tãrãrã -- tãrãrã”. Este foi
criado algum tempo depois, quando eu estava no Recife ensaiando para um show
que fiz com outro parceiro, Zé Rocha. Ele gostava da música mas achava que era
meio repetitiva (e é), era preciso dar uma encorpada nela com alguma coisa
instrumental e diferente, já que a gente ia tocar com banda. E na hora mesmo do
ensaio eu fiz o rasqueado veloz, 3+3 notas, que foi logo incorporado.
Cantei muito essa música em palco de bar e em mesa de
bar. Em 1979, Elba Ramalho levou para a Bahia seu show Ave de Prata, no lançamento desse seu álbum de estréia, e se apresentou
no Teatro Vila Velha, acompanhada pela Banda Rojão (Zé Américo, Guil Guimarães,
Joca, Marcos Amma, Élber Bedaque).
Falou que queria gravar alguma coisa minha. Eu mostrei o
“Caldeirão”, ela disse: “Me mande numa fita! É genial, vou gravar com certeza”.
(Eu levaria alguns anos para perceber que ela diz isso com toda música minha,
mas só grava de vez em quando.)
A música foi gravada para o segundo disco dela pela CBS, Capim do Vale (1980), e acabou sendo a
música de abertura do Lado A, uma honra impensável para um compositor
desconhecido que estava tendo uma canção gravada pela primeira vez. Ainda mais
num disco que trazia Sivuca, Alceu Valença, Zé Ramalho, Pedro Osmar, Elomar...
Quando o disco saiu, toda vez que chegava gente querendo ouvir
“o disco novo de Elba”, eu tirava o vinil de dentro da capa e checava toda vez o
selo pra ver se meu nome continuava lá.
A gravação de Elba produziu um arranjo perfeito, com
levada de arrasta-pé (que eu chamo de “marcha-quadrilha”), e a ótima idéia de
começar com a música “solta”, sem ritmo, somente voz e sanfona se erguendo
lentamente em meio às percussões, e só depois a banda atacando completa no
“tãrãrã -- tãrãrã”. E no meio da canção,
quando fala “Era um fole de 8 baixos a tocar numa noite de forró”, a
intervenção agilíssima de Abdias.
Aqui, a gravação original:
Música da porra.
ResponderExcluirEssa música é demais. Nunca soube que era sua. E adorei saber do processo. Pra mim isso é absolutamente misterioso...
ResponderExcluirConheci o trabalho de Bráulio Tavares através de um grupo de teatro popular que fazia parte em Olinda;
ResponderExcluirCerta vez fomos assistir ao show de um artista popular num bairro aqui da cidade chamado Ouro Preto;
Ouvi o Bráulio cantando "TRUPIZUPE O RAIO DA CILIBRINA" Foi uma experiência i.
Meu velho.
ResponderExcluirCaldeirão dos Mitos foi uma dentre muitas canções que me chamaram a atenção para a elaboração das letras da canção popular.
Fiquei fã de pronto e de lá pra cá acompanho sua obra com muito gosto.
Tudo que aparece por meio dos parceiros intérpretes, já que me parece que você não faz disco, e tudo que posso ler no blog e nos livros.
Sou de Feira de Santana, cidade nordestina cosmopolita assim como Campina Grande, e acabei trazendo minha poesia para canção por causa de letristas como você.
Escrevi uma letra em forma de martelo pra o parceiro Paulo Costa chamada "Eletronicamente feito à mão" em que junto cordel, literatura antiga e ficção científica, e dediquei a você.
O link está aí embaixo.
Gratíssimo, mestre!
https://www.youtube.com/watch?v=9KkAEGsT2tY