Vivo fosse, o autor de O Jogo da Amarelinha estaria completando 105 anos neste 26 de
agosto.
Nascido em Bruxelas de pais argentinos, e depois radicado na França, Cortázar foi um daqueles escritores argentinos com profunda influência européia. Não apenas literária; uma influência existencial, com um lado intelectualmente aristocrático que os distanciava do populismo plebeu dos peronistas, mas por outro lado com um lado lúdico, irreverente, que os indispunha com uma certa elite cultural portenha, cheia de pompa vazia e de feroz politicagem.
Nascido em Bruxelas de pais argentinos, e depois radicado na França, Cortázar foi um daqueles escritores argentinos com profunda influência européia. Não apenas literária; uma influência existencial, com um lado intelectualmente aristocrático que os distanciava do populismo plebeu dos peronistas, mas por outro lado com um lado lúdico, irreverente, que os indispunha com uma certa elite cultural portenha, cheia de pompa vazia e de feroz politicagem.
Sua obra literária, felizmente, continua a ser traduzida
e reeditada no Brasil.
Muitos textos novos têm aparecido, com destaque para os Papéis Inesperados (Rio: Civilização Brasileira, 2010, trad. Ari Roitman e Paulina Wacht), uma compilação feita por sua viúva Aurora Bernárdez e por Carles Álvarez Garriga, reunindo contos, artigos, fragmentos cronopianos e uma interessante miscelânea.
Muitos textos novos têm aparecido, com destaque para os Papéis Inesperados (Rio: Civilização Brasileira, 2010, trad. Ari Roitman e Paulina Wacht), uma compilação feita por sua viúva Aurora Bernárdez e por Carles Álvarez Garriga, reunindo contos, artigos, fragmentos cronopianos e uma interessante miscelânea.
Obras críticas e biográficas também têm saído, como Cortázar – Notas Para Uma Biografia de
Mario Goloboff (São Paulo: Editora DSOP, 2014, trad. José Rubens Siqueira).
Nesta veia, encontrei recentemente um volume pequeno e
curioso, Cortázar, Profesor Universitario
– Su paso por la Universidad de Cuyo en los inicios del peronismo, de Jaime
Correas (Buenos Aires: Aguilar, Altea, Taurus, Alfaguara, 2004). É o relato de
uma fase pouco conhecida na vida do autor, quando durante um ano e meio (entre
1944 e 45) ele ensinou nessa universidade, na cidade de Mendoza, onde fez
amizades que duraram pelo resto da vida, como o artista plástico Sérgio Sergi e
a crítica literária Lida Aronne de Amestoy.
O autor informa que era leitor da obra de Julio e só
depois de muito tempo descobriu que ele tinha sido professor na universidade
onde ele próprio estudava agora, e que muitos dos professores que agora tinha
eram ex-alunos do autor de Os Prêmios.
A pesquisa se impôs, e ele faz uma curiosa confissão (trad. minha):
Com esse material em mãos, escrevi em 1996 um romance fracassado, que
os piedosos editores puseram na estante dos definitivamente inéditos, e do qual
resgatei apenas o final, dando-lhe a forma de um conto que ganhou um vago
concurso.
Em 1995 apareceu o “Diário de Andrés Fava” [fragmento narrativo até
então inédito, de Cortázar], em que Mendoza
e os amigos de Cortázar estão presentes. Para quem estava investigando este
tema, havia uma frase inquietante: “Se eu convivesse com escritores, anotaria
toda ocorrência que me parecesse significativa – não a mera troca de espertezas
– e faria um grande favor aos biógrafos de 1995”. O título daquele conto
premiado que eu havia escrito era “Pobres Biógrafos”. Fiquei, desde então, com
o sentimento de que esses indícios que estava recolhendo tinham algum sentido.
Havia neles uma história, um homem que deixava as marcas dos seus passos para
que alguém o seguisse. (p. 14-15)
Jaime Correas comprova o fato bem sabido de que ler muito
um autor é aprender a pensar como ele pensa. Cortázar cultivava um Realismo Mágico
que não tinha muito a ver com o mágico mundo rural de um Astúrias ou um Juan
Rulfo. Seu comércio com o elemento mágico dependia da percepção de simetrias,
de paralelismos inesperados.
Ernesto González Bermejo (em Conversas com Cortázar, Jorge Zahar Editor, 2002, trad. Luís Carlos
Cabral) mostra como o escritor tenta exprimir essa percepção:
Acredito que quando uma pessoa é porosa nesse plano, tudo o que
chamamos “casualidades” ou “coincidências” se multiplica. Mais: acredito que
você acaba atraindo essas casualidades. (p. 38)
Cortázar usa repetidamente o termo “constelações” para
descrever essa percepção, que é individual e única. As estrelas
de uma constelação no céu não tem necessariamente nenhuma relação entre si, mas
vistas daqui da Terra parecem formar uma figura. Cortázar compara isso às
intuições súbitas que o acometem e que muita vezes resultam em contos:
Eu tenho sido invadido por concatenações instantâneas, vertiginosas,
entre coisas heterogêneas que entram no campo dos meus sentidos. E isso
acontece sempre em momentos de distração. (p. 73)
Pense em Lautréamont. Quando ele amontoou, metaforicamente, uma máquina
de costurar, um guarda-chuva e uma mesa de operação e sentiu que desse “encontro
fortuito” surgia um sentimento de beleza inexplicável, não fez mais do que expressar
uma abertura para uma coisa que, à primeira vista, não era possível justificar
pela mera presença de componentes tão prosaicamente selecionados.
Mas se o sujeito é sensível a tais demonstrações parapsicológicas, se
não as descarta como meras fantasias da distração, o acatamento desse clima
receptivo facilita cada vez mais a sua repetição sob circunstâncias e com
elementos diferentes. Produz-se algo assim como um ciclo em que essas bruscas
coagulações, que a razão é incapaz de entender, passam a se repetir com
frequência crescente. (p. 74)
O que existe de “mágico” na literatura de Cortázar bebe
na mesma fonte intuitiva e pré-consciente do jogo aleatório das moedas do
I-Ching oriental ou dos búzios africanos – a consciência de que em certos
momentos uma mente aguda e um olhar alerta podem captar certas constantes do
mundo, fazer relações instantâneas entre fatos, coisas e fluxos aparentemente
não-relacionados.
Para isso é preciso limpar a mente, esquecer não só os
preconceitos como os conceitos também, deixar-se alvejar pelos fatos, pelo
contato da realidade em-bruto.
Numa carta de 1957 a seu grande amigo Eduardo Jonquières,
Julio ironizava os “Lineus”, os classificadores, os taxonomistas, que
colecionam conceitos e rótulos a tal ponto que não enxergam mais a realidade:
Em Paris acontece quase sempre a mesma coisa: a necessidade de classificar
das pessoas é um triste resultado (entre outros menos tristes, por sorte) de nossa
cultura ocidental. Em cada um de nós dorme um Lineu, com os bolsos cheios de
etiquetas. Você já notou a inquietação das pessoas, num concerto, quando o
pianista toca um bis sem anunciar do que se trata? Todo o prazer se perde
devido à irritante busca mental do autor dessa peça. Será Scarlatti? Não, deve
ser Vivaldi. E se fosse Bach?
(Cartas a los Jonquières, Buenos Aires: Aguilar, Altea, Taurus,
Alfaguara, 2010, p. 378-379, trad. minha).
Uma das curiosidades do livro de Jaime Correas citado
acima são os apêndices com os programas e bibliografia sugeridos pelo Prof.
Cortázar para seus cursos: “Literatura Francesa I Poesia Francesa no Século XIX
– Baudelaire, Verlaine, Mallarmé”, “Literatura Francesa II – A poesia francesa
de Rimbaud aos nossos dias”, “Literatura da Europa Setentrional – Poesia inglesa
no início dos século XIX: John Keats”, “Poesia romântica no começo do século
XIX”, “A novela romântica”.
Aqui, no YouTube, um documentário sobre a passagem de Cortázar por Mendoza e a Universidade de Cuyo:
Agora, 27 de agosto de 2019, por coincidência, está na minha mesa o Cronópios de Cortázar. E faz meia hora que estava no sebo e chegou a minha mãos Os prêmios, mas na hora decidi deixá-lo lá mesmo. Abração.
ResponderExcluirPaulo Rafael, nessa entrevista que cito, JC se refere aos monólogos de Pérsio (os capítulos em itálico de "Os Prêmios") como textos que investigam esse conceito de "constelação", de visão diferenciada das coisas.
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