Algum tempo atrás tirei uma brincadeira no Facebook,
postando a imagem de uma pintura que se me deparou por acaso, “O Eclipse do Sol
em Veneza em 6 de Julho de 1842”, do artista italiano Ippolito Caffi
(1809-1866). Nunca tinha ouvido falar no artista nem tinha visto o quadro, mas
ele me chamou logo a atenção por uma série de detalhes insólitos.
Como as redes sociais são notórias estimuladoras de
bravatas, postei o seguinte:
Eu ainda
vou preparar uma aula de 50 minutos sobre este quadro, "O Eclipse do Sol
em Veneza em 6 de Julho de 1842", de Ippolito Caffi. Tem caminhos para
falar de astronomia, ciência, pintura, cinema, realidade imagética,
objetividade/subjetividade, surrealismo, memória, perspectiva...
Claro que era mera pabulagem de minha parte, o que não impede que todas
essas coisas possam ser discutidas. Um pouco no estilo texto-visual cultivado pelo mestre W. J. Solha.
Vamos falar primeiro de Astronomia.
O quadro mostra um fenômeno astronômico que na época, século 19, já
estava devidamente explicado e entendido: os eclipses solares. Acontece que
naquele tempo os fenômenos celestes tinham que ser ou descritos verbalmente ou
pintados. A fotografia ainda engatinhava em 1842.
Esse quadro tem um valor simbólico muito grande. Um eclipse é um
fenômeno de luz e sombra. No quadro, temos uma divisão muito clara entre o
mundo das trevas e o mundo da luz, que o pintor separa com admirável candura. O
primeiro aspecto que chama a atenção no quadro é essa separação entre sombra à
esquerda e luz à direita, totalmente irreal se pensarmos como um eclipse
realmente se produz.
Mesmo com o Sol parcialmente encoberto, a luz não se dirige, como um
facho ou um holofote, para um só lado do céu. A parte não-encoberta do Sol, por
menor que esteja no momento, torna-se um ponto de onde os raios de luz se
espalham, vindo na direção da Terra. A luminosidade é menor, mas tão uniforme
quando a de um dia normal.
(Vejam só – estou especulando. Nunca vi um eclipse total do Sol, e
eis-me questionando um pintor que certamente viu!)
Eis um eclipse, visto do espaço:
Do ponto de vista pictórico, o quadro, que usa a Perspectiva rigorosa já padrão nos anos 1800, tem o Sol como
ponto-de-fuga em relação a nós; mas a projeção desviada desse feixe de raios
luminosos sugere um ponto de observação alternativo, num ângulo de quase 90
graus entre o observador e o Sol. Sugere o lugar onde o Sol estaria sendo visto
por inteiro. É por assim dizer uma pintura que aponta para fora de si mesma.
Este aspecto me leva a pensar em como os temas da Ciência têm sido tratados visualmente para demonstração. Tratados científicos
feitos desde o Renascimento, dirigidos aos leigos. E entre os leigos incluímos
reis, Papas, nobres, etc. – o pessoal que detém o poder e precisa ter algum
contato com o Saber.
Toda representação visual de algum aspecto científico é valiosa e
incompleta, é essencial e falível. Me lembro dos famosos esboços de Galileu, com
o olho no telescópio e a pena na mão, rabiscando o que via, e que publicou em O Mensageiro das Estrelas (1610):
Ninguém jamais vira as asperezas e anfractuosidades do solo da Lua,
cheio de crateras. A teoria vigente era de que ela, sendo um corpo celeste
criado por Deus, seria uma esfera lisa e perfeita como uma bola de bilhar. Os
desenhos acima já começaram a levar alguma lenha para a fogueira que o
cientista, prudente e safo, conseguiu saltar, não sem algum prejuízo para a
própria valentia.
Já o desenho abaixo está num livro do astrônomo Huygens, registrando as
observações de Galileu e outros sobre os anéis do planeta Saturno, algo que
ninguém entendia mas estava vendo e precisava desenhar. Eram as primeiras
tentativas de entender o que havia ao redor de Saturno.
Hoje temos sistemas de observação astronômica mais sofisticados, podemos
achar graças nessas tentativas toscas de entender que diabo era aquilo. Mas
esses desenhos sempre me lembraram estas fotos abaixo, que são modelos da
“Nuvem de Probabilidade” dos elétrons, as possíveis trajetórias deles em torno
do núcleo atômico:
Mais uma vez, é a tentativa de representação
visual do invisível.
Voltamos ao quadro de Ippolito Caffi. O quanto a Pintura é diferente da fotografia, que por mais tosca que fosse era
quase instantânea, mesmo em 1842! Em 1838
já existia a famosa foto feita por Daguerre do “Boulevard du Temple”, que
necessitou de alguns minutos de exposição contínua, e se tornou a primeira foto
onde aparecem pessoas: o sujeito em pé na esquina e o engraxate que lustra os
seus sapatos.
Como ficaria uma única foto, em exposição contínua, de todas as fases de um
eclipse? Foi preciso inventar o Cinema
para ilustrar esta questão.
Se Caffi batesse uma foto do eclipse não dependeria tanto da própria Memória, que é outro tema essencial
aqui. Um quadro como esse não poderia ser pintado na hora. O pintor está
tentando reproduzir na tela o que ele certamente viu, mas depende da memória,
uma memória ainda não educada por demonstrações “objetivas” de como um eclipse
acontece. Ninguém em 1842 tinha fotografado ou filmado um eclipse. Caffi tentou
pintar o que lembrava – e o que lembrava é esse encantador absurdo que ele nos
mostra.
Nossa memória é sempre metade registro e metade imaginação. O que a
lembrança não capta, o instinto substitui.
A Realidade Imagética tem um
caráter ambíguo, por um lado é sinônimo de “fidelidade, descrição, reprodução
exata, etc.” e por outro lado é uma construção da mente de quem a produz, seja
pintor, desenhista, fotógrafo, cineasta, etc.
Não existe imagem 100% real. Toda imagem já nasce como uma manipulação.
Acreditamos em qualquer imagem do mesmo modo como os contemporâneos de
Ippolito Caffi provavelmente viram este quadro e acreditaram que um eclipse,
visto daquele ponto de sua cidade, era exatamente assim. A realidade imagética
não reproduz o que vemos, mas nos ensina a ver. Ela fornece convenções óticas
que não passam de ilusões: a ilusão da distância através da perspectiva, a
ilusão de relevo através do sombreado, a ilusão do movimento através do
desfoque, e assim por diante.
A produção de imagens (pintura, foto, cinema, etc.) é a produção de
pseudo-objetividades, de realidades que parecem autônomas, independentes,
“naturais”, mas que são realidades de segunda ordem, de segunda mão: foram
produzidas por pessoas como nós.
Parece ingênuo dizer isso depois de milênios de pintura, séculos de
fotografia, mas o surgimento das imagens digitais e dos seus instrumentos de
manipulação nos fazem reaprender de novo essa lição.
Photo-shop, fake-news, colagens, fotos interferidas… tudo são falsas fatias
de objetividade que podem ser trucadas à vontade e acabar nos enganando. Eu
mesmo vejo várias vezes por semana imagens que “botaria a mão no fogo” por
serem autênticas, e depois acabo reconhecendo que são imagens subjetivas,
imagens que foram modificadas com alguma intenção, mesmo que seja apenas a de
criar um meme humorístico.
Como este belo planeta Saturno de Val Koleva, no saite “Design Crowd”:
Quanto ao Surrealismo, eu
diria que Ippolito Caffi mereceria um lugar de honra, ainda que
involuntariamente, nessa enorme galeria de falsas paisagens, de registros em trompe l’oeil, de perspectivas
distorcidas, de imagens com perfeccionismo fotográfico produzindo ambientes impossíveis.
Max Ernst, “La Ville Entière” (1935-36), uma paisagem iluminada de
frente por uma lua cheia situada por trás dela:
René Magritte, “L’Empire des Lumières” (várias versões), uma paisagem
cuja metade superior está “de dia” e a metade inferior “de noite”:
Rob Gonsalves, “Night Lights”, onde a lua cheia avistada por trás dos
pinheiros contém os continentes da Terra e suas luzes urbanas:
Ou o fotógrafo surrealista Erik Johansson e seu “The Cover Up”, onde o
céu escuro e tempestuoso é recoberto por um céu artificial, cheio de sol:
A pintura de Ippolito Caffi envolve todos estes fatores e o que a torna
mais interessante é o fato de que ela mistura objetividade e subjetividade de
uma maneira hoje talvez evidente para a maioria de nós, mas que não o seria
tanto para o artista e seus contemporâneos. Eles talvez o achassem 100% fiel à
verdade visual e à plausibilidade científica do que retratou.
Todo “realismo” é sempre constituído por uma liga fortíssima entre a realidade
externa, que se impõe pela presença, e a realidade interna, ou mental, que se
impõe no ato de criar ou recriar. Esta pintura é um exemplo perfeito disso.
Excelente!
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