As coleções de livros de bolso da Tecnoprint/Edições de Ouro, a partir do final dos anos 1950, trouxeram para o Brasil centenas de títulos de romances curtos da pulp fiction norte-americana e francesa, principalmente.
Quase toda a Coleção Futurâmica de ficção científica, por exemplo, eram traduções da coleção “Anticipation”, da editora “Fleuve Noir”. E na coleção Terror apareciam os mesmos autores que a “Angoisse”, da mesma editora francesa.
A pulp fiction
que absorvi na pré-adolescência era de segunda mão: eram os escritores franceses
que liam e imitavam os norte-americanos.
Eram livros pequenos, texto compacto, traduções de
qualidade imprevisível, capas coloridas, e bastante propaganda. Cinquenta anos
antes disso, “livro brasileiro” eram aquele tomos encadernados da Garnier. Os
de agora tinham capas policromadas e, nas páginas do fim, o inevitável catálogo
para futuras encomendas. Aquelas mesmas indicações que os folhetos de cordel trazem, geralmente na quarta capa: endereços dos distribuidores, dos pontos de
revenda...
As propagandas eram boas, e com nove ou dez anos eu me
entretinha lendo a retórica publicitária da “Seleção Terror”, que anunciava os
três primeiros títulos, Drácula (Stoker),
Frankenstein (Shelley), e Jack o Estripador” (Gardner F. Fox):
Não deixe de ler estes romances cujos enredos prendem e arrebatam.
Páginas cheias de tragédias e mistérios que criam uma atmosfera horripilante.
Fortes dramas de horror sem igual!... Os mais espantosos que jamais se têm
escrito!... Suplicamos não os ler à noite, em local pouco iluminado e sem
alguém perto, pois do contrário... se alguém gritar, será você!
Por que motivo um leitor gritaria de medo ao ler um
livro? O medo é uma reação um tanto extrema, mas a pergunta pode ser feita
assim: Por que as pessoas se emocionam, chegam a chorar, preocupam-se com o
destino de criaturas que não passam de palavras impressas?
Alguns leitores nunca se fazem essa pergunta porque ler e
emocionar-se lhes é uma coisa tão natural quanto respirar. Outros nunca a fazem
porque acham que a leitura foi inventada para isso mesmo, para distrair as
pessoas, e acabou-se o assunto. Mas os escritores e um certo tipo de
leitor-crítico têm a obrigação de perguntar (a si mesmos, pelo menos)
obviedades como essa.
Quem entra num livro a ponto de “acreditar” nele, acreditar
na “realidade dele” durante aqueles minutos, volta para fora do livro com uma percepção
melhor da realidade. É uma pessoa que é capaz de fantasiar de forma coerente, seguindo instruções (o texto de um romance é mais ou menos isto: instruções
para o leitor fantasiar uma situação).
O livro desenvolve a sua capacidade de se colocar no
lugar de outras pessoas, identificar-se temporariamente com elas, não porque
elas “sejam de verdade”, mas porque esse processo faz com o intelecto do leitor
algo como a ginástica faz com o seu físico.
Já conheci muitas pessoas altamente inteligentes e
capazes, mas que não gostavam de ler ficção, achavam perda de tempo ler
“histórias que nunca aconteceram, envolvendo gente que nunca existiu”. Em geral
eram profissionais bem sucedidos, pessoas focadas, sem tempo para
irrelevâncias. Alguns, no entanto, pareciam não compreender que o mundo não é
feito de coadjuvantes e extras do seu filme: cada pessoa daqui é um filme para
si mesma, tanto quanto ele.
“Calma, é só um livro”, é uma frase que de vez em quando
digo para mim mesmo, quando estou tão mergulhado no suspense que a frequência
cardíaca começa a se turbulizar. Não precisa ser um suspense hitchcockiano ou
kinguiano, algo aterrorizante e macabro. Não, é o suspense da vida real, o mais
perigoso de todos.
Lembro de estar lendo o terço final de Tia Júlia e o Escrevinhador de Vargas
Llosa, quando o casal vai de vilarejo em vilarejo, correndo contra o relógio, à
procura de um juiz que os case e lhes forneça o precioso documento antes que
uma catástrofe qualquer aconteça. (Reencontrei há pouco este tema como o
objetivo da fuga dos amantes de Mandacaru
Vermelho de Nelson Pereira dos Santos.)
Eu levantava os olhos, do texto para a parede, e dizia:
“Calma, é só um livro.” Porque pra mim um subgênero do filme de suspense é o
Filme de Contratempo: alguém que precisa desesperadamente cumprir uma tarefa,
prosaica ou extraordinária, e o Universo inteiro parece estar conspirando
contra.
Artistas como Buster Keaton ou Harold Lloyd exploraram
isso no tempo do cinema mudo. Comédias modernas como Depois de Horas (“After Hours”, Scorsese) ou O Homem Que Perdeu a Hora (“Clockwise”, C. Morahan, 1986, com John
Cleese). Não é um subgênero apegado apenas à comédia. Direcionado para o campo
do romance policial ou criminal, foi muito bem cultivado por autores como
Fredric Brown ou Cornell Woolrich.
Se alguém quiser recuar até o Dom Quixote e a Odisséia,
fique à vontade.
É só um livro. Os horrores de Lovecraft ou Dean R. Koontz
existem, sim, durante o momento da leitura. A mente do leitor decodifica as palavras,
concatena as frases, projeta-se em visualizações e encenações íntimas,
envivecendo aquilo. As peripécias e os personagens podem não ser reais, mas as
reações físicas que eles provocam no leitor o são.
Ler literatura é como jogar um videogame na primeira
pessoa, onde, em vez da gente acompanhar o personagem, o personagem somos nós, a
câmera, a narração. Mesmo que o livro seja narrado na terceira pessoa, a
experiência da leitura e da fantasiação é única, intransferível.
É só um livro, e é interessante como as obras ditas de
vanguarda ou experimentais abrem mão disso, desse tipo de manipulação. Há
leitores para tudo, até para os experimentalismos cerebrais da OuLiPo; mas por
essa mesma razão há leitores também para a boa-e-velha história com personagens
“com quem a gente se identifica”.
Ser capaz de ler sem se envolver é considerado às vezes
um estágio superior de leitura, um estágio brechtiano, mais sofisticado, que
denota mais cultura, mais experiência, critérios mais exigentes. O leitor que
se emociona, que se deixa levar, é considerado nesse critério um leitor mais
ingênuo, mais bitolado.
Sou capaz de entender esse tipo distanciado de texto, sou
capaz de escrevê-lo até. Mas o autor ideal para praticar isso é o que seja
capaz de produzir também a identificação emocional do leitor, e saiba refiná-la
até um ponto em que ela coexista com a leitura lúcida.
Assim como o melhor
pintor abstrato teria que ser como (por exemplo) Picasso, que começou como um
excepcional pintor figurativo, e soube manter nos seus quadros cubistas algumas
das técnicas figurativas subjacentes: composição, movimento, relevo, ação
corporal, o que garante em qualquer quadro seu a inconfundível presença humana.
Esse ensaio tá ótimo e é do tipo "entrou por uma perna de pinto, saiu por uma perna de pato". 😉
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