Un rude hiver (1939), de Raymond Queneau, é um dos romances mais curtos e mais acessíveis deste escritor cuja erudição e temperamento arlequinesco deixam às vezes perplexo mesmo o leitor mais cheio de boa vontade.
Não que seus livros sejam difíceis de ler – pelo
contrário. Mas quando um leitor bem informado descobre meia dúzia de
referências salpicadas ao longo de dois ou três capítulos, ele acende um sinal
de alerta. “Estas aqui eu pesquei. Mas quantas outras não estarei perdendo?”.
Esta história se passa em Le Havre, a cidade natal do
romancista, durante a I Guerra Mundial. Em 1939, às vésperas da “próxima
guerra” (como tanto se dizia na época), Queneau meditava sobre a anterior. É a
história de Bernard Lehameau, 33 anos, desmobilizado da guerra por um ferimento
na perna, e seu cotidiano sem graça à espera de ficar bom e partir de novo para
a frente de batalha.
(Le Havre)
Lehameau é um tremendo dum reacionário, em termos
políticos e pessoais, e ainda assim é um personagem simpático, ou no mínimo
fascinante. Manifesta um desprezo bronco pelos trabalhadores e pelos pobres em
geral. Ironiza a França ao compará-la com a Alemanha. Vive em atrito permanente
com o irmão mais velho e a cunhada. Praticamente não tem amigos, e convive
apenas com uma criada idosa que cuida de sua casa.
Sua memória era juncada de túmulos, como a de um romântico, mas ele,
funcionário aplicado, extirpava com dedicação as ervas daninhas que se
espalhavam pelas aléias, e cuidava apaixonadamente dos pequenos tufos de flores
que apesar de tantos invernos se recusavam a murchar. (Cap. I, trad. BT)
A gente logo fica sabendo que Lehameau é assim casmurro
não apenas pelo ferimento de guerra, mas por uma tragédia ocorrida treze anos
antes: no incêndio de um cinema que ficava numa galeria, ele perdeu a mãe, uma
cunhada, e a esposa (que possivelmente estava grávida). Desde então, não soube o que é mulher.
E com isso se tem uma racionalização para entender esse
personagem aparentemente simples mas contraditório, que tem um certo senso de
humor, que é extremamente carente de carinho.
(Le Havre)
O livro inteiro é o relato de suas tentativas de
aproximação com várias mulheres: Mme. Dutertre, mulher de meia idade, meio mística,
dona de um sebo que ele frequenta; sua atual cunhada, Thérèse, fisicamente
atraente, com quem ele dá umas flertadas de vez em quando; a inglesa Helena
Weeds, uma jovem militar inglesa estacionada no Havre, com quem ele começa a
manter um namoro cheio de dedos; e Annette, uma garota de 14 anos que ele
conhece por acaso, de quem fica amigo, e que começa a manifestar uma paixão
juvenil por ele.
Elas são o lado ensolarado e aquecido da vida do
personagem (frio/calor é uma oposição constante na narrativa), e atenuam sua
raiva surda pelo lado mais miserável da humanidade:
Um bonde o conduziu até o Eure, de onde ele retornou pelo cais e pelos
bairros operários, uma longa caminhada através de um mundo de trabalho e de
horrores. Por toda parte se agitavam máquinas e escravos, numa atividade que
parecia desmedida, abominável. Por toda parte aquele lugar, arfante e suado,
carregado de desespero e de vícios, parecia prestes a fazer brotar monstros e
catástrofes de dentro da própria coxa. E o tempo não produzia outra coisa senão
a vergonha. (...) Lehameau se fartava de desprezo e de horror e sua alma
tripudiava de exaltação. Ele saboreava a própria repulsa absoluta e fanática
por aquela plebe do porto e das usinas, por aquela gentalha de boné, aqueles
proletários carrascos dos próprios filhos, insolentes com as pessoas de bem, bêbados,
brutos, sediciosos e imundos. Alguns quarteirões da cidade, com suas favelas
embandeiradas de roupas para secar e pululantes de crianças, com seus bordéis e
seus botequins, representavam para ele a imagem terrestre mais próxima do
inferno, caso tal lugar existisse. E assim ele deixava crescer em seu peito o
ódio e a repugnância que lhe provocavam o espetáculo daquela raça maldita e
infecta que as desordens da guerra ameaçavam fazer subir à superfície.
Sem falar que no meio daqueles malditos ainda havia uma boa quantidade
de pacifistas. (Cap. VI)
A violência dos pensamentos íntimos do personagem
contrasta com a polidez dos seus diálogos, a gentileza um tanto carrancuda com
que se comunica. Lehameau é um desses vulcões que parecem adormecidos quando
vistos pelo lado de fora.
(Le Havre)
Seu ódio prazeroso diante da miséria tem para ele uma justificação:
No cais das Casernas, o vagaroso caminhante cruzou com um grupo de
rapazotes meio bêbados, verdadeiros marginais de catorze anos. Ao vê-los, ele
experimentava uma alegria vívida, como um eleito divino diante do espetáculo
dos condenados ao inferno, segundo algumas religiões. (Cap. II)
O que me trouxe à mente este comentário de Henry Thomas (A História da Raça Humana, Ed. Globo,
1967) sobre a Idade Média na época de Dante:
Mesmo um dos mais piedosos dos escritores medievais, Santo Tomás de
Aquino, chegou ao ponto de dizer que
Deus em sua bondade intensifica a felicidade dos santos do Céu, permitindo-lhes
contemplar as torturas dos pecadores do Inferno.
Em suma: não basta estar no Paraíso, é preciso saber que
há gente no Inferno. Lehameau parece um
indivíduo sem salvação. E um belo dia ele está no bonde quando um casal de
irmãos senta diante dele, um garoto de 8 anos e uma menina de 14.
Lehameau pensou consigo mesmo: que imprudência deixar duas crianças
andarem sozinhas no meio de uma cidade grande. Examinou com mais atenção a
menina, e considerou que seria uma boa presa para um sátiro. (Cap. I)
E a partir daí sua vida muda, porque eles trocam algumas
frases, e ao descer do bonde a menina lhe sorri.
Lehameau fechou os olhos para encarar corajosamente o grande vácuo
negro que se cerrava sobre si. (Cap. I)
Ele fica amigo da garota, do seu irmão, e da irmã mais
velha dos dois, Madeleine, que cuida deles e que não por acaso é prostituta junto às
numerosas forças armadas estacionadas no porto. Por um lado, Lehameau ensaia um
namoro desajeitado com a inglesa Miss Weeds, um namoro onde a muito custo ele consegue pronunciar um casto "je vous aime". E por outro, está fascinado por
Annette, a garota que a cada reencontro fica mais interessada nele.
Aquele relâmpago que o havia trespassado, ele o reencontrava
materializado naquela carne, tão delicada que ele não acreditava como ela podia
fazer caber em si uma graça tão intensa. (Cap. III)
(manuscrito de Queneau)
Nada pode ser mais distante do modo de escrever de
Raymond Queneau do que o clichê “história de amor”, porque longe de seguir os
passos e os movimentos obrigatórios no gênero ele se limita a acompanhar um
homem ao mesmo tempo sensível e ressentido, apaixonado e rancoroso.
Ele comenta com a cunhada Thérèse seu desespero diante da
partida iminente de Miss Weeds para a Inglaterra:
Eu a amo, murmurou. Mas daqui a um mês esse amor estará morto,
consumido. Estaremos separados, esteramos perdidos um para o outro. E tudo terá
fim. Há um incêndio que brotou em algum lugar e que se estende e se propaga e
que arde e que queima tudo que encontra. Ele derrete as junturas e aquilo que
não é feito de uma peça inteiriça se desmorona, desmantelado, feito em pedaços.
Os metais vulgares se fundem de imediato, mas os outros serão temperados.
Talvez. É um grande incêndio, Thérèse. E só vão restar grandes bosques
calcinados, para onde as aves jamais retornarão. (Cap. XII)
Un rude hiver é
a história de uma redenção sofrida, com algumas surpresas de enredo, pequenas
comédias, pequenas tragédias.
Aquele homem parecia levar o amor tão a sério, o amor: nem era um
simples “caso”, era um flerte, e aquilo parecia querer transformar um mero
passeio sentimental em alguma coisa trágica e psicológica. (Cap. IX)
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